Hannah Gadsby – Douglas: arte, trauma e neurodiversidade

Hannah Gadsby – Douglas: arte, trauma e neurodiversidade

Em 2018, um especial de stand up catártico foi lançado na Netflix e se tornou um sucesso mundial inusitado. Era Nanette. Com ele, a comediante, escritora e atriz australiana Hannah Gadsby ganhou fama dissecando no palco o próprio trauma. Gadsby usou experiências de violência sofridas – como mulher lésbica que cresceu na Tasmânia – como material para compor uma peça de humor. Entretanto, não se ofertou como alvo das piadas.

Hannah Gadsby - Douglas
Hannah Gadsby | Imagem: Ryan Pfluger

A princípio, Nanette faz o público relaxar e rir. Porém, de repente, ela passa a trazer motivos justos para chorar. Há, no centro de sua performance, uma reflexão sobre a comédia (e a arte em geral) como campo historicamente dominado por homens brancos heterossexuais. Bem como – e talvez por consequência – um lugar que frequentemente trata muito mal a diferença.

[ALERTA DE SPOILER na próxima frase e no restante do texto]

No mesmo show, Hannah conta que está se aposentando da comédia. Não foi bem o que aconteceu. E, quem aprecia no humor abordagens experimentais, cáusticas – e, ao mesmo tempo, finas – pode dizer: Ainda bem.

“O mundo da arte não existe em um vácuo”

Hannah Gadsby em Nanette
Hannah Gadsby em Nanette | Imagem: Netflix

Gadsby tem formação em história da arte pela Universidade Nacional da Austrália. Sua piada sobre a crítica que tachou seu trabalho como “aula” e não comédia, funciona também como oportunidade para apontar, por exemplo, o problema em esquecer que Van Gogh não era apenas um gênio incompreendido. O artista sofria de uma condição que pode ter sido cruelmente romantizada. Do mesmo modo, ela recorda a misoginia doentia de Picasso.

Aparentemente, não há nada engraçado em perceber que a adoração a um artista como um gênio solitário é um tanto problemática. Hannah Gadsby apresenta de maneira didática ideia de que artistas fazem parte de seu tempo e de sua comunidade. Porém, Gadsby não falha no humor. A mesma ideia vem com a exposição do ridículo de um homem palestrinha. Um indivíduo que quis dar sua contribuição depois do show, dizendo que ela não deveria tomar antidepressivos porque é uma artista e “se Vincent Van Gogh tivesse tomado medicamentos, não teríamos Os Girassóis”.

“Eu adoro ser confundida com um homem, porque apenas por alguns momentos, a vida fica muito mais fácil! Eu sou NORMAL, rei dos humanos, sou um homem branco heterossexual!” – Hannah Gadsby

A comediante lembra que o humor e a arte podem funcionar como açúcar que camufla o gosto ruim de um remédio. Todavia, as dores mais profundas causadas por um mundo violento podem até se agravar num contexto que elogia a autodepreciação e os tormentos psíquicos. A loucura de Van Gogh o teria impedido de agir para vender seus quadros. Mesmo assim pintava, com a ajuda de um irmão que o amava.

Hannah Gadsby também não propõe que a arte se torne lugar de cura. Ao invés disso, lança mão de seus recursos de cuidado com sua saúde mental e trajetória intelectual para criar performances provocadoras e corajosas.

“Não estou aqui para receber sua pena. Estou aqui para perturbar sua confiança.”

Hannah Gadsby em Douglas
Hannah Gadsby em Douglas | Imagem: Netflix

Tal qual em Nanette, a comediante entregou o especial Douglas (Netflix, 2020) subvertendo partes da fórmula mais batida do stand up. Ela fala em nome próprio. Neste sentido, o show nomeado em homenagem ao seu cachorro, alfineta o patriarcado.

Novamente, o conteúdo incomoda. Uma crítica chega a reduzir Douglas a um monólogo de ataque à estrutura social opressiva que teria formado a comediante, enquanto ela continuaria se mostrando presa e obcecada por essa mesma estrutura. Resta saber se tal conclusão foi motivada por inseguranças de Gadsby ou do crítico.

Ainda que parecendo um pouco preocupada demais com a forma como seus haters a veem, Gadsby faz bom uso de sua antipatia. Assim, misóginos, homofóbicos e anti vacinas recebem atenção especial. Até os detratores que sugerem que Gadsby não é engraçada podem ter dificuldade em conter o riso vendo Douglas. Especialmente quando ela faz uma apresentação de slides, trazendo comprovação de que a maioria das pinturas renascentistas com mulheres as mostrava nuas, em grupos de três e segurando coisas aleatórias sem motivo aparente.

Douglas também vem com uma pergunta aparentemente óbvia, mas muito pertinente: “Por que passamos tanto tempo procurando Wally? Ele deveria ter que se encontrar, como o resto de nós“. Este parece ser o espírito da revelação da comediante sobre ter recebido, apenas em 2017, um diagnóstico de autismo de alta funcionalidade.

“Conhecimento é poder, ignorância é prisão e sentimentos podem ser tratados”

Hannah Gadsby
Hannah Gadsby | Imagem: The Quint

Sobre os desdobramentos do diagnóstico, Gadsby deixa o público saber que ela encontrou compreensão sobre algumas de suas contradições e dificuldades. De acordo com uma entrevista à Vogue australiana, ela conta que Douglas foi estruturado para expressar um jeito neurodiverso de pensar. No início do show, Hannah narra a estrutura integralmente e até dá algumas de suas piadas com antecedência.

Perguntar se o que Gadsby faz é comédia, Ted Talk, performance artística ou só discurso, pode ser algo legítimo. Mas também é difícil negar que seu trabalho é criativo, impactante e novo. Piadas têm alvos e Hannah não faz comédia de chutar cachorro morto. Todavia, sua habilidade está em incluir histórias pessoais dramáticas em roteiros cujos alvos não são os sacos de pancada de sempre. Isso é reconhecível e, para muitas pessoas, até desejável.

Enfim, tratar o público como parte da conversa que ela quer ter se torna um traço de sua comédia. E que conversa engraçada, inteligente e socialmente relevante Hannah Gadsby constrói! Ela diz que Douglas é seu “difícil segundo álbum”. E, assim como a diferença (ou o que é diferente), o ritmo pode não agradar todo mundo, mas dá o que falar e pensar.

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Observadora e pitaqueira com lugar de fala em interesses aparentemente desencontrados e uma vontade, que dá e não passa, de achar os fios que os conectam. Internacionalista, feminista interseccional, graduada em ciências sociais que prefere ser identificada como educadora social e cozinheira amadora. Ela/dela.
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