Objeto Sexual: chegou a hora de conhecermos a autora feminista Jessica Valenti

Objeto Sexual: chegou a hora de conhecermos a autora feminista Jessica Valenti

Quantas histórias de assédios e relacionamentos abusivos carregamos conosco? Quando começamos a sentir e vivenciar esse peso de ser mulher num mundo que nos odeia? O quanto nos moldamos e naturalizamos comportamentos abusivos para tentar sobrevivermos? Quando tudo isso começa? A estreia da autora norte-americana Jessica Valenti no Brasil, próxima  do Dia Internacional das Mulheres, com o lançamento do livro Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista, não poderia vir em um momento mais oportuno, sendo que uma das principais discussões atuais do movimento feminista em nosso país são as constantes revelações de assédios e abusos nos espaços públicos, além de analisarmos com maior frequência os relacionamentos abusivos no qual muitas de nós estão inseridas. 

Nascida e criada em Long Island City (bairro da cidade de Nova York) e descendente de italianos, Jessica Valenti já teve seus trabalhos publicados no The New York Times, Washington Post, The Nation, além de ser colunista do jornal The Guardian, escrevendo artigos sobre gênero e política. Formou na Stuyvesant High School, é Mestra em Estudos de Mulheres e Gênero pela Universidade Rutgers. Em 2004, ela fundou o site Feministing.com, um espaço organizado por jovens feministas que discutem desde cultura pop, até artigos feministas interseccionais, saúde reprodutiva e direitos de transgêneros. O site continua no ar até os dias atuais e recebeu elogio do Columbia Journalism Review como “muito superior a quase toda a produção literária sobre questões femininas na grande mídia.” Atualmente, Jessica mora no Brooklyn com seu marido e filha.

Além do best-seller Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista (no original: Sex Object: A Memoir), publicado originalmente em 2016, a autora tem mais cinco livros publicados e inéditos no Brasil, por enquanto, entre eles: She Full Frontal Feminism (2007), He’s a Stud, She’s a Slut (2008), Yes Means Yes: Visions of Female Sexual Power and A World Without Rape (2008) que escreveu junto com Jaclyn Friedman, The Purity Myth (2009) e Why Have Kids? (2012).

O lançamento de Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista acontece hoje, dia 06 de março!

Jessica Valenti narra naturalmente, como em uma conversa entre amigas, fatos que moldaram sua vida decorrentes do seu gênero. O abuso que a princípio era compreendido por ela como um “elogio” (apesar de sentir um certo incômodo), mais tarde ela passa a compreender que tratava-se de um comportamento abusivo.

Na Parte I de Objeto Sexual, Jessica narra as diversas violências que vivenciou nos espaços públicos e nos ambientes escolares enquanto era criança e adolescente. É assustador pensarmos que uma menina de 12 anos de idade teve que ver o pênis de um homem no metrô da cidade de Nova York, fato que causou distúrbios e dificuldade para dormir, como releva a autora no livro. Muitas vezes não paramos para pensar em como toda essa cultura do estupro que nos percorre, decorrente do nosso gênero feminino, constrói a nossa comunicação com as pessoas, moldando inclusive os nossos relacionamentos amorosos – no caso de mulheres heterossexuais.

Objeto Sexual

No meio de todo esse horror misógino que a autora expõe em Objeto Sexual, citando inclusive casos de professores que a assediaram em ambiente escolar, Jessica ressalta que a pior violação praticada ao gênero feminino não é a compreensão de que algo ruim aconteceria, mas sim quando e quão ruim seria. A sociedade naturaliza os abusos praticados contra as mulheres como se fosse um fator inevitável, e Jessica Valenti abre a discussão do motivo de muitas mulheres não denunciarem abusos praticados por homens.

“Viver em um lugar no qual não se prevê sua segurança significa caminhar em permanente estado dissociativo. Você vê as coisas acontecerem com você, depara com elas no metrô, na rua e na televisão, ouve-as em músicas, e elas estão à sua volta como o ar que você respira, por isso guarda horror para si mesma, porque lutar contra seria autodestruição.” 

Ao mesmo tempo Jessica relata a necessidade de expormos essas violências, como uma forma de quebrarmos a barreira da normalização dessa cultura opressora. Uma cultura que nos enxerga desde a infância como um sujeito passivo de um olhar masculino violento, nos reduzindo a um mero objeto sexual, onde casos de homens mostrando seus pênis em espaços públicos para garotas ou mulheres, ou ejaculando em corpos femininos nos metrôs, ou ainda em que praticar sexo forçado com uma mulher inconsciente (conhecido como estupro) mesmo que seja o seu namorado ou parceiro, ocorre diariamente no cotidiano de muitas.

Mas a força de Jessica Valenti em Objeto Sexual está nas revelações das situações que ela compreende como contraditórias ao feminismo. A autora, atualmente com 39 anos de idade, argumenta que foi compreendendo aos poucos as opressões decorrentes do seu gênero. Revela que inicialmente tais violências costumavam servir como motivos de piada ou desdém por ela mesma. “Se estava fadada a ser um objeto sexual, eu seria o melhor objeto sexual possível. Mais de vinte anos depois, ainda me sinto doente. Ainda não consigo dormir. Mas pelo menos agora eu entendo o porquê.” (página 23)

E então nos questionamos, seria essa a forma que ela encontrou para tentar sobreviver no mundo atual? Seria mais “fácil” tentar contornar essas opressões que nos reduzem a meros objetos sexuais, do que de fato enfrentarmos e lutarmos contra elas e toda uma cultura que naturaliza isso? Por outro lado, se desde a infância a sociedade, a mídia e obras artísticas nos ensinam que mulheres são as musas inspiradoras das obras de grandes artistas; se somos aquelas que são reduzidas as denominações de “a namorada” ou “a esposa” de alguém – ao invés de sermos reconhecidas como seres completos – qual a resposta que podemos esperar de uma sociedade como essa? Como podemos afirmar nossa existência nesse mundo nos desvinculando dessas limitações e opressões? Essa é a principal questão que a autora tenta responder durante as revelações de suas memórias.

