O body horror na ficção científica de David Cronenberg

O body horror na ficção científica de David Cronenberg

David Cronenberg utiliza do horror e body horror na ficção científica. Observando em seus filmes, ele traz um novo direcionamento acerca do uso do corpo humano, da sexualidade e das questões sociais para criar uma narrativa de denúncia e expressão, trazendo em evidência a relação das pessoas com a tecnologia e como esta pode mediar as modificações corporais.

O audiovisual que o diretor constrói em cima da ficção científica tem como base um corpo híbrido, mutável, como se pode ver nos seguintes filmes: homem-inseto em A Mosca (1986), homem-máquina em Crash- Estranhos Prazeres (1996), corpo mutante em Enraivecida na Fúria do Sexo (1997), automutilação/mutilação em Crimes of the Future (2022). E isso tem a ver com seu fascínio pelo corpo como uma vez declarou: “Eu acredito que o corpo humano é o primeiro fato da existência humana. E, para mim, tudo deriva disso: filosofia, religião. Tudo deriva do corpo e da certeza da mortalidade humana. É natural que os meus filmes se foquem nisso.

A representação do corpo transformado pelas novas tecnologias medicinais se caracteriza por meio do contínuo remodelamento, dos implantes e da admiração pela imitação e outros. Ao colocar representações de um corpo considerado não belo, grotesco, Cronenberg confronta a ideia clássica e não tão inédita do cinema sobre um corpo, como algo a ser preservado, belo, repaginando assim o conceito da beleza e do gênero do horror no cinema. Apresentando para o cinema uma ótica diferente sobre o corpo, que acaba se tornando o personagem principal em sua cinematografia.

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As narrativas do cinema em relação a ficção científica trazem a modificação corporal, seja em um filme mais trash, cult ou até em blockbusters, como esquemas (fazendo-o se tornar previsível). Isto é, roteiros que vem sendo utilizados e reutilizados por muitos anos no cinema, principalmente em adaptações de livros ou HQ, como, por exemplo, em Homem-Aranha da Marvel ou em It – A coisa do Stephen King. Porém, a diferença entre estas adaptações e o inédito que o cineasta canadense tenta trazer, é que ele, de alguma forma, traz reflexões e críticas sobre as transformações corporais em imagens perturbadoras e cenários pós apocalíptico, em alguns casos.

O diretor David Cronenberg segurando uma das criaturas dos seus filmes.
Cronenberg (getty images)

O Horror e o Body Horror

No livro The Philosophy of Horror, Thomas Fahy, introduz e desenvolve os aspectos do gênero horror, observando que este tem o dom de se transformar, fazendo com que seja um gênero versátil, com capacidade de inovação, além de sua relação com outros gêneros. Segundo Fahy, “pode deslizar entre a alta e a baixa cultura, incorporando uma gama de gêneros e tons. Pode ser grave ou cafona, assustador ou ridículo, e pode levantar questões profundas sobre o medo, a segurança, a justiça e o sofrimento.

Com isto, o cinema de horror apresenta em sua filmografia características inquietantes, tanto na concepção do corpo quanto na projeção que o corpo (ao enunciar) pode trazer para o telespectador, mirando no desagradável e sobrenatural como forma de extravasar o desconforto do mundo.

A relação do horror com o medo é muito intrínseca, porque ao longo do tempo, tanto na literatura quanto no cinema, esses dois começaram a ser associados um ao outro, fazendo com que a linha tênue seja mínima. Segundo o escritor H.P Lovecraft, no texto Supernatural Horror in Literature, ele faz uma historiografia acerca da literatura de horror, começando da escola gótica até o contemporâneo da sua época.

De acordo com o autor, há uma ligação intertextual do texto com os seus leitores, e ele chama esta relação como “medo do desconhecido”. As emoções causadas pelo desconhecido ativam em nossos subconscientes, psicologicamente falando, a vontade de se agarrar em alguma coisa. Assim, Lovecraft associa essa vontade com a predisposição que o ser humano tem  com alguma religião ou superstição, para explicar o oculto que rege o universo.

