Foi em 2008 que a IDW Publishing lançou um quadrinho chamado Locke & Key. Com roteiro de Joe Hill, arte de Gabriel Rodriguez e cores de Jay Fotos, a primeira edição da revista começa como todas as histórias de terror começaram antes dela: com um assassinato.
Rendell Locke é um conselheiro estudantil e a vítima das balas de Sam Lesser, seu ex-aluno com problemas psiquiátricos e uma aparente fixação por chaves. Após a morte do patriarca ter sido explicada pela polícia como fruto de uma invasão domiciliar, os membros remanescentes da família juntam o que lhes restou e decidem mudar-se para Lovecraft (Massachusetts), onde está a casa de infância dos Locke: uma velha mansão chamada Keyhouse. Rendell costumava dizer que, se algo acontecesse com ele, Nina – sua esposa – deveria levar os filhos – Tyler, Kinsey e Bode – para Keyhouse. Nina sempre acreditou que Rendell dissesse isso pelas lembranças de sua infância, mas Bode é o primeiro a descobrir que Keyhouse é muito mais do que apenas uma velha mansão, e antigos demônios serão despertados com o regresso dos Locke àquela casa. Vamos então aos 10 motivos para você parar o que está fazendo e ir ler essa HQ!
1 – Personagens que crescem com a trama
Locke & Key é um daqueles quadrinhos sem protagonistas, onde nós acompanhamos os personagens para onde a história nos leva. E quem acompanhamos com maior frequência é o trio de irmãos Locke. Porém não ficamos limitados a eles, o que traz para a história uma multiplicidade de tramas, personalidades e reações que muitas vezes falta quando somos limitados a um ou dois protagonistas.
Devido a essa característica da narrativa, os personagens secundários também são montados de forma complexa, tendo sua importância gravada seja no desenvolvimento central da trama ou no crescimento pessoal dos personagens fixos. Como boa parte da história é contada do ponto de vista de crianças e adolescentes, damos de cara com personagens naqueles anos decisivos de formação. As diferentes personalidades dos irmãos são pouco a pouco desenvolvidas pelo roteirista, de forma que não apenas estes evoluem com os acontecimentos recentes, mas também o leitor cresce com aqueles personagens ao ser pouco a pouco inserido em suas cabeças através de flashbacks ou viagens para dentro de suas mentes – às vezes literalmente.
Outro ponto interessante de “Locke & Key” como história de suspense/terror é que não há uma polarização entre vilões e mocinhos. A história deixa claro que pessoas são bem mais complicadas do que isso, nem tudo é o que parece, e desenvolve realisticamente (ou o mais realisticamente possível) o mote de seus personagens.
2 – Arcos fluídos
A leitura das edições tem uma fluidez entre silêncios, falas e enquadramentos que poucos quadrinhos feitos por muitas mãos conseguem atingir. O roteiro e a arte estão em perfeita sincronia. A narrativa tem aquele toque de literatura trazida por Joe Hill, que também é escritor de livros do gênero; inclusive, escritores de literatura fazem os melhores roteiros de quadrinho quando encontram o desenhista certo. E Hill, Rodriguez e Fotos fazem um belo trabalho em equipe.
Toda ação dos personagens e cada cena é posta com um propósito definindo e se desenvolve em uma espécie de encadeamento na história, como se Hill colocasse dominós um na frente do outro e, uma vez que dada a largada, os personagens se veem em cadeias de acontecimentos que não podem ser parados. O que não impede que eles tentem. A progressão dos arcos e o timing de finalização dos capítulos é muito bem planejado para dar aquele gostinho de quero mais. Um alívio para quem já cansou de roteiros de terror fáceis é que as escolhas tomadas, apesar de nem sempre assertivas, soam lógicas e coerentes, evitando aqueles momentos de “puta merda como você é burro” tão comuns. O que, aliás, nos leva ao próximo ponto.
3 – Crianças não são subestimadas
É fácil para adultos se perderem quando escrevem sobre crianças e adolescentes. Ou eles podem sair infantis demais, ou então são adultos no corpo de uma criança. Em Locke & Key, temos crianças espertas, mas falhas, que são capazes de pisar na bola eventualmente e continuam cientes da realidade a sua volta ao conduzir seus movimentos.
