Monster: o retrato sensível por muitos pontos de vista

Monster: o retrato sensível por muitos pontos de vista

A imparcialidade é primordial e, ao mesmo tempo, difícil de colocar em prática. Toda ação é atravessada pelo que vimos e sentimos, não existe nada no mundo que não parta de um ponto de vista ou não seja um recorte de uma realidade específica. E a arte, por mais ficcional que possa ser, não foge dessa condição, independentemente de estarmos na posição de produtores ou apreciadores.

Penso muito no quanto me coloco nos textos que escrevo e em como posso evitar ser parcial, mas quando falo do cinema de Hirokazu Koreeda e, em especial, do seu longa-metragem mais recente, seria pouco honesto não explicitar a minha relação com as suas produções.

Meu primeiro contato com o cinema do diretor foi em 2018, durante o festival de cinema da minha cidade. O interesse por Assunto de família, que aparecia como destaque da programação, surgiu após muito explorar a seleção.

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A vitória da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes pode ser irresistível para os cinéfilos, mas o que verdadeiramente me impeliu a correr atrás de um ingresso foi uma imagem divulgada: uma família à beira da praia, pulando uma onda, virada de costas para a câmera.

Com poucas informações, aguardei as luzes da sala se apagarem. Quando se acenderam novamente, eu era apenas um grande emaranhado de lágrimas e soluços. A única coisa que conseguia dizer era “isso é tão bonito!”, ainda com a voz embargada, antes de voltar a chorar e ser consolada por uma amiga.

Foi essa experiência que colocou Monster no topo da minha lista de filmes mais aguardados do ano, mesmo antes do anúncio dos selecionados pelo festival que frequento.

O tema central da nova obra do diretor continua a ser os vínculos, partindo da preocupação de uma mãe solteira quando o filho começa a agir de maneira estranha.

Contudo, Koreeda e o roteirista Yuji Sakamoto estruturam o enredo de maneira não linear, deslocando o ponto de vista entre os personagens nas três partes, para que, no final, o espectador possa responder à pergunta: quem é o monstro?

Monster, os laços afetivos e o cotidiano

Em Monster, a primeira perspectiva compartilhada é a de Saori (Sakura Ando), que cria sozinha o filho Minato (Soya Kurokawa) após o falecimento de seu esposo.

O vínculo estabelecido entre mãe e filho traz, logo no início, a sensibilidade característica com a qual Koreeda filma os laços afetivos em suas histórias, preenchendo as cenas com pequenos gestos.

Apesar das muitas demandas diárias, o olhar materno atento não demora a perceber as mudanças no comportamento do menino. É em torno da preocupação de Saori que o filme constrói o mistério que se estende por ⅔ do longa, antes de adquirir os contornos de drama.

Monster, filme de Hirokazu Koreeda.
(Imagem/Foto: Imovison)

Buscando entender as oscilações do filho, a mãe confronta as autoridades do outro ambiente formador e influente nas atitudes de um adolescente: a escola. Ao expor a problemática para a diretora e os professores, cria-se uma divergência entre quem o garoto é em casa e quem ele aparenta ser no colégio.

Minato é acusado pelo professor Hori (Eita Nagayama) de praticar bullying com seu colega de classe Yori (Hinata Hiiragi), o que soa ainda mais absurdo para a mulher. A narrativa transporta-se então para o ponto de vista do docente e como ele percebe a dinâmica entre os dois jovens.

Conhecemos mais das personalidades de Minato e Yori a partir da visão de cada personagem. Durante os dois primeiros atos, as tentativas de compreender o cenário partem tanto da mãe quanto do professor, cada um agindo da maneira que consegue.

Tanto Saori quanto Hori chegam a visitar a casa de Yori. Ela encontra um menino gentil e solitário (e o pé perdido do tênis de seu filho); ele encontra um pai hostil à própria criança.

O retrato da suposta briga entre os garotos parece inconclusivo até o caminho para o terceiro ato, quando a ótica do relato deixa de ser externa ao conflito e passa a ser interna. O quebra-cabeça de Koreeda e Sakamoto só começa a se formar para o espectador pelo contato direto com o olhar de quem é sujeito daquela história.

Monster, filme de Hirokazu Koreeda.
(Imagem/Foto: Imovison)

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O ponto de vista da personagem e a visão panorâmica da narrativa

Durante a divulgação de Monster, que teve sua estreia em maio em Cannes, surgiram comparações com o clássico japonês Rashomon (1950) pela estruturação da narrativa em três perspectivas diferentes.

Ao ser perguntado sobre o assunto em entrevista ao The Film Stage, Hirokazu Koreeda advogou a favor da diferença entre as obras.

Enquanto o filme de Akira Kurosawa mostra versões alteradas de uma mesma história, Monster utiliza da mudança de foco para produzir o mistério e construir, no final, um quadro mais amplo e verdadeiro que um simples recorte.

“É muito interessante. Todo mundo está trazendo essa coisa de Rashomon, mas eu sinto que [Monster] é fundamentalmente diferente, porque em Rashomon, cada personagem, quando eles voltam na história de novo, eles acabam sendo um personagem diferente dentro do filme, dentro da história, qualquer que seja a história específica.

Enquanto nesse, as pessoas não mudam, mas o monstro que aparece, aparece em lugares diferentes.”

(Hirokazu Koreeda para o The Film Stage, tradução livre)

Monster, filme de Hirokazu Koreeda.
(Imagem/Foto: Imovison)

O trabalho do roteiro de Monster é admirável e é amplificado pela forma que a direção flutua entre o problema nas pequenas dinâmicas interpessoais e os grandes dilemas em uma sociedade distorcida pelo machismo e pela homofobia.

Dessa forma, cada camada revela um pouco mais de quem Minato e Yori realmente são, mas também das dificuldades de suas famílias, das brincadeiras que fazem e das ruas em que caminham, sempre cercados por uma delicadeza ímpar do cinema de Koreeda.

O panorama se completa com a trilha sonora composta por Ryuichi Sakamoto, vencedor do Oscar em 1988 por O Último Imperador, que faleceu pouco antes do lançamento do filme.

Como tudo parte da nossa visão pessoal, não posso evitar dizer que mais uma vez deixei a sala de cinema em meio ao choro, mas dessa vez salva pelas luzes que não se acenderam quando a sessão terminou.

Escrito por:

Carioca, flamenguista e gateira em tempo integral, projeto de roteirista-escritora nas horas vagas. Pode ser encontrada nas redes sociais comentando sobre literatura escrita por mulheres, cinema de horror ou a última corrida da Fórmula 1.
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