“Histórias são tudo o que eu tenho”: amor e luto em “Lisey’s Story”

“Histórias são tudo o que eu tenho”: amor e luto em “Lisey’s Story”

Com o título de Rei do Horror, Stephen King é o responsável por mais de sessenta livros de terror, ficção científica, fantasia e não-ficção que se tornam favoritos do público assim que são lançados. Seu primeiro trabalho, Carrie, publicado em 1974, continua sendo um grande nome na literatura de terror, assim como o responsável pelo início da formação da base de fãs que seguem King ao longo de sua carreira. 

Publicado por Stephen King em 2006, Lisey’s Story foi o vencedor do prêmio Bram Stoker em 2007 e nomeado ao World Fantasy Award, no mesmo ano. King mostra sua habilidade na escrita ao combinar os elementos do terror psicológico com uma história de amor ao longo da narrativa.

Segundo o escritor, a ideia do livro surgiu após ele ter sido levado ao hospital com um caso sério de pneumonia. Enquanto estava no hospital, sua esposa, a autora Tabitha King, decidiu redecorar seu estúdio de escrita. Ao retornar para casa, King viu seus livros e pertences em caixas, vivenciando a epifania de como o local pareceria após a sua morte. Com esse incidente, Stephen se viu diante da ideia da narrativa de Lisey’s Story: a história da mulher de um escritor famoso, agora falecido, que têm de lidar com seu luto, relações familiares e fãs obcecados perigosos. Acontecimentos que também transportam, como de costume, um toque de sobrenatural tão característico de Stephen King.

 Lisey's Story
Cena de Lisey’s Story | Apple TV+ (reprodução)

Entrando na jornada de Lisey’s Story

Dois anos após a morte de Scott Landon (Clive Owen), acadêmicos não param de entrar em contato com Lisey Landon (Julianne Moore), sua viúva, para ter acesso aos papéis pessoais do falecido escritor, assim como seus manuscritos inéditos. Lisey passou os últimos dois anos explicando que ainda não conseguiu organizar os pertences do antigo escritório de Scott e é assim que somos apresentadas à ela, no meio do escritório de seu marido, tentando se encontrar em meio a montanha de papéis, livros, discos de vinil e seus sentimentos sobre Scott. 

É por meio de suas lembranças que descobrimos quem foi seu marido e os momentos importantes da vida dos dois. Conhecemos a história de amor de Lisey com Scott e o luto que ela sente pela morte de seu marido, assim como a presença de um novo fã obcecado pelo trabalho de Scott, ao ponto da loucura e violência. 

Lisey Landon (Julianne Moore) em Lisey's Story
Lisey Landon (Julianne Moore) | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

Em 2017 o autor demonstrou interesse em ver uma adaptação do livro como uma série de televisão, afirmando que esse era um de seus trabalhos favoritos e merecia um tempo maior de tela para ser adaptado, porém, somente em 2019 o desejo de King começou a ser realizado, com o interesse da Apple TV em transformar a narrativa em uma série de oito capítulos, com uma hora de duração cada.

Lisey’s Story foi produzida por J. J. Abrams (Lost, Star Trek, Star Wars: O Despertar da Força). Seus oito episódios foram dirigidos por Pablo Larrain (Neruda, Jackie) e teve um roteiro inteiramente adaptado para a televisão pelo próprio Stephen King. 

Com estreia em quatro de junho de 2021, a narrativa da série se mostra fiel à história do livro, mantendo momentos chaves encontrados na narrativa, levando a espectadora a mergulhar cada vez mais profundo na vida de Lisey a cada episódio.

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Apesar de possuírem enredos similares, a leitura do livro e a visão da série são duas experiências diferentes, já que o diretor Pablo Larrain possui um jeito interessante de abordar os acontecimentos, combinando bastante com o estilo narrativo de King. Larrain, assim como King, se utiliza de quebras constantes de narrativa para deixar a espectadora imersa nos acontecimentos, sem se esquivar de demonstrar a violência explícita escrita por King, colocando certa ênfase nos acontecimentos, deixando-os ainda mais desconfortáveis para quem assiste, portanto, é necessário consultar uma lista de gatilhos antes de assistir (disponível ao final do texto).

No início do primeiro episódio, Lisey pergunta ao marido em um flashback: “Por que elas [as histórias] são tão importantes para você?” ao qual ele responde: “Histórias são tudo o que eu tenho”. A conversa dos dois se passa em dois momentos da mesma cena: Scott e Lisey deitados na grama embaixo de uma árvore, seguido de um panorama dos livros presentes em um escritório, mostrando o nome do marido nas capas. A sensação, portanto é de um flashback que passa um ar de tranquilidade, assim como a entonação das falas realizadas pelos atores – sensação que permeia os primeiros episódios enquanto Lisey recorda momentos que passa com Scott. 

Lisey (Julianne Moore) e Scott (Clive Owen)
Lisey e Scott (Clive Owen) Imagem: Apple TV+ (reprodução)

Uma narrativa tecida por memórias

Um dos pontos interessantes da série é a construção das recordações de Lisey. Além do fato de que a espectadora só irá conhecer Scott pelas lembranças dela e daqueles que conviveram com ele, sua esposa também descobre eventos da vida do marido que desconhecia, assim como momentos que havia reprimido, redescobrindo momentos que passou com Scott. Dessa maneira, as memórias de Lisey gradualmente se tornam mais sombrias com as lembranças de acontecimentos complexos de seu casamento com Scott. 

