A Felicidade das Coisas: o retrato do Brasil que quase chegou lá

A Felicidade das Coisas: o retrato do Brasil que quase chegou lá

Com A Felicidade das Coisas, a cineasta Thais Fujinaga estreia na direção de longas-metragens apresentando um tema bastante caro a ela: as relações familiares e seus contextos.

No filme, Paula (Patrícia Saravy) está passando as férias em sua recém adquirida casa de praia no litoral paulista, com sua mãe e seus dois filhos. Porém, ela não para de trabalhar. Mesmo estando grávida do terceiro filho, ela passa os dias fazendo trabalhos domésticos e tocando a obra da piscina que tenta construir no quintal. Até mesmo quando vai à praia, seu momento de lazer parece pouco.

Paula (Patrícia Saravy) em "A Felicidade das Coisas", filme de Thais Fujinaga
Paula em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

Apesar dos esforços de Paula, os filhos não parecem muito satisfeitos. Gabi (Lavinia Castelari) demanda muita atenção e se revolta com o fato da mãe fumar para aliviar o estresse que a acomete. Já Gustavo (Messias Gois) está entrando na adolescência e busca se afastar de sua família (composta apenas por mulheres, já que o pai é ausente) para se aproximar de jovens meninos da sua idade.

“A Felicidade das Coisas” é o retrato do Brasil que ascendeu mas caiu

Embora o filme tenha um primeiro ato longo, que se estende por muito tempo mostrando eventos cotidianos até finalmente engrenar em algum fio dramático, seus símbolos são bastante claros. A família de Paula representa as várias famílias brasileiras que conseguiram ascender até um patamar de classe média baixa nos últimos anos, e que só puderam aproveitar seu novo poder de consumo durante um período muito breve, antes do país entrar em colapso novamente.

"A Felicidade das Coisas" e o retrato do Brasil que ascendeu mas caiu
A filha Gabi em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

A piscina é um sonho de consumo de Paula. Sonho este que muitos ao seu redor nem sequer compreendem. Mas a família tem dificuldade de bancar o projeto financeiramente, atrapalhada pelo marido que descumpriu sua parte no acordo de pagar metade, usando o dinheiro para quitar outras dívidas.

Sendo assim, a família só consegue aproveitar a piscina de forma improvisada, por um dia, antes de tê-la levada embora. Essa cena reflete o eterno Brasil do “quase lá”, vivendo de promessas e esperanças que raramente se concretizam. E, quando se concretizam, só duram pouquíssimo tempo.

Maternidade num mundo patriarcal

Gustavo, o filho mais velho, passa boa parte do tempo das férias observando e conversando com os meninos locais que vão pescar com seu pai dentro do terreno da casa de Paula, que é na beira de um rio. Tais meninos um dia perguntam se Gustavo não tem pai, ao que ele responde que tem sim.

Maternidade num mundo patriarcal
Gustavo em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

Essa frase de Gustavo denota o tão conhecido status patriarcal dentro de muitas famílias brasileiras. O pai existe, mas nunca está presente para apoiar seus membros. Paula é casada, mas o marido não está lá nem financeiramente, nem emocionalmente, nem fisicamente, já que ficou em São Paulo enquanto a família foi passar as férias no litoral. A única vez que vemos o pai “aparecer” são nas conversas telefônicas de Paula, mas nem sequer escutamos a voz dele. Esse pai e marido é uma entidade fantasmagórica no filme, assim como o é na vida de sua família.

Em "A Felicidade das Coisas" a paternidade é uma entidade fantasmagórica
Paula após telefonar para o marido em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

O fato de Paula ter que comprar e carregar o material da obra da piscina sozinha, mesmo estando grávida, também é um forte símbolo da crueldade dispensada às mulheres, que tem de trabalhar em tudo sem auxílio. Se quiser conquistar um modesto sonho de consumo, ela terá de ir atrás sozinha, enquanto ainda equilibra o trabalho doméstico e reprodutivo ao mesmo tempo.

A ascensão por meio do consumo

A diretora Thais Fujinaga enfatizou, em entrevista ao Delirium Nerd, que o título de seu filme não é irônico. Apesar da narrativa contemplar uma história melancólica, o título se refere realmente à felicidade proporcionada pelas coisas materiais.

Gustavo tem um certo fascínio por um clube que fica do outro lado do rio. Apenas sócios podem entrar, mas a família não é sócia. O clube, então, passa a ser objeto de desejo de Gustavo e dos outros meninos que moram no local, mas que também não tem acesso a ele.

Paula também se sente julgada pelos outros ao insistir na construção da piscina. Em um momento, diz a sua mãe: “Mania de achar que a gente não pode ter nada!“.

A ascensão por meio do consumo
Paula em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

O consumo aqui não é o mero ato frívolo de adquirir bens materiais. Ele representa a conquista de uma dignidade que sempre foi negada à maioria da população brasileira. Por meio desses desejos de consumo, os membros dessa família buscam pertencimento. E a frustração se dá justamente no limiar entre a ascensão e a queda. Paula conseguiu comprar a casa de veraneio no litoral, mas não consegue pagar a bendita piscina, nem se associar ao clube para entreter seus filhos. É o Brasil mergulhado perpetuamente no limbo do “quase lá”.

Desenvolvimento contido dos personagens

Apesar de apresentar símbolos claros e trazer uma história com bastante potencial dramático, A Felicidade das Coisas se desenvolve de forma bastante contida. As atuações de todo o elenco são afiadas e bastante naturalistas, algo um pouco raro de se ver no cinema brasileiro, e fruto do trabalho minucioso que a diretora fez na escolha do elenco e nos ensaios com os atores.

O enredo vai desenhando dois núcleos de personagens: a parceria da avó com a neta e o afastamento entre mãe e filho.

"A Felicidade das Coisas" é escrito e dirigido por Thais Fujinaga
Avó e neta em “A Felicidade das Coisas” | Imagem: reprodução

Enquanto a obra de Thais Fujinaga é muito eficaz em passar mensagens claras sobre as condições sociais que deseja retratar, a economia dramática do roteiro impede que nos aproximemos mais dos personagens. Quando a narrativa começa a engatar, o longa termina, deixando várias resoluções potenciais em aberto. Porém, é um filme que merece ser assistido pelo grande mérito de representar muito bem uma realidade tão presente no Brasil.

A Felicidade das Coisas estreia nos cinemas dia 19 de maio.

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Cineasta, musicista e apaixonada por astronomia. Formada em Audiovisual, faz de tudo um pouco no cinema, mas sua paixão é direção de atores.
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