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A autora aponta que a misoginia é uma doença que atinge as mulheres e traz sequelas e sintomas que elas não sabem remediar. “Qual o diagnóstico dar ao tremor de mãos que ocorre depois que um estranho sussurra ‘boceta’ no seu ouvido, quando você está a caminho para o trabalho? Que medicamento tomar para deixar de ter medo de que o taxista não a esteja levando de verdade para casa? E o que dizer daquelas que atravessam tudo isso sem dizer nada?” Muitas mulheres tentam ignorar tais violências como forma tentativas de enfrentamento. Mas qual o desgaste físico e emocional que isso pode trazer futuramente? Qual o preço que pagamentos por ignorar uma violência que nos acomete e que não deveria ser algo “normal” de enfrentarmos?

Objeto Sexual
Na imagem: A autora Jessica Valenti (reprodução)

A princípio Jessica revela em Objeto Sexual que sua arma de proteção era o desdém, que ela não queria se sentir vítima, mas em seguida observa que essa própria relutância não nos protege de nada, apenas encobre os machucados que serão expostos mais cedo ou mais tarde, pelo preço da nossa saúde mental. As pessoas não querem ouvir nossas histórias tristes de abuso e assédio, então, retratam esses abusos como forma de piada. Podemos relembrar, por exemplo, o caso da última edição do Globo de Ouro. O apresentador Seth Meyers fez piada com as vítimas do ex-produtor Harvey Weinstein (que abusou e assediou de centenas de mulheres em Hollywood) durante a cerimônia.

Já na Parte II de Objeto Sexual, Jessica traz uma espécie de autoanálise sobre alguns de seus relacionamentos com homens, e através da narração do seu cotidiano a autora gera uma importante reflexão de como nossos próprios relacionamentos são construídos. Nessa segunda parte do livro, vemos um assunto muito importante e infelizmente vivenciado frequentemente por diversas mulheres: o estupro praticado pelo parceiro e a recusa de compreender que tal ato foi, de fato, um estupro.

Jessica recusa de acreditar que isso ocorreu com ela, mas observa que se qualquer jovem contasse o mesmo caso pra ela, ela não hesitaria em chamar o incidente pelo nome correto: estupro. Muitas mulheres tem receio de acreditar que seu parceiro foi capaz de praticar tamanha violência, além de possuírem o entendimento que é ensinado e construído culturalmente, de que as mulheres devem sexo aos homens, ainda mais quando elas estão dentro de algum relacionamento; faz parte do ciclo de opressão no qual todas estão inseridas, aquele que as enxerga como objetos sexuais que devem sempre cumprir o seu “papel”, de sempre agradar e trazer prazer aos homens. 

Em um mundo que romantiza relações abusivas, perpetuando em inúmeras obras artísticas o ciúmes de um homem como um “ato de amor”, ou mostrando que o controle de um namorado, marido ou parceiro é a forma dele demonstrar que ele se “preocupa” com você, infelizmente ainda somos culturalmente ensinadas que tais atos abusivos são demonstrações de amor. E Jessica expõe cada um desses atos que inicialmente ela enxergava como “normal”, algo como “os homens são assim mesmo”, como se fosse uma linguagem intrínseca dos homens para com as mulheres com os quais se relacionam.

A didática e excelente animação “Não confunda amor com abuso” esclarece muito bem uma relação abusiva:

Através de suas memórias sem tabus ou meticulosidade, Jessica Valenti expõe abertamente seus relacionamentos abusivos, os abusos vivenciados em espaços públicos, e questiona temas como a cultura do estupro, aborto e o machismo de ser uma mulher produtora de conteúdo na internet.

Objeto Sexual: Memórias de uma Feminista é uma obra essencial para quem pretende adentrar ao feminismo através de um livro com uma linguagem descomplicada, que tanto adolescentes quanto adultos podem apreciar. Parece que estamos tendo uma longa conversa com Jessica Valenti, na medida que vamos revendo e analisando nossas próprias relações, diante desse mundo que ainda nos enxerga como objetos sexuais em todos os espaços. 

“Estamos presas entre corpos enormes, incapazes de nos mover, com muito medo de gritar ou chamar atenção para nós mesmas. Estamos presas no trem, na multidão, na rua, na sala de aula. Se não temos para onde ir a fim de escapar dessa reação ao nosso corpo, onde é o lugar em que não nos sentiremos assim? A ideia de que esses crimes não dão em nada alimenta o otimismo cego de homens que não entendem o que significa viver em um corpo que atrai determinado tipo de atenção com força magnética.

Que não entendem como é perceber um estranho sorrindo ao apalpar-se ou saber que esse é o preço de ser mulher. Que não compreende que os espaços públicos não são de fato públicos para você, mas sim uma série de eventos-surpresa privados que você não pode prevenir nem esquecer. E assim você coloca seus fones de ouvido e olha direto para frente, e não sorri mesmo quando dizem para fazê-lo, limitando-se apenas a continuar andando.”


Objeto SexualObjeto Sexual: Memórias de uma Feminista

Autora: Jessica Valenti

Editora Cultrix

232 páginas

Lançamento: 06 de março de 2018

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Fundadora e editora do Delirium Nerd. Apaixonada por gatos, cinema do oriente médio, quadrinhos e animações japonesas.
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