Our Flag Means Death: outras masculinidades e representações LGBTQIA+ possíveis

Our Flag Means Death: outras masculinidades e representações LGBTQIA+ possíveis

Quando eu era criança, na transição dos anos 90 pros anos 2000, não havia nada mais másculo e viril do que um pirata. Primeiro que piratas eram maus, assassinavam qualquer um que cruzasse seus caminhos, além de serem contrários a lei, barbudos, fortes e sujos. Ou seja, eram a grande representação de masculinidade.

Mas é claro que essa era uma tradição de décadas, pois a verdade é que a história que temos sobre pirataria não poderia retratá-los de outra forma: os diários de bordo eram feitos a pedido dos capitães, que estavam sempre competindo entre si e a favor dessa ideia de masculinidade tóxica. Portanto, por que não empreender uma outra visão sobre os piratas?

A pirataria como um lugar para os excluídos

Our Flag Means Death, série da HBO Max, criada por David Jenkins e dirigida por vários diretores, incluindo Taika Waititi, é uma comédia romântica ambientada em 1717, na Era do Ouro da pirataria.

É nítido que a equipe de Jenkins fez uma rígida e meticulosa pesquisa histórica sobre o período e as figuras que basearam os personagens da série. Inclusive, uma das descrições de Bonnet presente no livro “A General History of the Pyrates“, do capitão Charles Johnson, é citada pelo personagem e usada como título de um dos episódios: “discomfort in a married state” (algo como “desconfortável em estar casado”).

Buttons e Bonnet em cena de "Our Flag Means Death"
Buttons e Bonnet em cena de “Our Flag Means Death” (Foto: Reprodução/HBO Max)

Our Flag Means Death (2022 – ) é uma produção feita por minorias e para minorias, com críticas à colonização e a aristocracia branca, portanto, não faria mais sentido que os personagens da série fossem piratas.

Dentro do período das Grandes Navegações e colonização, os piratas eram pessoas que nadavam contra a maré, muitas vezes eram fugitivos, escravizados que não tinham para onde ir, até mesmo homossexuais, já que em terra as práticas homoafetivas eram muitas vezes tidas como crime e o mesmo não aconteceria em alto mar, até porque as mulheres eram proibidas nos navios e havia até uma espécie de união estável entre homens, o matelotage.

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Os piratas que protagonizam a história, Stede Bonnet  (Rhys Darby) e Barba Negra (Taika Waititi), recebem também alguns flashbacks sobre como eram suas vidas antes da pirataria e é claro que eram pessoas desajustadas socialmente, excluídas e que não provinham o que as expectativas de masculinidade pediam de cada um. Tais expectativas continuam quando estão liderando suas tripulações: Barba Negra não pode ser gentil, é preciso sempre ser o mais agressivo possível, assim como Bonnet que, para eles, deveria ser mais rude e é chamado de covarde várias vezes.

Barba Negra (Taika Waititi) e Bonnet (Rhys Darby) em cena de "Our Flag Means Death"
Barba Negra e Bonnet em cena de “Our Flag Means Death” (Foto: Reprodução/HBO Max)

Além dos dois, outras pessoas reais que basearam figuras da série foram os piratas Izzy Hands (Con O’Neill), Calico Jack (Will Arnett), Spanish Jackie (Leslie Jones) e duas mulheres também inspiraram a história de personagem não binárie Jim Jimenez (Vico Ortiz), Anne Bonny e Mary Read, ambas se vestiam com roupas tidas como masculinas e se passavam por homens para não serem reconhecidas.

As piratas mulheres Anne Bonny e Mary Read.
As piratas mulheres Anne Bonny e Mary Read (Foto: Reprodução)

Afetividade e masculinidade

Bonnet era um rico proprietário de terras que deixou esposa e filhos para trás para se aventurar em alto mar. Diferente de outros capitães, ele oferecia um salário para seus tripulantes e os mantinha entretidos com boas histórias antes de dormir, esportes, academia e comida. Mas Bonnet não era o que se esperava de um capitão (tudo isso, claro, dentro de sua representação na série, já que as histórias reais o mostram um tanto mais cruel). Ele não sabia lutar corpo a corpo ou invadir navios mercantis para saqueá-los. Isso tudo faz com que sua tripulação queira organizar um motim logo no primeiro episódio.

