Pedro Almodóvar e o mito da mulher intensa

Pedro Almodóvar e o mito da mulher intensa

Las mujeres hacemos cualquier cosa con tal de no estar solas. Somos gilipollas. Y un poco bolleras”. “Nós mulheres fazemos qualquer coisa para não ficarmos sozinhas. Somos otárias. E um pouco sapatas”. É o que diz, em tradução livre, a personagem Manuela (Cecília Roth) de Tudo sobre minha mãe (1999).

Por mais que nesta cena a atriz argentina entregue uma interpretação comovente, há algo na sua fala que parece fora de lugar. Provavelmente é porque, como muitas outras frases que supostamente definem as mulheres, ela foi escrita por um homem. 

O lendário homem que “entende” as mulheres

O mito do homem que entende as mulheres, que sabe defini-las e traduzi-las até melhor do que elas próprias, é uma constante na cultura ocidental moderna. Até poucos anos atrás, essa figura era considerada intocável e incancelável, um bastião de sensibilidade e delicadeza, uma autoridade em questões da alma feminina.

O Homem que Entende as Mulheres é, no dia a dia, o cara que as chama de guerreiras e rainhas no 8 de março, aquele cuja maior inspiração é a própria mãe.

Na arte, ele vive nas poesias de Vinícius de Moraes, nas letras de Chico Buarque e nos filmes de Pedro Almodóvar. No entanto, muitas vezes, esse homem é apenas uma pessoa que entendeu como seduzir muitas mulheres e usa essas experiências como material na produção de sua obra.

Entender as mulheres para seduzi-las não é o objetivo de Almodóvar, cineasta LGBTQI+ cujo universo ficcional se baseia no protagonismo de personagens femininas, tanto cis como trans. Em suas obras, as protagonistas parecem ser uma extensão do próprio diretor, uma mistura entre as mulheres reais que o marcaram ao longo da vida e uma visão idealizada do que uma mulher representa em sua imaginação.

Mulheres icônicas, mulheres de Almodóvar

As mulheres de Almodóvar são icônicas, tanto visual quanto pessoalmente, sempre encarnadas com paixão por suas atrizes de confiança. Entre elas estão Cecilia Roth, Carmen Maura, Marisa Paredes, Rossy de Palma, Victoria Abril e, principalmente, Penélope Cruz.

Há mais de 25 anos, os olhos, lábios e a voz hipnótica de Cruz dão vida ao que se passa na mente e no coração de Almodóvar. Ela já interpretou até mesmo a mãe do diretor em Dor e Glória (2019), um de seus trabalhos mais sutis e um dos raros com protagonismo masculino.

Os dois já compartilharam em entrevistas sobre sua relação quase simbiótica, destacando como um olhar é suficiente para entender o que o outro está pensando. Almodóvar compreende profundamente Penélope, não há dúvidas quanto a isso. No entanto, entender as mulheres requer mais do que isso.

Penélope Cruz segura uma faca ensanguentada em cena do filme Volver, de 2006.
Penélope Cruz em Volver (2006) | Foto: Reprodução

A Espanha dos anos 80 e a movida alternativa

Almodóvar desafiou padrões no início de sua carreira, confrontando as convenções da sociedade espanhola conservadora e ultracatólica, recém-saída da ditadura franquista.

Ele foi um dos principais expoentes da movida madrileña, um movimento cultural dos anos 80 que modernizou e revolucionou a cena cultural local, introduzindo o punk, o queer e a liberação sexual a um país que estava estagnado no tempo. O diretor também abordou questões de gênero e sexualidade muito antes desses temas se tornarem mainstream, e trabalhou com atrizes travestis desde os anos 90.

Hoje, na casa dos 70 anos, Almodóvar pertence à geração que enfrenta desafios ao reconsiderar seus próprios conceitos de progressismo versus retrocesso.

Mulheres hiperbólicas e de batom vermelho

O cinema do diretor valida, como poucos, a intensidade feminina. Frases memoráveis, emoções sem freio, gestos inconsequentes e nenhum limite no amor, seja por um parceiro ou por uma filha. A mulher almodovariana não tem medo de parecer excessiva, mesmo que faça terra arrasada ao seu redor.

Desde as freiras usuárias de LSD de Maus hábitos (1983) a adolescente grávida de Mães paralelas (2021), suas personagens podem ser jovens ou maduras, hipersexuais ou reprimidas, mas todas elas são intensas. São turbilhões, forças da natureza.

Mulheres fortes, reza o lugar-comum. Comparando com as neuróticas pouco inteligentes dos filmes de Woody Allen ou as eternas coadjuvantes da obra de Christopher Nolan, no cinema de Almodóvar, elas são decididas e protagonistas de suas próprias vidas. 

Na visão do espanhol, há carinho e admiração genuínos, apesar de romantizar o estupro de vulnerável em Fale com Ela. Em seus filmes, a força feminina parece possível apenas diante da tragédia e do sofrimento. Evidente, espalhafatosa, ela se manifesta na representação de um tipo específico de mulher: a dramática, a emocional, a descontrolada, a “bigger than life”, a louca.

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Victoria Abril usa um vestido com falsos seios de fora no filme Kika
O vestido usado por Victoria Abril no filme Kika (1993) foi criado por Jean-Paul Gaultier.

Mulheres eternamente à beira de um ataque de nervos

Tudo na obra do diretor é camp, nada é contido ou discreto. Alguns dos seus filmes, como o recente Mães Paralelas ou Os amantes passageiros, não estão muito distantes de uma novela da Glória Perez ou do Miguel Falabella. Seu suposto entendimento da alma feminina também passa por esse filtro. Parece que, para ser interessante, a mulher precisa ser uma hipérbole de si mesma.

No título autoexplicativo Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988), primeiro filme do diretor a ganhar reconhecimento global, nota-se a curiosidade divertida com a qual o cineasta observa o gênero feminino. Suas personagens são todas adoráveis “malucas”, movidas pela paixão.

Em A flor do meu segredo (1995), Leo (Marisa Paredes) é uma esposa que se sente viva apenas quando está com seu homem, ainda que tenha uma carreira brilhante de escritora. O olhar do cineasta não a julga duramente; a olha com simpatia, embora seja um olhar externo, masculino.

É uma visão pessoal da alma feminina, talvez uma obsessão, provavelmente uma fascinação. Uma homenagem, no melhor dos casos. Mas não é entender as mulheres.

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Redatora, formada em Jornalismo no início do século, moradora da internet, gosta de falar sobre coisas que não existem.
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