Animais Noturnos: não existe vilania na escolha de terminar uma relação

Animais Noturnos: não existe vilania na escolha de terminar uma relação

Antes de tudo, se faz necessário deixar claro que o texto não é uma crítica completa do filme e de todos os elementos presentes na obra, e sim uma análise feita a partir da observação de uma ausência. Sempre que terminamos de ver um filme, é bom ler as críticas e comentários que foram produzidos sobre a obra, e com Animais Noturnos não foi diferente. Ao findarmos a leitura de dezenas de comentários pela internet, observamos um ponto que nos causou muito incômodo e frustração, inclusive com o desfecho da história, que não foi alvo de reflexões e debates entre as pessoas que viram o filme, como estávamos esperando que acontecesse.

O filme “Animais Noturnos” (Nocturnal Animals, 2016) do diretor e estilista norte americano Tom Ford (que também dirigiu o excelente drama “A Single Man”, 2009) foi baseado no livro de Austin Wright (Tony e Susan). No longa, temos uma narrativa centrada em torno de um suspense, muito bom, diga-se de passagem, que nos conta a história do relacionamento entre o escritor Edward (Jake Gylenhaal) e Susan (Amy Adams) que foram casados quando jovens e não se veem há 19 anos.

Alguns temas como vingança, ressentimentos do passado e a crítica, feita a um estilo de vida em que as pessoas prezam mais o ter do que o ser, permeiam durante todo o filme de forma sutil, e outras vezes, de modo mais enfático. Mas após um ano de distância, de quando vimos o filme pela primeira vez, o que fica mais forte é a percepção de que talvez o tema mais latente diga a respeito das escolhas e suas consequências, feitas ou deixadas de fazer por Susan, protagonista feminina do filme.

A trama de “Animais Noturnos” é impulsionada a partir do momento em que Susan recebe um exemplar de Animais Noturnos, livro escrito pelo seu ex-marido e ainda não publicado. O título do livro é uma alusão direta a uma forma como Edward a tinha apelidado, pelo fato de que ela passava a noite acordada tal como um animal noturno.

O livro de Edward é um drama policial que conta a história de uma família formada por pai, mãe e uma filha adolescente, que são sequestrados no meio da estrada durante uma viagem. Mãe e filha têm um fim violento e trágico na mão dos sequestradores, e o pai, Tony, vive a partir de então uma vida de sofrimentos, tentando fazer com que os culpados sejam descobertos e punidos.

Animais Noturnos

Com o decorrer da leitura do livro, Susan percebe certas referências e analogias da história com o seu antigo relacionamento, e começa a entender que uma das intenções do Edward era a de que ela entendesse, através do sofrimento das personagens do livro, (sobretudo o do Tony) os sentimentos e toda a dor que ele passou quando ela terminou com ele.

O Tony do livro é a personificação do Edward, enquanto a Susan é metaforicamente representada no livro de duas formas: através da personagem da mãe sequestrada e de Ray Marcus (Aaron Taylor-Johnson) um sequestrador, estuprador e assassino. A partir de então, começa aquele que foi o maior questionamento durante “Animais Noturnos”: O que Susan fez de tão grave para o Edward a comparar com um sequestrador, estuprador e assassino? Mas antes de responder a isso, falaremos um pouco mais sobre Susan.

Susan Morrow é uma mulher branca, de classe média alta e galerista de sucesso. No contexto em que recebeu o manuscrito do Edward ela se encontrava insatisfeita com o seu trabalho, passando por uma crise no seu segundo casamento (tendo um marido infiel) e ao julgar por uma cena de um telefonema, também não tinha uma relação de proximidade com sua filha. A expressão pobre menina rica se aplicaria a sua atual situação.

Animais Noturnos

Os pais e principalmente a mãe de Susan eram pessoas conservadoras e elitistas que reprovaram o casamento dela com Edward 19 anos antes, quando ele era um aspirante a escritor. Em uma cena em que conversa com Susan, a mãe cogita excluir o irmão da herança pelo fato dele ser gay e ter assumido uma relação com um homem. Essa cena é muito importante para nos fazer perceber o conflito de interesses vivenciado por Susan: Ficar com um escritor em começo de carreira ou manter o padrão de vida?

Susan escolhe manter o padrão de vida, rompe com Edward, interrompe uma gravidez de um filho que seria dele, e engata uma relação com um cara rico e ambicioso. Aqui temos um ponto importante: ela não se separa do Edward para ficar rica, e sim, para manter o que já tem ao lado de alguém que está alinhado com suas perspectivas de vida, com o mundo em que ela vive e conhece.

Não tem como saber se Susan foi feliz nesse segundo casamento durante alguma vez, porque “Animais Noturnos” é centrado num momento em que ela está passando por várias crises em setores distintos de sua vida. Também não há nada que nos indique como o Edward seguiu a sua vida. Se conseguia viver como escritor, se tinha tido outros relacionamentos ou filhos, enfim o que ele fez com a sua vida além de escrever um livro metaforizando como se sentiu em relação ao fim do seu casamento. E no fim das contas, descobrimos que “o grande erro” cometido pela Susan – e que fez o Edward passar 19 anos na bad – foi o de ter terminado uma relação em que não estava mais disposta a investir e interromper uma gravidez.

Faremos aqui uma ressalva, de que não estamos deslegitimando os sentimentos do Edward com o término da relação, mas refletindo sobre o porquê de Edward (e de tantas pessoas que viram o filme) ter achado Susan uma verdadeira vilã, sendo que durante a narrativa nos é mostrado elementos indicativos de que as atitudes dela não foram atos de maldade deliberados, mas simplesmente escolhas pautadas no que ela acreditava que seria melhor para a sua vida.

Qual o erro ou vilania há em uma mulher burguesa que decide não ter mais ao seu lado um homem sem as mesmas ambições e estilo de vida que o dela? Podemos julgar se as escolhas de Susan foram acertadas ou não (o filme responde isso, inclusive), mas também cabe pensar se a mágoa, ressentimento e vingança do Edward não estariam desproporcionais diante da realidade da situação de um casal, que tinha interesses completamente opostos. Ficar mal ou até nutrir sentimentos de vingança, durante seis meses ou um ano por conta do fim de um relacionamento, mas quase 20 anos…

E foi justamente esse o ponto que mais incomoda: a quantidade de pessoas que comentaram sobre “Animais Noturnos” vilanizando a Susan, julgando legítima a vingança de um crime que só aconteceu na cabeça e no livro do Edward e não ver quase ninguém (essa foi a ausência que nos referimos no início do texto), refletindo sobre o fato de que o principal suspense do filme (saber o que, de fato, a Susan tinha feito de tão grave) diz mais a respeito da dificuldade de um homem em superar e esquecer o fim de um relacionamento, e da culpabilização exagerada que o mesmo faz sobre a mulher que rompeu com ele.

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“Animais Noturnos” tem como desfecho o Edward coroando a sua vingança, não indo para um encontro que marcou com a Susan. Nesse momento, onde ela se dá conta que levou um bolo, Susan compreende o significado do final do livro, e que não terá nunca mais a oportunidade de retomar uma relação que ela mesma escolheu romper no passado. Por outro lado, a atitude do Edward, de confirmar o encontro e não ir, nos faz refletir que ele terminou a sua história sem superar ou entender que não há vilania na escolha de terminar uma relação.


Autora convidada: Jaqueline Queiroz é feminista e historiadora, amante da literatura, de bons filmes, boas conversas e de boas pessoas.

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