A forma como os piratas a bordo do Revenge passam a gostar de seu capitão e demostrar afeto, tanto para ele quanto entre si, acontece de forma natural durante os episódios de Our Flag Means Death. Os homens que ali estão tinham apenas um modo de viver a masculinidade como expectativa, e descobrir novas formas possíveis de ser um homem parece deixá-los cada vez mais confortáveis.

A tripulação do Revenge (Foto: Reprodução/HBO Max)

Quando Barba Negra invade o Revenge, era esperado que ele matasse todos a bordo e continuasse a exercer seu papel de pirata mais temido de todos os tempos. No entanto, sua relação com Bonnet e o acolhimento do Pirata Cavalheiro o faz querer experimentar novas possibilidades, vestir outras roupas e expor outros sentimentos. Ao longo da série descobrimos como era difícil e entediante para ele estar na posição de alguém que não pode ter um desempenho fraco e que impõe medo sem nem precisar estar presente.

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Our Flag Means Death aposta na quebra de estereótipos de gênero, desde uma tarefa que fazem em grupo como costurar a própria bandeira, até o modo como aceitam o fato de Jim não ser exatamente um homem como eles. O fato de serem sempre incentivados por Stede a conversar para resolver conflitos e demonstrarem seus sentimentos também é um modo de perceber que nem tudo precisa ser resolvido no soco.

Barba Negra e Bonnet em cena de “Our Flag Means Death” (Foto: Reprodução/HBO Max)

“Our Flag Means Death” é o oposto de queerbaiting

A prática do queerbaiting — termo em inglês que seria algo como armadilha queer, usado para designar a estratégia da mídia que garante espectadores do público LGBTQIA+ mas não compromete a audiência do público cishetéro, com relacionamentos às escondidas ou que não deixam claro o que acontece com o casal, já que a cultura queer é atraente para o mainstream, mas o preconceito ronda as produções — definitivamente não acontece em Our Flag Means Death.

"Our Flag Means Death" é o oposto de queerbaiting
O casal Lucius e Black Pete (Foto: Reprodução/HBO Max)

Os casais são expostos de forma natural e não há nada a esconder. A série nos traz relacionamentos reais, suas construções, lentas ou não, os medos de cada um, as formas como cada um expressa afeto e o encontro desses modos de amor. Com Our Flag Means Death podemos finalmente imaginar como seria se as representações de casais LGBTQIA+ seriam se não houvessem essas pegadinhas oriundas do preconceito ainda sofrido por esses casais. A produção aborda o tema de forma natural, como deveria ser.

O casal Jim e Oluwande (Foto: Reprodução/HBO Max)

Além disso, a série também aborda a jornada de descobertas de personagens como Stede, alguém que entende seus sentimentos e pode assumir sua relação afetiva com outro homem depois de ter se casado, ter sido pai e já estar mais velho, porque entender quem você é não é algo que precisa ocorrer apenas antes de suas primeiras experiências afetivas e sexuais.

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Voltando a história de Jim, depois de ter seu disfarce revelado ao restante da tripulação, a cena foi acompanhada de uma discussão interessante de quebra de estereótipos e aceitação do pessoal quando elu afirma que gostaria de ser chamade de Jim e tratade como antes. Os pronomes neutros they/them (em português comumente usamos elu/delu) são utilizados para se referir a Jim, inclusive pela freira que criou quando se encontram anos depois.

Além disso, mesmo que alguém diga que o uso desses pronomes possa ter sido um anacronismo dos roteiristas – já que não existem registros do uso em 1700 -, o uso da linguagem neutra para respeitar pessoas que se identificam como não bináries é fundamental. Vico falou sobre isso em seu Instagram e de quebra nos ensinou que o pronome neutro em espanhol é elle.

Jim em cena de “Our Flag Means Death” (Foto: Reprodução/HBO Max)

Our Flag Means Death é uma série que está revolucionando as produções e a exigência do público. Espero que ninguém aceite menos representatividade do que nos foi oferecido com roteiros e direção criados por uma equipe diversificada, pensando nas minorias e não no mainstream.

Enquanto a HBO Max não renova o contrato para um nova temporada, que a série renda muitas discussões sobre aceitação, afeto, descobertas e outras vivências e experiências de gênero.

A representatividade LGBTQIA+ em "Our Flag Means Death"
Barba Negra e Bonnet em cena de “Our Flag Means Death” (Foto: Reprodução/HBO Max)

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Psicóloga, mestranda e pesquisadora na área de gênero e representação feminina. Riot grrrl, amante de terror, sci-fi e quadrinhos, baterista e antifascista.
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