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Essa observação de Lovecraft faz com que a sociedade atribua significados nos sentimentos negativos. Freud explica que o sentimento relacionado ao desconhecido é: “na realidade, nada de novo ou alienígena, mas algo que é familiar e há muito estabelecido na mente e que tornou-se alienado apenas através do processo de repressão”.  Além disto, ele esclarece que a ficção cientifica é uma fonte clara do desconhecido, porque ela tem os caminhos mais variados para ser trabalhada, isto é, ao contrário da realidade, as histórias são mais críveis quando se forma a partir do estranhamento na ficção.

Desta forma, o gênero do horror, ao transmitir sentimentos de medo e desgosto, traz consigo uma espécie de sedução que alimenta a curiosidade do ser humano, deixando alguns estigmas da sociedade de lado, para dar voz aos sentimentos negativos reprimidos na sociedade, criando contextos e ligações do gênero com temas e subgêneros.

Por mais que em alguns filmes haja a subversão de fugir de alguns estereótipos do cinema de horror, o grotesco do corpo, como forma de horror, é umas das formas mais concretas de ativar provocações do medo nas suas representações. Fazendo-o se ligar com um subgênero, o body horror. Este termo é dado em relação ao crescimento do grotesco corporal, fazendo com que seja criada uma vertente que se populariza ao longo do século XX, principalmente nos EUA.

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O body horror, como subgênero, explora no espectador o máximo de si para causar-lhe ansiedade. A ansiedade, atualmente, se acentua cada vez mais por conta do aumento das novas mídias digitais, como as redes sociais, e também das tecnologias e como o seu desenvolvimento traz efeitos humanitários que fazem a sociedade questionar até onde pode ir as máquinas.

E isso entra em um campo no qual a ansiedade se incorpora através da visualização do ser humano no espelho, o quanto deixamos o natural se enfraquecer, para dar lugar ao metálico e ao plástico (aumentando os riscos de aquecimento global). Então, o cinema do horror corporal perturba o homem até que ele entre em colapso com a máquina, redes sociais, com a tecnologia e principalmente com o seu próprio corpo.

O cinema de David Cronenberg

David Cronenberg foi um dos diretores que surgiram nos anos 70 que conseguiu se estabelecer no cinema de horror, porém tanto a critica quanto o público tem uma divergência em como enxergar os seus filmes, fazendo com que haja um afastamento entre o que o diretor realmente quis passar em suas obras x como as pessoas interpretam.

Cronenberg, de vez em quando, é acusado de não saber interpretar os seus próprios filmes, porque a sua crítica, enredo, muitas vezes não se entende de primeira, nem de segunda, o que ele quis dizer, o que quis passar, qual a sua motivação para aquilo, abordando um questionamento se é necessário realmente haver significados para tal coisa no mundo da arte.

Em alguns casos, uma obra só é compreendida muitos anos depois, porque naquele momento do lançamento as pessoas não entendem de imediato e isso ocorre constantemente nos tempos modernos. Martin Scorsese falou uma vez que: “Cronenberg é algo sobre o qual infelizmente não temos controle, no sentido de que nós não temos controle de nossa própria destruição iminente. Isso é que é tão claro a respeito de sua obra. Tão amedrontador. Tão perturbador.” E o canadense só respondeu “tomara que eu não os entenda”.

David Cronenberg sentado e segurando um copo com bebida durante a exibição do seu trabalho em Toronto.
David Cronenberg: Exibição em Toronto. Photograph: Frank Gunn/AP

Para que as pessoas conseguissem entendê-lo, o diretor, no livro Cronenberg on Cronenberg, escrito por Chris Rodley, explica os seus objetivos em relação a sua arte e filosofia de ver o mundo, além de explorar os gêneros do horror, da realidade e da ficção científica. O entrevistador adentra em um dos primeiros longas do Cronenberg, Shivers (1975), no qual ocorreram duas críticas, uma positiva e outra muito negativa, e isso fez com que ele tivesse uma reflexão sobre a interpretação que a sociedade tem tanto dele como de suas obras.

