A primeira e a segunda parte de “O Mundo de Sombrio de Sabrina” foram absolutos sucessos de recepção em seu lançamento. Estreando no dia 24 de janeiro, a terceira temporada chega com o mesmo tom sombrio e satírico mantido pela segunda parte da trama, no entanto, peca em achar a linha narrativa e amarrar as possibilidades do roteiro.
AVISO: O texto abaixo contém spoilers da 3ª temporada
Expansão da mitologia infernal
Desde o começo da nova temporada somos apresentadas ao inferno – e, nesta parte, a série consegue manter a construção de sua mitologia tão bem quanto na primeira e segunda partes. Uma das grandes sacadas de Sabrina é o jogo de palavras e representações do inferno e de satã que, aparentemente sutis e bobas, acabam criando um tipo de humor satírico com a nossa concepção de sociedade e línguas ao cristianismo e figuras divinas. “Filha de um anjo!” como xingamento, por exemplo.
O inferno se apresenta na terceira temporada como uma nova terra, todo um “país” subdividido em cidades, florestas, partes diferentes – uma capital. A construção metafórica dos espaços infernais, de suas figuras e o embasamento das sátiras ali elaboradas se coloca com a mesma sutileza e “bobice” do que vimos com a linguagem.
A série em si é toda feita de representações caricatas dessas figuras, é a sua proposta, mas perceber a sutileza com que cada figura traz embasamento é um dos pontos positivos da narrativa. A capital se chamar Pandemônio, as relíquias demoníacas estarem ligadas às violências sofridas pelo Nazareno, os reis demoníacos, tudo é feito de caricaturas – mas, ao se observar, demandam certa pesquisa e certa amarração para funcionarem.
Fortalecimento das figuras femininas em O Mundo Sombrio de Sabrina
Outro ponto forte do que a série havia trazido até aqui, as figuras femininas saem da segunda temporada para um novo ciclo de fortalecimento, apesar dos obstáculos e confrontamentos. Logo nos primeiros minutos do episódio de abertura da nova temporada, vemos a continuação do dilema de Zelda (Miranda Otto) e Hilda (Lucy Davis) – principalmente de Zelda – em não mais venerar Lúcifer (Luke Cook), o homem que as subjugou e traiu na temporada passada.
Ao assumir as rédeas da Academia com a fuga de Faustus Blackwood (Richard Coyle), Zelda se vê sem saber para quem rezar e para quem pregar junto aos alunos – mas fica firme na decisão de não mais honrar o nome de Satã. É aqui que a figura de Lilith (Michelle Gomez) retorna, agora autoproclamada Rainha do Inferno. Enfrentando uma guerra civil para ter seu novo posto respeitado, é quase divinal (para usar um jogo de palavras) a cena em que, do seu trono demoníaco, ela houve as preces das bruxas da Academia em seu nome.
O próprio desfecho da terceira temporada é uma ode à narrativa da série de fortalecer as identidades femininas e as redes de apoio entre mulheres. Com o coven perdendo sua força ao renegar Lúcifer, a tentativa mais forte e sólida de algum tipo de proteção é o chamado às bruxas antigas em pedido de ajuda. Mesmo irritadas com a convocação forçada, elas concordam em ajudar o coven ao ouvir o apelo Zelda.
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Daí por diante a temporada constrói, no que talvez seja o plot mais bem amarrado da história, o respeito – apesar da irritação e desgosto mútuo – que essas mulheres têm minimamente entre si. E, principalmente, o entendimento da necessidade de proteção de umas com as outras.
Na resolução final do problema de enfraquecimento do coven, a sensação de que a série constrói uma ideia de matriarcado potente e a elevação da figura feminina atinge seu ápice: após uma revelação no limbo entre o mundo dos vivos e dos mortos, Zelda entrega seu coven à Hécate, simbolizada na mitologia de Sabrina como a representação Deusa Trina, jovem, madura e idosa.
Quem Sabrina se tornou?
