Ghost World: os fantasmas que assombram a chegada da vida adulta

Ghost World: os fantasmas que assombram a chegada da vida adulta

O quadrinho Ghost World, de Daniel Clowes, aborda a adolescência de duas garotas de forma fiel ao que diversas meninas passam ao longo de suas vidas. Enid Coleslaw e Rebecca Doppelmeyer, as protagonistas, materializam o que todas as mulheres, durante a adolescência ou vida adulta, necessitam dizer para o mundo; através de falas e comportamentos reais, Clowes sintetiza o que a vida é na verdade: um emaranhado de aflições e incertezas que ocorrem antes, durante e após os fechamentos de ciclos.

“Como Ghost World veio a existir? Em 1993, eu tinha acabado de terminar os 10 capítulos de Como uma luva de veludo moldada em ferro e descobri que pouquíssima gente conseguiu se antenar na trama até o fim. Resolvi que minha próxima história iria fugir desses épicos confusos, cheios de personagens, e que eu ia reduzi-la à situação dramática mais simples possível – duas personagens em um mundo restrito, fechado, cada episódio com início, meio e fim.

Minhas primeiras anotações (…) sugerem um mundo de ficção científica, mas logo larguei mão dessa ideia e passei para um cenário suburbano, sul da Califórnia com palmeiras (…), e os outros personagens foram surgindo naturalmente, conforme necessários, concebidos em não mais que um instante. O período de criação dessas histórias é um borrão, mas um borrão feliz, uma alegria de estar livre da angústia de sempre.”

(Daniel Clowes, introdução à edição especial de 10 anos)

Enid e Rebecca são melhores amigas e moradoras de uma cidade pequena da Califórnia, Estados Unidos. A série de quadrinhos começa pouco tempo após a formatura das garotas no colegial, e acompanha as decisões vindas como consequência do final da adolescência e que ambas precisam tomar por vontade própria, mas com um fundo de pressão derivada da sociedade. Mudar de cidade para recomeçar a vida do zero ou iniciar uma faculdade? Os pensamentos acumulam-se e parecem possuir vontade própria, assombrando-as constantemente. Mas, ao mesmo tempo em que as dúvidas surgem, Enid e Rebecca levam a vida com leveza e de forma autêntica.

Um dos focos do quadrinho é o relacionamento de irmandade entre as duas; as garotas conseguem viver separadamente, mas juntas são muito mais fortes, um ponto extremamente positivo, uma vez que outras mídias que abordam o mesmo tema preocupam-se, na maioria das vezes, em estabelecer rivalidades entre meninas (as poucas discussões que Enid e Rebecca têm ao longo do quadrinho culminam no fortalecimento da amizade entre elas), além do foco constante em relacionamentos amorosos, como se a vida de adolescentes, principalmente garotas, devesse necessariamente resumir-se nisto.

“Daniel Clowes sempre se incomodou com a forma como a complexidade interior de personagens adolescentes e infantis é retratada em obras de ficção. ‘Eu me lembro de ter pensamentos muito complexos quando criança e de tentar dar sentido a coisas que eram muito misteriosas e tinham certa grandiosidade’, disse o autor em entrevista publicada em 2011 no The Varsity, jornal estudantil da Universidade de Toronto. A honestidade brutal, o senso de humor ligeiramente perturbado e a angústia de Enid Coleslaw e Rebecca Doppelmeyer em Ghost World não deixam de ser uma resposta do autor às caracterizações simplistas que o incomodam.”

(Ramon Vitral, introdução à edição comemorativa de 20 anos)

As personagens possuem personalidades multifacetadas e alterações de humor, fugindo ao padrão unilateral que muitos autores buscam ao delimitarem características femininas. Enid é sarcástica e bem-humorada, mas também possui seus momentos de introspecção e reflexões profundas, assim como Rebecca. Ambas, principalmente Enid, procuram autoafirmação em mudanças de comportamento e até mesmo de visual, evidenciando que a representatividade, além de exterior, vem da própria essência.

