Sobre fevereiro: o mês que antes se dividia entre a semana do Carnaval (no Brasil) e o Dia dos Namorados (nos Estados Unidos e alguns outros países da parte “norte” do mapa-mundi) trouxe esse ano um dos filmes que prometeu vir como um dos mais importantes, não apenas da história do cinema mas da cultura e própria vivência africana e negra. Dito isso, é evidente que nós, feministas latinas e afro-latinas interseccionais, estávamos mais do que ansiosas para ver essa promessa, que como esperado entregou o que nos foi apresentado ao longo dos trailers e do clássico quadrinho da Marvel.
Pantera Negra está sendo considerado como um dos melhores filmes da Marvel (se não o melhor), demostrando assim como o longa da Mulher-Maravilha (no caso da DC e de protagonistas femininas) que filmes não apenas protagonizados mas com um grande número de membros da equipe criativa composta por grupos minoritários (nessa caso, pessoas negras) são extremamente rentáveis e igualmente procurados, tais quais os diversos exemplares protagonizados – em todas as esferas – por brancos, majoritariamente homens.
Como foi dito há algumas semanas no texto de Tânia Seles, em que ela fala sobre a importância de um filme como este para a comunidade negra, nos é evidente que Pantera Negra tem potencial para iniciar um processo de importantes mudanças na maneira como personagens negros – sejam protagonistas ou não – são representados no meio cinematográfico e, em geral, midiático.
Em Pantera Negra vemos T’Challa após os acontecimentos de Capitão América: Guerra Civil. Acompanhamos sua ascensão ao trono e ao posto definitivo de Pantera Negra, assim como as questões posteriores envolvendo os aspectos políticos (internos e externos) de Wakanda.
Como esperado da Marvel, os cenários – mesmo aqueles não criados pelo computador – estão deslumbrantes. Ao vermos o reino de Wakanda pela primeira vez, esquecemos de respirar por alguns minutos, e como se não bastasse, ao deparamos com os habitantes do reino, nos vemos envolvidos em uma admiração ainda maior.
Os figurinos, considerando as roupas e os cabelos, tanto em território wakandiano ou não, apresentam uma riqueza de detalhes incrível. O que chama mais atenção é o cuidado e o capricho dado pela figurinista Ruth E. Carter e pela designer de produção Hannah Beachler às representações têxteis e estéticas das tribos de Wakanda, conseguindo passar ao mesmo tempo a particularidade de cada uma e a unicidade peculiar da moda e dos costumes e padrões africanos. Não é a toa que as inspirações para tanto vieram de povos africanos reais, estando a representação presente em Pantera Negra ainda mais verossímil.
O enredo não é particularmente algo novo, sendo o filme uma história de apresentação do novo herói da Marvel, tal qual seus diversos predecessores. A diferença aqui está, além do óbvio (a cor de pele da maior parte do elenco), na maneira como as personagens femininas são tratadas e retratadas. Em um filme em que temos quatro grandes personagens femininas negras – isso sem falar de cada Dora Milaje – sendo elas: a Rainha Ramonda, a Princesa Shuri, a espiã Nakia e a líder das Dora Milaje, Okoye, é, ainda sim, uma constatação valiosa nos depararmos com o tratamento de enredo, figurino e propriamente a história dada a cada uma das personagens femininas da trama.
Apesar de não serem o Pantera Negra, as histórias das personagens femininas são igualmente necessárias e importantes tanto ao desenvolvimento da trama quanto ao próprio T’Challa, já que a guarda-real é feita exclusivamente por mulheres. Tal representação, assim como o fato do elenco ser majoritariamente negro, apresenta um importante aspecto e posicionamento político, por parte daqueles que escolheram fazer parte do filme nas telas ou nos bastidores.
Na verdade, talvez a grande questão do filme, além de toda a importantíssima representação negra, seja a busca por um lugar no mundo. Busca que é representada através da figura de Erik Killmonger, o vilão. Mas será ele mesmo isso?
Ao assistirmos Pantera Negra torcemos (obviamente?) para T’challa, Nakia, Shuri e Okoye. Torcemos para que T’Challa derrotasse Kilmonger e que “salvasse” Wakanda das mãos de um, aparentemente, revolucionário radical que estava disposto a manchar as ruas e planícies de Wakanda com sangue wakandiano e de quem mais ousasse entrar em seu caminho. Torcemos para que Killmonger morresse, afinal, ele mesmo disse em mais uma cena crítica do filme, que tal qual seus ancestrais preferia a morte a ficar preso.
É curioso pensarmos sobre o assunto mais tarde, que fomos tão rápidas em tomar o lado do T’Challa. Além das óbvias questões raciais entre brancos e negros, o filme apresenta as divergências de classe na forma de T’Challa, criado majoritariamente em Wankanda (o nascido em berço de ouro – ou de vibranium?) e Erik, que cresceu em meio a violência, ao racismo e a pobreza, que assola grande parte da comunidade afro-descendente nos Estados Unidos.
Enquanto T’Challa, por grande parte do filme, escolhe tanto se abster das semelhanças entre os grupos aos quais Erik faz parte, quanto não dividir os benefícios de Wakanda e os privilégios que possui – mesmo que um pouco – com estes mesmos grupos, vemos Erik lutar para que tais grupos tenham finalmente as chances que por séculos lhes foram negadas ou, no mínimo, dificultadas.
Claro que os métodos propostos por Erik são mais do que questionáveis, mas ainda nos fazem pensar nas possibilidades que podemos criar e aplicar para que nossos objetivos de igualdade – tais quais os do antagonista – possam ser alcançados. Afinal, assim como Killmonger, queremos que aqueles que foram – e continuam sendo – por anos subjugados e marginalizados passem a ter as mesmas oportunidades e chances, integralmente falando, que os colonizadores.
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Pantera Negra pode ser um filme blockbuster, e considerando seu estúdio não duvidamos nem por um momento que o seja, mas o seu fator político com certeza fala mais alto. Ao longo das praticamente duas horas de filme (que passam voando, por sinal) nos transportamos a um lugar muito além de Wakanda. Somos ao mesmo tempo convidadas e compelidas de analisar tanto as questões políticas do significado de termos, em um grande filme, personagens negros esféricos e não estereotipados, quanto as questões sociais de desigualdade econômica, representadas e discutidas pelos mesmos personagens negros.
A profundidade dada a trama de Pantera Negra é notável, e diante da atual conjuntura e do fato do diretor do filme ser também negro, ousamos dizer que não poderia ser diferente. Não podemos ainda imaginar concretamente quais as consequências que essa aposta, extremamente ambiciosa – seja em termos de elenco, enredo, narrativa ou política – e de qualidade, trará para as produções cinematográficas e até mesmo televisivas daqui para frente. Um ponto com certeza foi feito, mas assim como tantos outros, ele precisa ser ouvido.