Porém, ao mesmo tempo em que acerta com a construção da aura de matriarcado em suas pontas e personagens secundárias, a terceira parte de “O Mundo de Sombrio de Sabrina” chega com um incômodo – desde o trailer, diga-se de passagem – ao construir o dilema inicial da personagem principal no início da temporada.
Na primeira parte, Sabrina (Kiernan Shipka) precisa lidar com o conflito entre sua vida bruxa e seu relacionamento mortal com Harvey (Ross Lynch). O namoro com Harvey é o pontapé inicial, mas consegue abrir espaço para entendermos que o que prende Sabrina à vida mortal é muito mais do que ele; soma-se aos amigos, Roz (Jaz Sinclair) e Theo (Lachlan Watson), à vivência na escola e às atividades de uma jovem “normal”. Entretanto, o contraste é direto com o que vemos na terceira temporada – principalmente nos primeiros episódios – e na continuação de seu relacionamento com Nick (Gavin Leatherwood).
Ao final da segunda parte, Sabrina descobre sua origem: ela é a verdadeira “herdeira” do inferno, filha de Lúcifer, uma Morningstar. E seu pai quer forçá-la, ao ser temporariamente derrotado, a reclamar o trono infernal para si. Paralelamente, Lúcifer está preso ao corpo de Nick e os dois foram arrastados ao inferno para servir à rainha recém-proclamada Lilith.
Desde o trailer o incômodo se apresenta porque Sabrina, uma personagem feminina que, apesar de envolta em clichês menores, fora até agora representada com desejos, ações e decisões tomadas completamente para além de interesses amorosos em homens, parecia unicamente movida neste momento por seu desejo por Nick e por salvá-lo – passando por cima de todo o resto. No trailer, podia-se dar o benefício da dúvida à sensação por estar aberto a brincadeiras e construções de mistério, mas essa representação duvidosa se manteve.
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Após largar mão da própria família e, inclusive, do conforto dos amigos para descer ao inferno em busca de Nick, Sabrina é confrontada pelo próprio pai e não pensa duas vezes antes de reclamar o trono infernal – aparentemente, pela construção da narrativa, unicamente por causa de Nick. E é isso que vemos no decorrer dos próximos episódios, de forma mais explícita ou diluída: grande parte da narrativa de Sabrina, suas questões, medos e motivação – que antes eram mais individualistas, para o bem ou para o mal – agora estão completamente envoltas na figura de Nick e no seu amor por ele.
O que cria a próxima contradição da narrativa. Na segunda parte, vimos a evolução de Sabrina ao lidar com seus sentimentos por Harvey e aceitá-lo como amigo e companheiro de Roz. Começamos a terceira parte já sendo apresentadas a essa nova narrativa de uma Sabrina quase completamente dependente de Nick – mas, com a chegada dos últimos episódios, começam pistas em cenas e visões de Roz de que talvez Sabrina e Harvey ainda sintam algo um pelo outro, de uma forma completamente solta no enredo que se constrói. Assim, o plot não se amarra, e ao juntar as sensações, nenhuma das duas construções parece se consolidar na série.
A força dos personagens “secundários” em O Mundo Sombrio de Sabrina
Mas, ao tentarmos entender toda a confusão com a construção da personagem principal, temos outro reforço de narrativa que, aos trancos e barrancos, funciona: o fortalecimento de personagens secundárias na trama da história, com diversos destaques.
Prudence (Tati Gabrielle), que roubou a primeira parte e ganhou mais espaço na segunda, está ainda mais em cena ativamente na terceira. Sua personagem consegue manter a dualidade que foi apresentada desde que foi introduzida – não se pode julgá-la por boa ou má, mas como uma humana (ou melhor, bruxa) complexa ao buscar sua identidade e seus objetivos.
Sua relação com Ambrose (Chance Perdomo) funciona perfeitamente ao encaixar nessa premissa – apesar dos problemas, Ambrose constrói uma vida, uma dupla de ação, ao lado dela. Nenhum dos dois está completamente focado no outro da forma problemática que poderia ser.
