Charli xcx e o ultrarromantismo distópico em “True Romance”

Charli xcx e o ultrarromantismo distópico em “True Romance”

Durante os últimos meses, uma onda verde dominou a internet, consequência do lançamento de Brat, álbum da cantora Charli xcx. Brat foi aclamado pela sonoridade vibrante misturada com letras maduras e vulneráveis, alcançando uma média de 95 de 100 pontos pelo Metacritic. Entretanto, o experimentalismo de Charli não é novidade.

A britânica começou a carreira aos 14 anos e lançou seu primeiro álbum, True Romance, aos 21, em 2013, depois de três anos de planejamento. Com um synth-pop pesado e filtros que distorcem sua voz, foi difícil encaixá-la em um estilo específico. O Tumblr a celebrou como uma cybergirl; a crítica positiva, como gótica; e a negativa, como um produto.

A capa minimalista e verde de Brat, lançado em 7 de junho de 2024.
A capa minimalista e verde de Brat, lançado em 7 de junho de 2024 | Reprodução

O ultrarromantismo contemporâneo e cibernético de True Romance

A sonoridade sombria e os jogos vocais complementam a temática ultrarromântica das letras, no sentido mais literário possível. O álbum aborda temas como corações partidos, paixões avassaladoras e relações complicadas.

Além de relacionar essas ideias com a morte e o sofrimento, True Romance menciona o fim do mundo diversas vezes, com imagens que dialogam com a cultura pop da época, como as sagas Jogos Vorazes e Divergente.

O romantismo distópico de Charli XCX já é evidente na composição de abertura, Nuclear Seasons. Na letra, o eu lírico compara o término de um relacionamento a uma catástrofe nuclear. O instrumental da primeira faixa é recortado e reutilizado na sexta música, Grins, cuja letra pode ser interpretada de diversas formas.

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A capa de True Romance, com poucos esforços visuais, esconde a dedicação presente nas letras | Reprodução

Fica claro que o eu lírico das duas faixas enfrenta uma decepção amorosa. Na primeira, expressa somente pelo emocional, enquanto a segunda traz um eu lírico erotizado, com as primeiras linhas subjetivas sobre masturbação. O álbum traz diversas referências carnais, não somente sexuais, mas também violentas.

Wish you could see me when I’m lying in bed

My eyes are blinded by your stars

My blood is blushing so red (Oh my God)

Queria que você pudesse me ver na cama

Meus olhos cegados por suas estrelas

Meu sangue corado tão vermelho (Oh meu Deus)

O fim do mundo ou um coração partido?

As referências ao fim do mundo também aparecem em Grins. Além disso, vozes distorcidas ao fundo trazem a típica ideia romântica do casal que morre junto: “no one lives forever, let’s die together” / “ninguém vive para sempre, vamos morrer juntos“.

O eu lírico também menciona que o partir de seu coração é como um terremoto. Como na literatura, essa personagem apaixonada e erotizada sente que a rejeição é equivalente à morte. Essa imagem, em um contexto contemporâneo, é carregada de referências catastróficas – terremotos, carros queimando, radiação descontrolada.

Na faixa que antecede Grins, intitulada Set Me Free, o eu lírico compara sua conturbada relação à sensação de sua pele se separar de seus ossos. A vulnerabilidade e o definhamento dos corpos, que constroem uma imagem grotesca, refletem o mundo em que se encontra o eu lírico. É difícil encontrar um amor real, sem violências, em um ambiente tão ameaçador.

I have been dancing with shadows

I have been calling your name

I feel the skin dripping from my bones

Your touch, it makes me insane

Tenho dançado com sombras

Tenho chamado seu nome

Sinto a pele escorrendo dos meus ossos

Seu toque me enlouquece

Se o mundo é hostil, logo o amor se corrompe e, assim, os corpos se tornam grotescos. O eu lírico em Set Me Free reconhece que seu parceiro compreende sua desesperança até certo ponto, o que não o impede de se aproveitar de sua alma e destruí-la.

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Pessimismo e esperança em terra arrasada

O pessimismo amoroso das músicas se complementa pela desesperança de um mundo destruído pela mudança climática, por desastres naturais e pela exploração humana. Esta última, por sinal, dialoga intimamente com o eu lírico do álbum, que diversas vezes sente-se explorado pelos parceiros românticos. Em Nuclear Seasons, a notícia de um término se compara a uma bomba nuclear; o eu lírico, entretanto, resiste.

