Ninguém Nasce Herói: uma distopia política atemporal

Ninguém Nasce Herói: uma distopia política atemporal

Poucas são as armas mais poderosas do que o punho de um homem: com ele se desfere o mais pessoal dos golpes, a marca mais resistente ao tempo, a mais temida das contra medidas. Pois ele que sustenta os dedos rijos, dedicados a transformar pensamentos em palavras. Sonhos em discursos. Paixões em transcritos. Universos em livros. E talvez tenha sido com o ímpeto de dividir sua visão de mundo conosco que o autor brasileiro Eric Novello presenteou nosso país com a obra “Ninguém Nasce Herói“, uma verdadeira lição sobre democracia e inclusão.

Trama política atual em “Ninguém Nasce Herói”

Imagine se o Brasil fosse um país governado por uma política extremamente nacionalista, cujo presidente em exercício usou de artimanhas para chegar nessa posição, dentre elas o crescimento estrutural de milícias, implementação do vigilantismo, concessão de poderes ilimitados aos militares e, por fim, centrando seu discurso de salvar a pátria sob o escudo ilusório que a fé proporciona aos seus devotos. E quando um movimento se edifica na religião e dela usa para angariar simpatizantes, o líder político, por consequência, ganha um status de Messias. Este homem prometido virá falando a língua do povo, mas com a mente voltada para a elite e suas ganâncias pessoais. Enquanto a população continuar sob efeito do seu medo ou encanto, seu governo continuará.

É num cenário brasileiro de completo alerta e privações das suas mais íntimas escolhas, como a sobre quem você tem direito a ser, que o livro “Ninguém Nasce Herói” se desenvolve e “O Escolhido” chegou até a presidência nacional. Mesmo seu título reforça o papel messiânico enraizado na egocêntrica figura autoritária.

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O livro de Eric Novello pode ser lido tanto como a história de um personagem, nosso protagonista “Chuvisco”, ou do Brasil. A mão narrativa firme do autor nos faz visualizar muito bem o cenário sombrio no qual o país foi se afundando antes de cair nas mãos do “Escolhido”. Alguns podem achar que a obra é uma provocação específica, quando, na verdade, é uma reflexão inteligente sobre o que acontece quando a população normatiza a violência, opressão e desigualdade. Quando o homem acha que está acima do outro por pertencer a uma classe, raça ou religião diferente. Spoiler alert: você não está acima de ninguém

E Novello demonstra isso no desenrolar de sua trama política. Ele tem também o cuidado de trazer personagens principais que pertencem às mais variadas esferas, entregando cores e vida para uma São Paulo extremamente envolta no cinza, no qual as patrulhas do Escolhido tentam fazê-la se afundar. 

Mencionando São Paulo, “Ninguém Nasce Herói” transporta aqueles que nunca conheceram a cidade diretamente até ela. Como escritora que nunca esteve na cidade, não posso dar minha ratificação de que tudo escrito é verdadeiro, mas garanto o sentimento de sermos levados direto para a cidade, tamanho o carinho e precisão com a qual o escritor se empenha em retratar a metrópole.

Entre Ficção e Realidade 

Mergulhar na história do personagem Chuvisco pode acabar sendo uma experiência não muito confortável para aqueles mais engajados com a realidade política e social do brasileiro. A ficção distópica, por muitas páginas, perde a sensação de fantasia e ganha caráter histórico ou uma espécie de alerta profético. Muitos sinais encontrados na narrativa se espelham em nossa realidade: a intolerância em ascensão, o militarismo, crescente conforto social em expressar preconceitos publicamente, censura cada vez mais constante, tudo acontecendo enquanto uma grande parcela populacional adormece em apatia. 

A experiência que temos no livro, por exemplo, é a de que a revolução proposta começa justamente por aqueles que foram os mais atingidos: as vítimas marginalizadas da sociedade. E a mudança tem de vir das ruas. O despertar do cidadão é o elemento vital na transformação do cenário em “Ninguém Nasce Herói”. Enquanto ele não percebe o caos no qual estão envolvidos e não se engaja, é difícil acontecer uma mudança de fato. Na história, temos como agente o protagonista Chuvisco, que se envolve com os mais diversos aspectos do engajamento de ativismo. É através de seus olhos que acompanhamos a mudança acontecer, conforme ele mesmo vai evoluindo também.