No entanto, o que esperávamos ver mais de Roz e Theo acaba se perdendo um tanto. Suas jornadas identitárias parecem diluídas na narrativa, de forma mais fraca do que as pontas que foram deixadas ao final da segunda parte. Porém, é a partir de Theo que temos a introdução de um novo e interessante personagem – e de uma nova relação destruidora de estereótipos.
Assistimos a descoberta cuidadosa de Theo e de sua identidade ao longo da primeira e segunda partes e era esperado vê-lo agora, completo, na terceira. É aqui que somos introduzidas a Robin (Jonathan Whitesell): novo estudante na escola, que imediatamente se identifica com Theo.
A construção do relacionamento dos dois é feita de forma delicada e respeitosa. Mesmo que a relação passe por uma “mentira”, o cuidado é trabalhado entre eles para que tudo seja natural e se mantenha dessa forma. É a representação “desenhada” do que falamos quando nos referimos em naturalizar relações LGBTQ+ em narrativas: é importante mostrar seus obstáculos e jornadas identitárias, mas também é interessante narrativas naturalizadas e sutis.
“Vilões” quase sem força
Contudo, um personagem secundário introduzido nesta terceira temporada que esperamos que tenha força de antagonista, frustra. Caliban (Sam Corlett), ao desafiar o trono de Sabrina, com Lúcifer jogado para escanteio, promete ser o “vilão” e atacar Sabrina e o coven, mas não consegue. Ou consegue fracamente, de forma apagada e mal aproveitada pela narrativa da série.
A verdade é que nenhum dos “vilões” desta temporada consegue ser semeado de forma convincente ou potente com as histórias apresentadas. Mesmo a ameaça dos Pagãos – outra grande promessa introduzida na série e que demonstra que há embasamento – e o retorno de Blackwood, agora munido de uma força oculta inexplicável, acabam se arrastando de forma confusa e perdida até mesmo para entender sua ameaça. Parece que roteiro e direção quiseram contemplar diversos fronts de ataque às personagens, mas não souberam muito bem construir nenhum. E, ao final, há pontas soltas demais para que a série tenha tempo hábil de solucioná-las de forma sólida e gratificante.
As confusões de se mexer com o tempo
Um dos plots mais confusos da temporada, principalmente do desfecho, é a introdução das magias com o tempo e a maneira que são utilizadas na mitologia da série. A segunda e terceira relíquias demoníacas precisam destas magias para serem resgatadas (e até que o entendimento de como funcionam neste momento do resgaste é plausível), mas quando Sabrina decide utilizar a oportunidade de mexer com o tempo para burlar as regras e trazer o desfecho ao seu dilema entre reinar no inferno ou permanecer na terra, tudo vira uma grande bagunça.
Primeiro, o fato de que, agora, Sabrina deseja reinar no inferno por sua livre e espontânea vontade parece solto na história. Fomos até o último episódio colocadas a acreditar que Sabrina só reivindicou o trono por causa de Nick, portanto essa súbita revelação de que ela já tinha o desejo de reinar não foi bem tecida para chegarmos ali.
Segundo, não é compreensível de forma nítida, para além da decisão talvez imatura de Sabrina, de que forma ela consegue burlar o tempo e se manter nos dois lugares ao mesmo tempo. Ou de que forma a magia funcionou para que ela pudesse manter a situação. A primeira pergunta é como a retirada de uma linha temporal dela não afetou a existência da outra porque, a priori, nada indicativo disso acontece. Mas talvez isso seja abordado na quarta temporada, que já está confirmada.
Ao final de “O Mundo Sombrio de Sabrina”, o que fica é uma desconfiança das amarrações do roteiro e da direção de entender que rumo dar para os desfechos da obra. Dessa maneira, somos apresentadas a plots arrastados por toda a temporada, que culminam num episódio final com a tentativa de resolver diversas pontas soltas e apresentar bons ganchos para a próxima temporada. Assim, Sabrina ainda consegue manter um estrondoso sucesso para a Netflix, mas seus plots mal direcionados e a bagunça em suas pontas podem ser escorregadias demais.