Tudo é Rio: uma investigação sobre tudo o que é incontrolável

Tudo é Rio: uma investigação sobre tudo o que é incontrolável

A Literatura Brasileira vive um momento de renovação. Apesar da baixa taxa de leitura no país, os livros nacionais contemporâneos ganham destaque. A qualidade da escrita e a conexão com nossa história nos afastam momentaneamente de Dickens e Austen, nos lançando nas páginas tupiniquins. No centro desse novo cenário, destaca-se a mineira Carla Madeira, com seu arrebatador livro de estreia, Tudo é Rio.

Em 2021, a obra, juntamente com Torto Arado de Itamar Vieira Junior, conquistou sucesso de vendas, colocando Carla Madeira no topo dos mais vendidos. Este livro, descrito pela própria autora como um “transbordamento”, foi guardado por mais de 14 anos antes de ganhar vida.

Quando foi finalmente lançado, revelou-se uma obra polêmica, envolvente e com um final surpreendente e reflexivo, que tem gerado debates acalorados. Mas a pergunta que fica é: será que Tudo é Rio justifica todo esse hype?

Livro "Tudo é Rio", pela editora Record.
Capa do livro de Carla Madeira | Imagem: reprodução

Tudo é Rio: uma história sobre o imperdoável

Ambientado em um tempo passado, o livro começa de forma crua e impactante. Carla domina a linguagem, escolhendo palavras certeiras que nos envolvem pela correnteza de sua trama.

Na narrativa, conhecemos Dalva e Venâncio, um casal marcado por um evento brutal e imperdoável. Além deles, há Lucy, a prostituta que se tornou protagonista de sua própria vida, a mulher mais cobiçada da cidade, mas obcecada por Venâncio, o único homem na Terra a rejeitá-la.

Embora o enredo pudesse ser considerado clichê – um triângulo amoroso envolvendo o bruto, a santa e a prostituta, repleto de amor e tragédia – é exatamente aí que brilha a escrita de Carla Madeira.

O sucesso de Tudo é Rio não se limita à trama, mas também à linguagem primorosa e à construção esmerada dos personagens. Ao abordar o tema do amor, Carla nos presenteia com uma resposta tão simples e bem escrita que se tornou um dos trechos favoritos dos leitores:

Mas e o amor? O que é senão um monte de gostar? Gostar de falar, gostar de tocar, gostar de cheirar, gostar de ouvir, gostar de olhar.

Gostar de se abandonar no outro. O amor não passa de um gostar de muitos verbos ao mesmo tempo.

Leia também >> Com poesia e crítica social, Eliana Alves Cruz convida a reconhecer a negritude como espelho do Brasil

A escritora não impõe julgamentos fixos e isolados. Sua intenção é retratar a humanidade em sua essência, repleta de imperfeições, com os aspectos do bem e do mal em constante conflito interno.

Em contraposição aos três protagonistas, outros personagens orbitam nesse universo, contribuindo para tecer uma delicada colcha de relações humanas. Aurora, mãe de Dalva, é uma figura sábia que aparece no livro para acolher e confortar.

Um dos pontos altos da leitura é a carta que ela escreve à filha, numa tentativa de auxiliá-la a superar o sofrimento causado por Venâncio (aviso: não contém spoilers da narrativa):

O sofrimento é certo como a morte e tão inegociável quanto. […] Rezo por você. Rezo por mim. O que peço a Deus com fervor é para dar conta. Pede também, filha. Pede para dar conta.

A gente passa a vida pelejando com o dilema de existir ou desistir, com o que é bom e o que é ruim, o certo e o errado, a morte e a vida. Essas coisas não se separam.

O lugar que dói é o mesmo que sente arrepios. É no corpo, no amor e na liberdade de escolher as coisas que a gente fica inteiro ou despedaçado. Então, pede para a parte boa dar conta da parte ruim.

Carla Madeira – Foto: Gustavo Andrade/Agência O Globo

Uma investigação sobre a água, seus movimentos e tudo o que é incontrolável

O livro não é uma obra que se lê à distância; é uma experiência visceral. Envoltas pela correnteza da vida dos personagens, temos a tarefa árdua de concluir esse trajeto com Carla Madeira sem nos emocionar.

As atitudes de Venâncio nos atingem como um soco no estômago. As lágrimas dançam em nossas retinas diante do sofrimento de Dalva, e um sorriso cúmplice nos insinua ao testemunhar o erotismo audacioso de Lucy.

Ao longo das 210 páginas, somos instigadas a refletir sobre a dualidade da natureza humana. Somos luz? Somos sombra? Ou estaria a razão com Tolstói, quando afirmou: “Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida é feita de sombra e luz“?

Com Carla Madeira, o bem e o mal, a luz e a sombra, são apresentados como aliados, não como adversários. Estamos diante de uma escrita poética singular e fluida, tal qual a água, metáfora que permeia todo o livro. Percebemos que a vida é um fluxo contínuo, assim como as águas que seguem seu curso, deixando para trás os galhos secos do passado.

“Estavam diante de um caminho alagado. Sob a superfície da água, não era possível ver nada que não fosse o céu azul. Ainda assim, o próximo passo trazia a possibilidade dos abismos”.

O que torna o livro genial não é apenas a trama, que se concentra na obsessão de um triângulo amoroso, mas sim a maneira única como a autora aborda temas frequentemente explorados de forma singular. Carla foge do idealismo amoroso e nos presenteia com o retrato do imperfeito. Ela mergulha no desamor, no ódio, na vingança e em todas as emoções que nos fazem questionar a falta de controle sobre o fluxo da vida.

A vontade irresistível é mergulhar em suas palavras e devorar a história em uma única tarde chuvosa de domingo. Contudo, como uma obra literária de qualidade, merece ser apreciada lentamente, suscitando em cada uma de nós a seguinte pergunta: é possível perdoar o imperdoável?

Colagem em destaque: Tatiane Machado para o Delirium Nerd

Escrito por:

6 Textos

Mais uma pessoa que escondeu por anos a verdadeira vocação, enfim, liberta! Encontro nas palavras a forma de expressar minha paixão por cinema, literatura e cultura em geral. Não me convide para fazer trilha, mas vou até o fim do mundo com você em busca do Tiramisu perfeito.
Veja todos os textos
Follow Me :