O que há de belo

Existe beleza mesmo em tempos sombrios. Há esperança no ser humano e em sua dignidade. Novello tenta extrair o melhor dela em seus personagens, criando sua própria experiência de “found family” (trata-se de uma trope recorrente na literatura, que significa uma família que se encontra, se forma por escolha na vida). Os amigos do protagonista formam um grupo que não necessariamente coexistem todos entre si, mas todos exercem uma essencialidade em sua vida. Chuvisco precisa deles para sobreviver e sabe muito bem disso. O reconhecimento vem logo cedo no livro, em frases carinhosas simples que ele fala em primeira pessoa como narrador principal da história. Todo agente da própria vida precisa de um motivo para seguir em frente. 

De tempos em tempos, tal amparo pode ser uma pessoa. Chuvisco encontrou num grupo de amigos o reflexo de si mesmo – e esse reflexo pode também ser o espelho de algum leitor, tamanha a diversidade da família que ele escolheu para chamar de sua. No entanto, o que torna tais personagens mais próximos de nossa realidade e dão ainda mais vontade de conhecê-los, são seus defeitos e imperfeições. Novello não tenta nos transmitir um ideal de amizade inatingível, pura, imaculada. Ele nos entrega algo caloroso, real, que parece um longo abraço quando seu corpo está prestes a se entregar: estes são os verdadeiros amigos de Chuvisco. Aqueles que não deixam ele se render ao cruel destino que o Escolhido (presidente da narrativa) tenta aplicar aos brasileiros “subversivos”. 

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Ninguém Nasce Herói, livro de Eric Novello, foi lançado pela editora Seguinte.
Ninguém Nasce Herói, livro de Eric Novello, foi lançado pela editora Seguinte.

Com um pano de fundo tão trabalhado em reprimendas, seria fácil escapar para a rota dos coadjuvantes esperançosos e perfeitos. Do protagonista brilhante. Do sopro de esperança a cada virar de página. Mas não, aqui as coisas não funcionam bem assim, algo que acaba tornando a leitura por vezes um pouco indigesta. Mas a dificuldade fica apenas no plano emocional, na projeção do nosso mundo ser tão parecido com o de Chuvisco, Gael, Amanda… Dessas pessoas que sentem medo, entram em pânico, sentem ansiedade, perdem o rumo. Mas, no fim do dia, arranjam forças para seguir em frente. Para lutar. Sabendo que o sistema conservador ganha quando as vozes se calam. 

2017

O que aconteceu no momento em que o livro foi lançado? Bom, a história figura meses após a eleição Republicana dos Estados Unidos e o Impeachment brasileiro, simbolizando, assim, a virada conservadora do nosso país. Essas são observações curiosas para pautar os próximos comentários. Na época do desenvolvimento do livro, o autor tinha apenas um esboço de para onde o mundo estava caminhando. Fazer uma leitura do livro na época do lançamento e outra agora, acaba sendo uma experiência bem diferenciada. Mais assustadora, digamos assim. Isso porque vários outros países fizeram uma guinada na direção elaborada nas páginas do universo fundamentalista do nosso herói Chuvisco. 

Sobre como tudo aconteceu, nunca temos informação suficiente, apenas algumas pequenas exposições que acabam dando espaço para o leitor formar sua própria corrente de pensamentos. Mas é uma decisão compreensível e bem acertada do autor, por estimular que o leitor reflita sobre como podemos chegar naquele mesmo lugar. Sobre o flerte com o fanatismo existir na vida real tanto quanto na ficção. 

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Outro detalhe importante é da narrativa não ser enfatizada nos organismos de violência e opressão. O foco continua sempre nos personagens principais e em seu cotidiano, como lidam com o Estado e em seus mecanismos de combate ao sistema repressor. É justo, pois já temos diversos outros contos com ângulos virados para esse lado. Fiquemos, então, com a companhia de um grupo que passa pelas dificuldades de pessoas regulares e tentam enfrentar uma luta que parece impossível de ser vencida. 