Os flashbacks, que ajudam a construir uma tensão na narrativa, podem parecer repetitivos e cansativos, mas a repetição é necessária para a construção da memória e da introspecção dos personagens. Em comparação, nós também estamos constantemente presas em nossos próprios medos, nas memórias que às vezes ficam esquecidas, porém, quando nos lembramos, elas se tornam uma potência que constantemente retorna à superfície da mente.

amor e luto em Lisey's Story
Cena de Lisey’s Story | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

A série também brinca com a metafísica, testando os sentidos das espectadoras e criando uma experiência sensorial quando apresenta, para além do passado e presente das personagens, uma nova realidade, ou um novo mundo. Descoberto aos poucos pela própria Lisey, esse local se mostra escuro em sua essência, com alguns pontos de luz e cores, que parecem sempre atrair o olhar das personagens de quem assiste. Além da escuridão e estranheza do local, que lembra uma espécie de mundo de conto de fadas, a atração ocorre pelo ambiente idílico, de completa calma, que convoca os personagens a visitá-lo constantemente.

O sobrenatural descrito por King, presente nessa nova realidade, aparece também numa espécie de caça ao tesouro que Scott deixa preparada para que Lisey realize após a sua morte. O falecido autor afirma que os momentos mais felizes de sua infância foram quando seu irmão Paul planejava essa brincadeira para ele. Porém, logo percebemos que a caça arquitetada por Scott não é uma espécie de entretenimento deixado para Lisey, mas sim uma questão de sobrevivência. Um fã obcecado de seu falecido marido, Jim Dandy (Dane DeHaan), aparece na vida de Lisey, afirmando querer o manuscrito não publicado de Scott e disposto a utilizar qualquer método para consegui-lo. 

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Série da Apple TV+
Cena de Lisey’s Story | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

O personagem de Jim apavora constantemente desde seu primeiro momento na tela, onde o ator Dane Dehaan consegue criar um homem perturbador só pelo olhar. Ele é um fã obsessivo, que não costumava ler até encontrar o trabalho de Scott,  sentindo uma conexão instantânea obsessiva com as palavras e ideias do autor. Após a morte do escritor, Jim se torna incapaz de lidar com seus próprios sentimentos, se transformando numa espécie de “vingador” de Scott, acreditando que ao roubar o manuscrito de sua esposa e compartilhá-lo com o mundo, estará realizando a vontade de Scott.

Relacionamentos familiares complexos em Lisey’s Story

Família também é um ponto significativo de Lisey’s Story. O casamento de Scott e Lisey é importante para a construção da história, mas o relacionamento entre irmãos também é: Lisey e suas duas irmãs, Scott e seu irmão Paul, que são demonstrados aos poucos. 

Enquanto Lisey tenta decifrar as pistas deixadas por Scott, ela tem a ajuda de suas irmãs Amanda (Joan Allen) e Darla (Jennifer Jason Leigh). Nos primeiros episódios, presenciamentos uma relação complicada entre irmãs, com pouca comunicação, onde os laços familiares parecem mais uma obrigação negativa que nenhuma das irmãs está disposta a melhorar. 

Todavia, tal relacionamento se modifica ao longo da narrativa. As três irmãs percebem que precisam se unir se querem sobreviver à ameaça que o fã de Scott representa. Mais importante ainda: compreendem que devem se reconectar e aprender como manter uma relação de parentesco consistente, para que consigam finalmente conviver de forma mais saudável.  

Lisey's Story, adaptação de Stephen King
Cena de Lisey’s Story | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

O amor presente na construção do luto

Além das memórias sombrias, onde a dor de Lisey ao reviver esses acontecimentos se sobressai, o luto da personagem aparece enquanto ela revive os momentos com Scott – momentos em que é possível perceber a felicidade do casal, um relacionamento complexo, com altos e baixos, mas uma história de amor real. 

Semelhante ao livro, Stephen King se compromete a retratar na tela um casamento realista, com dificuldades diárias de qualquer relacionamento amoroso. Presenciamos o amor de Lisey por seu marido ao vermos todos os sacrifícios que ela realizou por ele, todos os momentos que apoiou seu parceiro, não importando quão difíceis eles fossem. 

adaptação de Stephen King
Cena de Lisey’s Story | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

A caça deixada por Scott, além de ser necessária para a sobrevivência de Lisey, também é uma forma dela lidar com o amor que ainda sente por seu falecido marido. Como ela mesma afirma em uma das cenas, “O luto é a caça ao tesouro, ache todas as pistas e você ganha um prêmio”, portanto, o prêmio deixado por Scott, além da sobrevivência de Lisey e da reaproximação do relacionamento com suas irmãs, é a conclusão de seu próprio luto, através da aceitação de que Scott morreu. Mas o amor que Lisey sente por ele talvez nunca acabe.

Já o amor de Scott também é perceptível. O fato de conhecermos seus sentimentos através das lembranças de Lisey torna as coisas ainda mais interessantes: sabemos que Scott ama sua mulher, pois ele faz com que ela se sinta amada em todos os momentos de seu casamento, até nos mais difíceis. Para o falecido autor, Lisey se tornou uma parte essencial de sua vida desde o momento em que se conheceram. No flashback, por exemplo, onde conversam sobre por que ele escreve, a fala final de Scott é direcionada à própria Lisey: “Eu te amo, você é todas as histórias.

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Lisey's Story
Cena de Lisey’s Story | Imagem: Apple TV+ (reprodução)

Lisey’s Story é uma história de amor real. As memórias da protagonista que apresentam os acontecimentos da série – sobrenaturais ou não – servem para contar as narrativas de Lisey e Scott Landon, um casal com um relacionamento concreto e apaixonado até o último momento possível. 

AVISO: Possíveis gatilhos para Lisey’s Story: misoginia, auto mutilação, depressão, violência familiar.

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Historiadora e Pesquisadora de Cinema. Fã de horror, filmes, livros, hóquei e de um pug chamado Batata. Sempre pode ser encontrada com café.
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