Killing Stalking: o problema com os shippers

Killing Stalking: o problema com os shippers

Antes de falarmos sobre Killing Stalking, é importante dizer que, sim, tudo bem ser um shipper. Entendemos que pode ser simplesmente tão divertido entrar na história e sofrer com aqueles personagens, viver o drama, torcer para que tudo dê certo no final… E quando eles claramente são feitos um para o outro? Material para o ship perfeito. Hora das fanfics, fanarts, fóruns, encher o saco dos amigos falando sobre isso. E é importante dizer outra coisa: isso é perfeitamente normal – em certas doses. Não tem nada de errado em manter como hobby formar casais fictícios. Quem disse que o romance morreu nunca viu um shipper na vida.

Mas existe um lado sombrio no ato de shippar que pouca gente fala a respeito. E nós precisamos falar a respeito. Killing Stalking é um manhwa (termo para designar histórias em quadrinhos coreanas), no formato webcomic, vencedor do Lezhin World Comics Contest. Escrito por Koogi, o manhwa que se tornou bastante popular nos últimos meses e deixou explícito para muitas pessoas o problema: alguns shippers estão perdendo a âncora com a realidade.

Killing Stalking – como o próprio título sugere – conta a história de um serial killer e um stalker. Yoon Bum é o sujeito de olheiras enormes aí em cima e é o protagonista da história. Com um longo histórico como stalker e algumas prisões, a atual obsessão de Bum é um jovem bonito, popular e amoroso chamado Sangwoo, com quem cursou um ano na escola e posteriormente prestou serviço militar.

Bum e Sangwoo nunca trocaram mais do que algumas palavras, mas a obsessão de Bum é tamanha que este chega a invadir a casa de Sangwoo e se masturbar em sua cama. E é no ato dessa invasão que Bum escuta sons estranhos vindos do porão e desce para encontrar uma mulher amarrada, nua e mutilada. Acontece que sua obsessão, Sangwoo, é na verdade um serial killer.

Killing Stalking

O gênero do manhwa é terror/suspense, mas também pode ser considerado um drama psicológico. A forma como Koogi conduz a história é bastante original, bem escrita e desenhada, então é fácil entender sua popularidade pela qualidade. Nós já vimos histórias de serial killers e stalkers muitas vezes, mas nunca antes fomos questionadas sobre a forma como estes lidariam com a doença um do outro em um espaço de confinamento.

Sangwoo faz de Bum a sua nova vítima, o que inicialmente causa em Bum sentimentos mistos de deleite – finalmente ser notado por sua obsessão – e horror – afinal, o cara quebrou as suas pernas, o torturou, sequestrou e pode matá-lo a qualquer momento. Já Sangwoo, que claramente tem problemas maternos e projeta em suas vítimas a busca de sua mãe pelo carinho de um conjugue abusivo, vê em Bum a quebra de um padrão em sua vida.

As vítimas anteriores o odiavam, o que alimentava sua fantasia de ser o próprio pai abusivo, porém Bum mostra sinais de que verdadeiramente, mesmo conhecendo sua verdadeira face, o ama e que ficar com ele. Ao longo da história, Sangwoo se torna dependente dessa relação, que o leva à uma espécie de redenção pelos traumas de sua infância. Mas isso, claro, está apenas na cabeça conturbada de Sangwoo.

Diferente do que muitos leitores acreditam, Bum não desenvolve Síndrome de Estocolmo em momento algum da história. É explícito que toda oportunidade de fugir do confinamento que surge em seu caminho é usada – sem êxito – por ele. No início, existe uma resistência do personagem em deixar diluir a imagem de um Sangwoo amistoso que stalkeou por tanto tempo, e Bum luta contra a sua doença para conseguir escapar do cárcere que não está somente na sua perna quebrada, mas em sua própria mente. Yoon Bum está apavorado e desesperadamente quer ir para casa. A partir de certo momento, o personagem começa a devanear sobre assassinar Sangwoo e conquistar sua liberdade.

Killing Stalking não é um romance. Seus personagens são pessoas doentes com problemas psicológicos graves, que sofreram abusos e não são capazes de compreender relacionamentos afetivos como pessoas saudáveis, mas a história deixa bem claro para que isso é usado na trama: desenvolvimento psicológico, drama e muitos, muitos sustos. Afinal de contas, isso aqui é uma história de terror psicológico. Então por quê as pessoas estão shippando isso?

Killing Stalking

Acreditamos que boa parte do problema esteja fincado na fetichização de relacionamentos homoafetivos por pessoas heterossexuais, como já foi discutido aqui antes. Essa tendência fetichista exclui a subjetividade de pessoas LGBT reais e leva junto as noções de certo/errado de seus consumidores, que as sacrificam em prol de puro entretenimento. Mas também cabe apontar a necessidade de algumas pessoas – ou grupos de pessoas – por romantizar personagens e situações em que não cabe esse tipo de leitura por diversos fatores, como relações familiares, discrepância de idade e, nesse caso, abusos, agressões e estupro. É onde o shipper perde a sua âncora moral com a realidade e um hobby saudável foge do controle.

A perda desses critérios conduz a uma falta de sensibilidade para com vítimas reais de abuso e pedofilia ao ver sua vivência tratada de forma romantizada, e é preocupante que adultos consigam olhar para situações de cárcere privado e/ou agressão e considerar que “isso pode dar um bom casal”. Mas o que mais preocupa é o acesso fácil de crianças e adolescentes a esse tipo de material. A maior parte dos leitores de Killing Stalking não são maiores de 18 anos (que é sua classificação indicativa no site onde é oficialmente comercializado). Como também não são os consumidores de pornografia na internet, ou os membros de fandoms por aí. Que tipo de relações estão sendo normatizadas para esses jovens em formação?

Não é questão de censura ou fiscalização de ship, mas de pesar nossas prioridades. O nosso entretenimento é mais importante do que o bem-estar de pessoas reais? É necessária a manutenção dessa âncora com a realidade e compreender a função da representatividade na vida das pessoas, assim como o papel da mídia na formação dos indivíduos. Naturalizar esse tipo de ship é naturalizar a violência que este abarca. E como ficam as pessoas reais nisso?

O descontrole dos fandoms também traz consequências para a própria obra e seus autores, uma vez a leitura social daquele material estará refletida no posicionamento de seus leitores. Killing Stalking tem uma ótima história, ótimos personagens, uma narrativa fluida e interessante, mas tem sido vítima de boicotes devido sua popularização ter ocorrido sob o rótulo de “webcomic com casal homoafetivo” – o que ele definitivamente não é. 

Koogi não romantiza o relacionamento de Bum e Sangwoo em sua história, mas deveria pagar pela forma como este é interpretado pelo público? Não tirando completamente a responsabilidade do autor da história, porque por mais que as cenas suaves sejam apenas para gerar clima para os momentos tensos e desenvolvimento de personagem, olha como esse desgraçado é desenhado.

Killing Stalking

Não, não existem temas proibidos. É possível sim apreciar uma história que lide com temas polêmicos e traga tramas problemáticas, desde que seja retratado com as consequências desse tipo de comportamento. E também é possível apreciar uma história sem shippar ninguém se não há um ship para formar ali, tá bom? Só curtir a história do jeito que ela é. Funciona, pode confiar.

E só para frisar: histórias de abuso não são romances. Sangwoo não vai mudar. Bum está tentando fugir, e você também deveria.

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Renata Nolasco é ilustradora e quadrinista - assina seus trabalhos como Atóxico. Formada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, gosta de Neil Gaiman, ficção científica, pizza, quadrinhos independentes e The Authority. Queria ser a Jenny Sparks.
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