E nisso acabamos por perceber que a vida continua se adaptando à situação, simplesmente ignorando tudo ao seu redor: que tudo continue acontecendo, desde que não me afete severamente. Portanto, é preciso abrir não apenas dos nossos olhos, como dos próximos, com pequenas atitudes – esta é uma das mensagens do livro. Não que seja encargo de minorias tornar o ignorante de repente empático consigo, apenas compreender que, muitas vezes, não haverá um nome. Um líder. Um herói. A mudança passa pelas mãos de pequenas vozes, que quando unidas, tornam-se o mais forte instrumento de todos. Esperar por heróis pode ser um caminho sem volta, ou no mínimo, bastante demorado. 

Catarse em “Ninguém Nasce Herói”

Dentre os vários elementos presentes na vida de Chuvisco, o mais íntimo deles talvez seja seu processo de “catarses criativas”, um estado onde ele não consegue inicialmente diferenciar realidade de imaginação, e sua mente transita em estado de puro êxtase. A escrita de Eric Novello se encarrega de descrever com detalhes tudo que o narrador está imaginando, e o leitor vai junto com ele perambulando pela imaginação do protagonista – em alguns momentos, ele pode se confundir um pouco entre o que é real ou não, mas a sensação inicial remete ao que o próprio Chuvisco sentia no começo de suas catarses. 

Desde cedo ele teve de fazer acompanhamento psiquiátrico para cuidar das catarses, e o relacionamento dele com seu médico é tratado na história. Aliás, um ponto alto do livro é o fato das catarses serem abordadas com bastante cuidado não apenas por Chuvisco como por todos ao seu redor. Elas influenciam o personagem em todos os aspectos de sua vida e de forma bastante respeitosa, não sendo apenas um “fator de choque” colocado ali para um adereço a mais. O cuidado feito merece ser pontuado, visto não ser lugar comum no desenvolvimento em plots de cunho psicológico que vemos por aí. 

O que há de se esperar?

No horizonte de Chuvisco, existe esperança. Mas ela veio com bastante custo. A sensação é um tanto… Triste. E ao mesmo tempo, reconfortante. Existe um senso de realidade no final da história. Algo que para os leitores pode ser lido de maneira diferente, mas sempre com a sensação de nada ser muito longe do possível. Longe do que poderia ser. É um trabalho bem feito, finalizado de acordo com tudo apresentado ao longo do processo, numa história repleta de arcos protagonizados por jovens dos quais poderíamos usar a coragem como exemplo em nosso dia a dia. Não que seja fácil. Não é. 

Torna-se cada vez mais insustentável ir de encontro ao estabelecido pela norma, cada vez mais tolerável ser intolerante. A literatura nacional é uma fonte de inspiração a ser sempre usada, e dentro dela existe todo um segmento de escritores dispostos a nos dispor com o melhor de si. Eric Novello nos entregou um livro de escrita quase poética, detalhado, com personagens realistas e uma narrativa distópica que flerta com a realidade. Um livro que todos deveriam ler, sendo uma experiência que pode muitíssimo bem ser um presente para aquela pessoa que você quer ajudar a abrir os olhos, mas não sabe como abordar. Talvez um livro seja um bom presente.

Não há momento ideal para indicar a leitura de “Ninguém Nasce Herói” e visitar a imaginação de Chuvisco, conhecendo as desventuras valentes dele e seu grupo. Infelizmente, a atemporalidade vai sempre prevalecer perto do que é conservador. Mas do seu lado, caminhando a largos passos e sem cair, a esperança permanece na forma de um grupo diverso e as mãos unidas. 


Ninguém nasce herói

Eric Novello

Editora Seguinte

384 páginas

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Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Escrevo onde meu coração me leva. Apaixonada pelo poder das palavras, tentando conquistar meu espaço nesse mundo, uma frase de cada vez.
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