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É através dessa psicologia e temas que ele cria uma estética fascinante e repugnante ao mesmo tempo, fazendo com que a dualidade se encontre e acabe criando algo belo. O cinema de Cronenberg não é para ser simplista ou esteticamente bonito, muitos de seus filmes tem efeitos trash propositalmente, e é justamente por isso que ele utiliza destes feitos para confrontar as possibilidades do desconcerto que mostra o corpo humano como matriz do sofrimento.

Em entrevista a Handling (1990), Cronenberg explica que as transformações corporais tratam das inquietações da dualidade entre o cérebro e o corpo, porque grande parte das inquietações humanitárias é causada pelo terror de não saber do futuro, da morte, e isso faz com que a sociedade viva em constante estado de ansiedade por não compreender tudo. “Como é possível que um homem morra tendo uma falência física, enquanto seu cérebro conserva absoluta nitidez e clareza”.

Ao colocar o corpo como centro da narrativa de suas obras, Cronenberg não utiliza o conceito clássico do cinema, tirando este objeto enquanto unidade fechada, e apresentando-o como algo grotesco. Bakthin (1999), define o corpo grotesco como algo mutável, enquanto, o corpo clássico é contido dentro de si.

O diretor tem como base a transformação do corpo em seus personagens, e quando estes passam pelo martírio da existência humana, sejam metamorfoseados ou não, perdem de certa forma a essência das suas identidades. Mesmo que utilize imagens fortes, o cineasta tenta mostrar para o público o belo dentro da repugnância através do sofrimento humano.

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Se pensarmos pelo lado da psicologia, Freud, em O mal-estar na civilização, elenca três causas para os sofrimentos humanos: nosso próprio corpo; o mundo externo; e nossos relacionamentos com os outros. Cronenberg tenta trazer na sua filmografia estas três causas, explorando a recepção das narrativas ficcionais.

O pós-humanismo em Crimes of the Future

Em Crimes of the Future (2022), Cronenberg volta para as suas origens em mostrar um longa mais visceral. A narrativa deste filme é composta por dois personagens centrais, Saul Tenser (Viggo Mortensen) e Caprice (Lèa Seydoux). Juntos, ambos fazem performances ao vivo para a retirada de novos órgãos, e este show é elaborado como uma forma de arte, tendo como meio robôs-cirurgiões comandados através de um controle.

Neste mundo pós apocalíptico, em que os sobreviventes enfrentam mudanças corporais espontâneas, os protagonistas veem estas novas adições de órgãos como tumores que precisam ser removidas. Mas, tem um grupo opositor liderado por Lang (Scott Speedman), que quer as mudanças sejam adotadas, apesar de ter uma motivação por trás disto.

O filme também adentra na história de dois burocratas, Wippet (Don McKellar) e Timlin (Kristen Stewart), que registram obras de artes corporais e são admiradores de Tenser e Caprice. Além de haver a narrativa do detetive Cope (Welket Bunguê) que tentar manter a ordem neste mundo, em que com o tempo os humanos perderam a habilidade de sentir dor e as infecções deixaram de existir.

Focando mais em Tenser e Caprice, percebemos que a relação deles com as performances têm a ver com o desejo de preencher o vazio humano. Quando as lâminas encontram os corpos remete ao ato sexual, e ao longo do filme abre-se o questionamento se a cirurgia é o novo sexo. Em Crimes of the Future há uma discussão sobre os limites corporais, a nossa relação com a tecnologia, e a sexualidade.

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As relações sexuais e grotescas do corpo

Cronenberg destaca quando o sexual e o grotesco habita o mesmo espaço, porque o primeiro representa a vida e o segundo clama para obter a carne. A consequência de ambos estarem em conjunto no mesmo corpo faz com que o corpo seja mediador da vida e da morte. Tenser, ao se deixar levar pelo prazer sexual, acaba-se por se mostrar visceralmente, aproveitando do gozo a dor e o extravasamento.

É válido ressaltar em como a ambientação, criada pelo diretor, estimula o erotismo de certa forma. Com a criação do ambiente fechado, quando o enquadramento foca no casal de protagonistas, existe um estímulo para a sensualidade, revelando na fotografia o lado sexual, beirando quase no grotesco, pois todo o carnal é movido pela tecnologia e em algumas partes pelas vísceras.

Viggo Mortensen deitado no sofá com uma roupa preta, Léa Seydoux, na lateral esquerda, sentada, com um vestido vermelho e segurando uma taça, e Kristen Stewart , na lateral direita, agachada e com uma roupa azul clara. Cena do filme "Crimes do Futuro" (2022), de Cronenberg.
Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart em “Crimes do Futuro” (2022), filme de Cronenberg

Ao fazerem o ato sexual em forma de automutilação, Tenser e Caprice atuam em cenas de violência, mostrando para o público os dois atos mais instintivos dos seres humanos. Estes dois personagens buscam pelas novas possibilidades deste novo mundo, principalmente no âmbito sexual e tecnológico.

A maneira que Cronenberg apresenta estes dois temas mostra a dualidade entre a adequação dos novos padrões estéticos, fazendo com que o conceito do belo tenha que se reinventar (ou não), com a transgressão de como a tecnologia, por ter se avançado, desafia o belo, trazendo o questionamento se as novas convenções estéticas são o novo belo.

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Pensando em uma visão filosófica, é interessante pensar no conceito do eros, que passou por várias ressignificações ao longo do tempo. No grego antigo έpws, significa “desejo”, não exclusivamente por pessoas. No contexto da antiguidade, passando por Platão, eles invocam a apreciação estética pela beleza. Para eles, se ama com eros como um objeto, porque este participa da perfeição das formas, das ideais divinas. Então, este conceito é usado para capturar a estética ou anseio por fenômenos, objetos e obras, portanto, é o desejo pelo belo. Cronenberg mostra que sobre a terra somos belos apenas por um instante.

Platão ainda fala de epithymia”, no qual a parte inferior da alma traz os prazeres da carne e do desejo material. Pensando na primeira categoria do amor romântico, existe na visão o corpo aprisionado, dominando a alma espiritual. E Cronenberg refere-se neste filme o amor passional, trazendo entre Tenser e Caprice um amor sensual e sexual que se desenvolve através do diferente.

Os filmes do Cronenberg servem como demonstração de que o mecanismo do corpo- grotesco e híbrido surge a partir da manifestação da metamorfose, que coloca em cena um corpo que questiona a partir dos resultados repulsivos, projetando o subgênero do horror, o body horror.

Este se faz presente em narrativas que parte da singularidade do gênero, através de um local que transborda temas que poderiam ser classificados como previsíveis, como a volta dos mortos em corpos zumbis. Dessa forma, o body horror traz a inquietação do humano com seu próprio corpo, além de questionar se há algo de errado com ele, seja internamente ou externamente.

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Mesmo estando em uma espécie de zona de conforto, no que se diz respeito à sua direção, Cronenberg traz temas que, apesar de estarem em alta (como a padronização da beleza), retratam uma visão mais repulsiva acerca do sufoco e do fascínio, voltado para as origens do new flesh. Em suma, o diretor coloca o corpo humano como algo imperfeito, fadado a perder o controle quando se encontra em estado de metamorfose, deixando de lado o kafkiano e dando ênfase ao horror grotesco de perder o senso moral perante a sociedade.

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Sou formada em Letras Português, buscando me especializar em Elena Ferrante. Falo italiano fluentemente. E sou apaixonada por comédias românticas, seja livros ou filmes. Sempre busco procurar o amor romântico nas coisas.
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