Elas não acreditam fielmente em tudo que os adultos têm a lhes dizer, mas também não desconfiam de tudo. É interessante ver que, na verdade, dentro da história elas são o tempo todo subestimadas pelos próprios adultos. Bode, o irmão mais novo, é também posto de lado pelos irmãos adolescentes, que são negligenciados pelos adultos, e etc. É fácil se identificar ao assistir o mundo do ponto de vista dos pequenos, a sua evolução e frustração com a invisibilidade de seus problemas pelo mundo dos adultos, que estão sempre centrados em seu próprio universo.
4 – A arte de Locke & Key é maravilhosa
A arte, assinada por Gabriel Rodriguez, é simplesmente linda e as cores de Jay Fotos dão aquele toque final que produz páginas de encher os olhos! Principalmente as capas são um espetáculo à parte. Keyhouse tem uma imponência arquitetônica de tirar o fôlego e a ambientação te arrasta para aquele mundo mágico de chaves e demônios sem você perceber.
Outra coisa que se destaca no trabalho é como os quadros estão em sincronia com o texto e muitas vezes são capazes de gerar imagens poéticas que dizem muito sobre o estado emocional do personagem em questão. As sequencias em segundo plano dão um toque especial ao trabalho; muitas vezes o quadro conta para o leitor duas histórias: uma delas acontece na sua frente, nos diálogos, enquanto outra se desenrola nos bastidores. E os desenhos estão cheios de referências para os fãs mais atentos.
5 – É muito divertido descobrir a magia das chaves junto aos Locke
Quando se mudam para Keyhouse, as crianças Locke começam a encontrar chaves que destrancam diversas habilidades para os seus portadores dentro da casa. A habilidade de voar, de se transformar em um fantasma, de mudar de sexo ou raça… E uma das coisas mais divertidas do quadrinho é, sem dúvidas, ficar naquela ansiedade para descobrir mais sobre essas chaves.
A magia de Keyhouse traz alguns momentos de leveza e divertimento para uma história tão carregada de tragédia. Os Locke não sabem – e consequentemente nós também não – quantas chaves a casa possui, o que cada uma faz, como surgiram ou por que são capazes de fazer o que fazem. Mas a dúvida final é sempre: como essa chave será usada no futuro? É possível perder algumas horas de sono pensando na gama de possibilidades que Keyhouse possibilita para os seus moradores.
E todas essas perguntas serão eventualmente respondidas na trama.
6 – Submergindo na mitologia de Joe Hill
Esse ponto é especial para aqueles que já são leitores de Joe Hill, e para quem pretende se tornar. Como esperado por aqueles que já acompanham o autor, “Locke & Key” também está inserido na mesma mitologia de trabalhos como “O Pacto”, “Nosferatu” e “Fantasma do Século XXI”. Na história, a magia está presente no mundo, porém seu acesso é restrito às crianças, como mecanismo de autoproteção.
Quando essas crianças se tornam adultos, tendem a esquecer os episódios ou acreditar que estavam sonhando ou brincando de faz-de-conta. Inclusive, a explicação final da história para a existência desse mecanismo e para o uso das chaves desperta muitas teorias sobre a mitologia de Joe Hill! (sim, Joe Hill é aquele carinha filho do Stephen King que vem bombando com seus livros de terror).
7 – O timing ideal
Tudo bem, as chaves e a magia de Keyhouse são momento divertidos, mas não podemos esquecer que esse é um quadrinho de terror/suspense. E algumas passagens são de realmente de arrepiar! O design dos vilões tem certa influência nos mangás japoneses e o uso de sombras carregadas é muito comum para conferir uma atmosfera sombria aos momentos de tensão.
A já mencionada sincronia entre e roteiro e arte cria aquele timing ideal para mini-infartos ao longo da história. Muitos quadrinhos, principalmente os de saída mensal, tem suas páginas cheias de informação e diálogos, o que deixa pouco espaço para o leitor se introduzir ali e preencher os silêncios com sua percepção, se deixar embalar pela história, fluir com o personagem… E Locke & Key trabalha bastante com essa ideia de silêncios, esperando o momento certo para te dar aquele susto.