Charli xcx
Charli xcx | Reprodução

Imagens religiosas também atravessam o álbum. Em Grins, o eu lírico, envolto nas fantasias românticas, se imagina no paraíso, dançando com um anjo, mas o peso da realidade o derruba das nuvens. Já em Black Roses, o eu lírico, cansado de um relacionamento sem amor, sente-se como um anjo de asas sujas em um jardim de pecado.

Entretanto, nem tudo no amor é tragédia. Em What I Like, o eu lírico apaixonado finalmente encontrou alguém que o entende. Mais alegre, ele demonstra não se importar com o iminente fim do mundo, pois estará com sua paixão verdadeira. Com referências a drogas e sexo, um erotismo juvenil também permeia a letra, como em Grins, porém com tons positivos.

And when the clouds part open

When the last word is spoken

When the last heart’s been broken

We’ll be sitting on your bedroom floor still smoking

E quando as nuvens se abrirem

Quando a última palavra for dita

Quando o último coração estiver quebrado

Estaremos no chão do seu quarto, ainda fumando

Outra composição semelhante a What I Like é a animada Take My Hand, com uma sonoridade que mistura elementos do synth-pop com o dream pop. Na letra, o encontro entre dois apaixonados só pode acontecer na escuridão da noite, que logo traz luzes neon e o brilho das estrelas.

Ainda assim, o eu lírico carrega um pouco de pessimismo ao se questionar por que seu parceiro não segura suas mãos. As composições trazem um eu lírico que conquista o amor pouquíssimas vezes, e que, consequentemente, se torna alvo de parceiros agressivos.

Morte e violência na busca pelo amor romântico

A penúltima faixa, intitulada How Can I, é uma das mais sombrias na sonoridade e na letra. Com batidas fortes, som falhado e a voz distorcida, o eu lírico compara o fim de um relacionamento com a morte de um parceiro, além de colocar a paixão como um vício, com efeitos colaterais semelhantes à abstinência. Novamente, a vulnerabilidade do corpo se faz presente, tanto na saudade relacionada à morte, quanto na paixão entendida como uma droga.

As faixas intercalam o amor juvenil alegre com relacionamentos conturbados e, por vezes, abusivos, como na faixa Stay Away. A violência disfarçada de amor corta a pele do eu lírico como uma flecha; a letra discorre sobre um ex-parceiro agressivo que perturba a personagem em seus pensamentos, como uma maldição.

Além disso, ela questiona a Deus por qual motivo teria que lidar com algo tão traumático. Essas lembranças perturbadoras são como um fantasma que assombra o eu lírico e novamente dão um toque romântico ao álbum.

Juventude, vulnerabilidade e honestidade

As composições apresentam um eu lírico juvenil, que oscila entre o pessimismo e a esperança, em um mundo prestes a desabar. Os cataclismos descritos por Charli estão intimamente ligados à deterioração dos corpos, física e espiritualmente.

O eu lírico sente toda decepção como um sinal apocalíptico, sujeitando-se a namorados que lhe devoram a alma, arrancam sua pele e o levam à insanidade. Diferente de Brat, com uma Charli adulta, True Romance apresenta uma compositora em seus primeiros passos – na música e nas relações humanas.

Charli xcx e o ultrarromantismo distópico em "True Romance"
Charli xcx em foto oficial para promover o álbum True Romance. O cabelo colorido e a maquiagem pesada nos olhos marcaram a estreia | Foto: Dan Curlin

De forma transparente, Charli xcx não teve medo do grotesco e do erótico, além da coragem de mesclar elementos tão típicos do ultrarromantismo com signos contemporâneos, como menções às redes sociais e aos ídolos pop dos anos 2000.

Além disso, investiu em uma sonoridade muito diferente do pop dos anos 2010, com fortes influências dos anos 1980, sem ignorar públicos de nicho, como adolescentes desesperançosos em fóruns do Tumblr.

Brat se torna o fenômeno de hoje devido à peculiaridade de Charli em sua estreia, que se mostrou vulnerável e sem medo de abordar assuntos sombrios ainda tão jovem – na vida e na música.

Escrito por:

Estudante de Russo na USP, fã de Red Velvet e degustadora profissional de refrigerante de cereja. Acredita piamente que assistir Trainspotting e ler Gógol são as curas para os males do mundo.
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