Os diálogos acerca de sexualidade são sinceros e abertos: não há o que temer, se ambas são livres para satisfazerem seus desejos (o que leva a leitora a se identificar também com a segurança e autonomia que permeia a vida das duas). Clowes, na introdução à belíssima edição comemorativa de 20 anos, diz que, além de um reflexo dele mesmo, as meninas de Ghost World foram criadas para transparecerem o que adolescentes são na vida real, sem máscaras e filtros morais.

O quadrinho aclamado pela crítica ganhou em 2001 uma versão cinematográfica, dirigida por Terry Zwigoff e estrelada por Thora Birch no papel de Enid e Scarlett Johansson como Rebecca. A obra adapta muito bem os quadrinhos, incluindo diálogos marcantes protagonizados pelas meninas. A caracterização de Enid e Rebecca pelas atrizes dá vida a um sentimento profundo de pertencimento ao mundo de Ghost World: a ligação com a vida das duas recém-chegadas ao mundo adulto é forte e imediata. Os conflitos internos também são explanados – as indecisões e vontades das protagonistas saltam da tela, envolvem a espectadora em um humor particular e comovem.

Ghost World
Scarlett e Thora em “Ghost World” (2001).

O filme também introduz Steve Buscemi como Seymour, amigo de Enid e possuidor de gostos particulares muito peculiares, o que torna a amizade dos dois ainda mais real. Os diálogos, cenas e quadros, tanto da película quanto da HQ deixam a leitora com a sensação de já ter vivido todas aquelas situações pelo menos uma vez na vida. Ghost World transborda realidade – é a vida em sua mais pura essência.

Ghost World

A ambientação da HQ, definida pelos mesmos pontos de encontro e poucos lugares de entretenimento de sempre, faz com que toda mulher que viveu ou vive em uma cidade pequena se compadeça da história de Enid e Rebecca. Um local com poucos amigos e pouca diversão torna-se, aos poucos, menos convidativo e um alerta constante para as tantas rotas de fuga que o mundo deve possuir. A coloração constantemente azul clara que contrasta com os traços marcantes de Clowes evidencia a monotonia dos dias das duas jovens, vivendo em um mundo pálido como um fantasma, hostil e deprimente por excelência.

A estrutura da narrativa possui começo, meio e fim em todas as histórias que formam o compilado de Ghost World. Por mais que todas elas, apreciadas em ordem cronológica, apresentem a trama oficial, também podem ser lidas e facilmente compreendidas de forma independente.

Em alguns momentos há a quebra de expectativa quando as próprias protagonistas citam Daniel Clowes e debatem sobre ele, ou quando há a quebra da quarta parede para conversarem com o narrador, tornando o fluxo da história muito mais dinâmico; algumas personagens secundárias não são muito marcantes ou recorrentes na história, e acabam fazendo o papel daquelas pessoas conhecidas que, ao longo da vida, por mais que não interajam tanto conosco, possuem alguma função em nossos dias (e, que se sumirem por algum motivo, causam incômodo).

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A personagem Norman, um senhor que senta todos os dias em um ponto de ônibus esperando o transporte que nunca vem, sintetiza a busca por fuga que as pessoas da cidade tanto almejam. Todos, sem exceção, são pessoas deslocadas: no trabalho, em relacionamentos amorosos ou dentro da própria família – há uma constante inquietação com o simples fato de “ser” naquela cidade.

Ghost World

A edição especial de 20 anos traz duas introduções, uma delas sendo a de Clowes à edição comemorativa de 10 anos, um prefácio (engraçadíssimo, por sinal) que aborda o que pode ter acontecido às protagonistas após 20 anos e outros materiais extras, como imagens de action figures de Enid, os quadrinhos da Pequena Enid, pôsters e esboços dos desenhos. Um edição linda e extremamente recomendada àquelas que assistiram ao filme e desejam conhecer mais a fundo esse mundo, que é mundo de todas nós.

Ghost World é uma excelente e cativante crônica sobre a vida real, inseguranças que nos rondam e sobre ser, literalmente, protagonista de sua própria história. É a vida em seu mais puro equilíbrio entre o caos e o encanto.


Ghost World

Editora Nemo

Autor: Daniel Clowes

145 páginas

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Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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