8 – Um vilão que você vai amar/odiar
A história brinca com noções de bom/mau, divertido/triste e isso acontece com o seu vilão também. Que é encantador. Então aterrorizante. Então odioso. E então encantador novamente. Você desesperadamente quer que ele seja pego, ao mesmo tempo em que é tão gostoso apreciar a sua jornada. É interessante ver também que aqui, um artifício já batido – que é o vilão hiperinteligente e superpoderoso – não é utilizado.
Apesar de ser capaz de atitudes monstruosas, o vilão de “Locke & Key” é até mesmo bastante humanizado em suas reações. Seus planos são passíveis de falha e ele também se frustra e vê aliados se voltarem contra ele. Os irmãos Locke e seu inimigo contam pontos por igual; quem ganha a partida hoje, pode perder amanhã. O roteiro tem uma tendência de deixar o leitor com aquela sensação incômoda de que foi jogado dentro de uma história pela metade, sem a menor ideia de como tudo aquilo começou ou o porquê de estar acontecendo, e o recurso mais usado para isso é o seu vilão. O personagem – que muda de sexo e de nome como quem muda de roupa – deixa a entender que está na fase final de uma trama complexa que vem se desenrolando há muitas décadas com aquela família, e então somos guiados pela história para entender como as coisas chegaram naquele ponto.
9 – Sem pontas soltas do começo ao fim
É comum e compreensível que histórias longas se percam nas próprias reviravoltas e deixem diversas pontas soltas no final. Às vezes é o editor que mexeu em muita coisa, outras vezes o escritor apenas não tinha planejado o final e foi deixando muita coisa para resolver depois. Ao ler a história, podemos ter diversos nós na cabeça que levam a crer que aquilo não podia ter um fim que fizesse sentido. Mas tem. E como tem. A história é tão bem amarrada que nenhum personagem secundário é deixado de lado e tem o seu lugar na história reafirmado e bem encaixado com maestria. Isso é muito difícil de se fazer em qualquer trabalho que demora anos para ficar pronto, e é feito aqui de forma a não deixar pontas soltas e traz um desfecho satisfatório para as dúvidas do leitor, dos personagens e de Keyhouse.
10 – A história já foi concluída
Você não vai precisar esperar uma edição todos os meses para terminar de ler “Locke & Key”. São 7 arcos e 37 capítulos já finalizados, encadernados e prontos para serem lidos. Você pode adquirir aqui a edição importada com todas as edições. Ou, se preferir, pode comprar o primeiro volume aqui e o segundo aqui, ambos lançados no Brasil pela Geektopia. A série foi finalizada em 2012 e levou várias indicações à prêmios, inclusive ao Eisner Awards de 2011 como Melhor Série, no qual venceu como Melhor Escritor para Joe Hill no mesmo ano.
Ponto negativo: A representação feminina
Um ponto na série que deixa a desejar é a ausência de presenças mais marcantes de personagens femininas, principalmente em papéis de destaque. Hill já recebeu críticas à sua representação de mulheres por Nosferatu, e em Locke & Key o autor também não faz grandes progressos em termos de representatividade. Apesar de uma de suas protagonistas ser uma mulher (Kinsey, a irmã Locke do meio com uma atitude punk), e de haver muitas mulheres na história, estas são sempre o interesse romântico de alguém. Seria interessante termos personagens femininas na ficção que não tivessem sua trama amarrada a um romance, como muitos protagonistas masculinos não tem. Outro ponto incômodo é que em certo momento o autor cai no velho – e problemático – clichê do estupro como ferramenta narrativa; e precisamos parar de estuprar mulheres ficcionais como ferramenta para fragilizá-las.
A existência de um personagem gay na família e um vilão que transita entre gêneros não exclui o autor de derrapar ao abordar esses temas, pois este associa a homossexualidade do tio Duncan com o ato de ele gostar de brincar com a chave de troca de gênero, quando criança.
Apesar de alguns pontos negativos, Locke & Key é um ótimo entretenimento e possui uma história original, bem executada e que vale a pena ser conferida. O quadrinho foi adaptado em formato de série pela Netflix. Confira o trailer abaixo: