No dia 08 deste mês, a Netflix liberou a segunda temporada de sua série original The Crown. Baseada na vida da rainha Elizabeth II, cada temporada se propõe a narrar os acontecimentos mais relevantes de cada década do mais longo reinado da Inglaterra. Ainda mais movimentada, a segunda temporada foca no período de 1956 a 1964 e agrada com os contornos que fornece a fatos notórios.
A primeira temporada de The Crown focou, sobretudo, nos problemas conjugais de Elizabeth (Claire Foy) e Philip (Matt Smith). A vaidade do príncipe grego e sua incapacidade de aceitar que a imagem da mulher se sobrepusesse à sua sempre, representaram entraves ao relacionamento, agravando-se após a coroação. Tais elementos continuam presentes na segunda temporada, que os aprofunda. Não obstante, a série insere ainda mais elementos políticos e aborda a perspectiva de outros conhecidos personagens.
A dor masculina diante do poder feminino
Ao fim da primeira temporada, Elizabeth propõe a Philip uma turnê real. A intenção de seu ato é abrandar o ego do marido, que assim, pode brilhar por si. Todavia, o distanciamento físico pode significar ainda mais dificuldades para um relacionamento já desgastado. Apesar de construir sua imagem perante o público, Philip ainda se mostra orgulhoso. É tomado pela cólera de ser casado com uma mulher mais poderosa que ele. Sem título britânico e sem uma função de importância, Philip precisa ser convencido a “participar” de seu casamento.
Infelizmente, não é o primeiro nem o último caso de uma mulher mais poderosa que precisa se rebaixar para agradar o orgulho masculino. Elizabeth, apesar de sempre destacar que ela é a rainha antes de ser a esposa, constantemente se dobra aos caprichos do marido. A situação se agrava pela moralidade exigida da realeza feminina.
As exigências masculinas perante o matrimônio
Enquanto outras esposas podem se divorciar diante da ausência e do adultério marital, Elizabeth precisa ignorar as atitudes de Philip. O grande intuito, de fato, é a tentativa de evitar escândalos que abalem seu reinado. Todavia, há também influência do estereótipo materno e da boa esposa. A rainha e a mulher precisam ser discretas nas suas relações, não podem atacar, precisam compreender o orgulho ferido de um homem sobreposto por sua esposa. A rainha e a mulher precisam dar ao homem o que ele precisa para se manter dentro da instituição do casamento. A rainha e a mulher precisam perdoar o homem que trai para o bem-estar da família e do reino.
Durante a temporada, as exigências de Philip levam a rainha a criar o título de Príncipe Consorte. O feito tem o propósito de diminuir o orgulho ferido o marido, que se ressente por ter uma esposa rainha e um filho herdeiro do trono, além da ausência de autoridade frente à corte de Elizabeth.
A mulher perfeita
Ainda que se esforce, os esforços de uma mulher dificilmente são suficientes à crítica. Elizabeth tentava conciliar a perfeição no reinado, no casamento e na maternidade. As críticas à sua imagem, porém continuavam. Tida como antiquada era criticada pela entonação de seus discursos, por sua aparência e por seu distanciamento do público.
É preciso considerar que os tempos mudam e com eles devem mudar seus líderes. No entanto é preciso reconhecer o teor das exigências que se realizam da figura pública feminina. Novamente o caráter maternal retorna. Elizabeth se mantinha fria, num patamar acima de seus súditos, tal como todos os nobres anteriores a ela. Mas a figura de uma mulher da década de 50/60 distante daqueles que se consideram seus “filhos” parece incomodar ainda mais, sobretudo quando as falhas são apontadas por um homem.
A máscara do conservadorismo
No final da década de 50, a rainha recebeu duras críticas do jornalista Lorde Altrincham/John Grigg (John Heffernan). A perspectiva de Altrincham foi recebida positivamente pelo público, o que mobilizou a realeza. Altrincham foi, então, chamado ao palácio, e algumas de suas dicas foram aproveitadas na modernização do reinado de Elizabeth.
Entre as sugestões fornecidas por Altrincham estava também o fim do baile de debutante, tradição incoerente frente aos avanços feministas. Apesar de abordar algumas dessas inovações, tais como o discurso de Natal transmitido via televisão pela primeira vez, The Crown se esforça em mostrar que as mudanças não ocorrem imediatamente. Muitas vezes são mudanças que mascaram o conservadorismo ainda remanescente.
O sonho do casamento
Enquanto Elizabeth enfrenta os problemas em seu casamento, Margaret (Vanessa Kirby) se ressente por não conseguir um. Após Elizabeth ter vetado seu romance com Peter Townsand (Ben Miles), Margaret se entrega a uma vida de vícios. Entre cigarros, festas e bebidas nutre o descontentamento por não poder decidir sobre sua vida – e nem encontrar o grande amor.
Ainda que Margaret seja mais moderna que Elizabeth, continua presa aos contornos de uma monarquia conservadora. Ao lado de sua vida inconvencional caminha uma Margaret que se recusa a negar os luxos da realeza. Em sua concepção é preferível viver uma vida de restrições a uma vida destituída dos bônus de ser uma princesa.
Quando o romance com Peter foi negado, Margaret não cogitou por muito deixar sua posição. E ela estaria errada? De modo algum uma mulher precisa renunciar à vida que possui por causa de um amor. No entanto, a princesa convive com a dor de não poder manter ambos. Afinal, é um sonho seu encontrar aquele com quem partilhará a instituição do casamento, firmada por meio de uma cerimônia estonteante.
O que se esconde no relacionamento real
Ao descobrir que Peter se casará com uma mulher 10 anos mais jovem, Margaret toma uma decisão importante. Há algum tempo mantinha um relacionamento com o fotógrafo Antony Armstrong-Jones (Matthew Goode). Impelida pela notícia pede-o em casamento. Como mostra a série, Antony, averso aos padrões sociais, embora apegado a alguns, não demonstra contentamento com o matrimônio. Isto, no entanto, não impede a união.
Em uma cerimônia ainda maior que a da rainha e transmitida pela televisão, Margaret e Tony se casam. Juntos, eles mantêm uma vida fora dos padrões reais, rodeada por festas e escândalos. Tanto Margaret quanto Tony aceitaram o casamento por motivações que vão além do desejo de unir-se a alguém. Pode-se, inclusive, inferir que foram mais motivações externas do que internas, referentes a expectativas sociais, apesar de ambos se mostrarem irreverentes a todo momento.
Tony revela-se como um personagem ressentido pelo tratamento de sua mãe. Aceita casar-se com Margaret para provar algo à mulher que não o reconheceu como ele acreditava merecer ser reconhecido. Margaret, por sua vez, deseja o casamento para cumprir com expectativas provenientes de uma sociedade conservadora que impõe às mulheres esse desejo. Mais do que isso, Margaret deseja um casamento para provar que pode ser melhor que sua irmã, sentimento reforçado pela imposição da rivalidade entre mulheres.
Duas fortes mulheres em oposição
E não só entre Margaret e Elizabeth reside a rivalidade mostrada em The Crown. O episódio 8 da temporada retrata o famoso encontro entre a rainha Elizabeth II e Jackie Kennedy (Jodi Balfour). Em um jantar extraoficial, o casal Kennedy comparece ao palácio. De um lado, a figura reconhecida por elegância e inteligência, esposa do então presidente norte-americano. De outro, uma rainha retratada por todos como conservadora e destituída de brilho ou autonomia.
Quando Elizabeth conhece Jackie, fica encantada por ela do mesmo modo que a maioria das pessoas. Uma fofoca, porém, quebra o encantamento. Após o jantar no palácio, Jackie é convidada a outro evento em que aponta suas perspectivas negativas acerca da rainha. Elizabeth é julgada tanto por seu desempenho quanto por sua aparência física. E descobre o julgamento de Jackie justamente quando buscava sua aprovação.
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O comentário da americana estimula Elizabeth a tomar iniciativas políticas no contexto da Guerra Fria. Sua atuação é reconhecida internacionalmente de forma positiva. Enquanto isso, Jackie, apesar de amada por todos enfrenta grandes conturbações em seu casamento com John F. Kennedy (Michael C. Hall), em meio ao uso de drogas e à violência.
Após tomar conhecimento de que seu comentário foi relatado à rainha, Jackie retorna à Inglaterra. Em uma conversa franca com Elizabeth expõe seu arrependimento. Aborda os problemas por ela enfrentados em um diálogo não apenas entre duas pessoas políticas, mas entre duas mulheres. Ambas enfrentavam problemas pessoais mesmo sendo figuras públicas. E o maior arrependimento de Elizabeth revela-se não dizer: eu compreendo e te admiro.
Assim, o que se inicia com a rivalidade promovida pela sociedade, torna-se uma exemplo de como as mulheres deveriam se apoiar, respeitar e admirar diante das dificuldades.
O machismo de pai para filho
O penúltimo episódio da temporada aborda o relacionamento entre Philip e Charles (Billy Jenkins). É certamente um dos mais emocionantes da temporada, pois constrói não somente a relação entre pai e filho, como demonstra as ferramentas de perpetuação do machismo. A difícil relação entre Philip e Charles é de conhecimento geral. O episódio busca, então, mostrar mais enfaticamente as raízes dessa conflituosa relação.
Philip é um príncipe grego, cujos pais se divorciaram quando ainda era criança. A mãe sofria de problemas psicológicos; o pai o negligenciava. Durante parte de sua vida, sua fonte de afeto era uma irmã apoiadora do nazismo. Durante a juventude, Philip foi mandado a um colégio interno da Escócia, o mesmo a que deseja enviar Charles.
Charles é retratado como um menino tímido que tem dificuldades em se relacionar com os colegas de escola. Desse modo, Elizabeth é aconselhada a envia-lo para Eton, um colégio próximo ao palácio e mais adequado à personalidade do príncipe. A ideia, contudo, é findada por oposição de Philip.
O estereótipo de homens fortes
Segundo o personagem, Elizabeth pode ter controle sobre o reino, mas a educação do filho é responsabilidade dele. Em sua concepção, um homem deve ensinar outro homem, independentemente do que é mais adequado para a criança. Talvez a escolha de Elizabeth fosse muito feminina para a condução de Charles. E Elizabeth é conivente pela ameaça de que Philip acabe com o casamento.
Segundo o príncipe, os anos na Escócia foram os mais difíceis da sua vida. A escola voltada para meninos focava na força física como construção dos homens, um estereótipo antiquado, mas ainda perpetuado. Como Charles não tinha aptidão ou desejo de se desenvolver nesse âmbito, senão para agrado do pai, teve dificuldades de adaptação, não obstante o distanciamento da família.
Isto revela como o machismo é perpetuado no âmbito familiar e como também prejudica os homens. Philip poderia ter se esforçado em compreender as necessidades do filho, mas foi movido por suas ideias do que é adequado a um homem antes de tudo. Por sua visão, a arte e o conhecimento geral são características femininas; a força física é masculina. Também, coloca em segundo plano o papel da mãe, como se Elizabeth por ser mulher tivesse menor poder na educação do filho homem.
A responsabilidade é sempre feminina
A segunda temporada de The Crown termina com um escândalo sexual envolvendo importantes figuras políticas da Inglaterra. O acontecimento terá como consequência a renúncia do Primeiro Ministro Harold MacMillan (Anton Lesser) e o abalo na relação entre Elizabeth e Philip.
Embora não haja comprovações, a série aponta o envolvimento de Philip no caso Profumo. A possibilidade de exposição das relações extraconjugais de Philip e as dificuldade políticas afetam a gravidez de Elizabeth, que se retira para um período na Escócia. Surgem, então, duas grandes questões.
Enquanto Elizabeth, mulher e soberana, está envolvida no seu dever como rainha e nos cuidados com a gravidez, Philip enfrenta os dilemas de ser apenas o marido de uma mulher importante. Como homem, ignora os esforços da esposa, absorvido pelos problemas de vaidade que o consomem durante toda a temporada. De certo modo, ainda culpa a esposa por sua ausência. De modo clichê justifica a traição pela ausência da mulher. A culpa, no fim, é sempre feminina, seja a mulher a adúltera, como no caso da esposa de MacMillan, ou a traída.
The Crown apresenta uma segunda temporada ainda mais movimentada. Embora o intuito seja retratar o reinado da rainha Elizabeth II, o faz com toques ácidos. Torna mais humanos personagens renomados, em aspectos tanto positivos quanto negativos. Apesar de ter sua direção e roteiro majoritariamente realizados por homens, consegue captar os feitos de Elizabeth para além de sua posição como rainha, mas também como mulher. Narra eventos significativos, desde os escândalos sexuais até envolvimento de indivíduos com o nazismo. E assim apresenta diversos pontos para reflexão acerca do mais longo reinado da Inglaterra.