Six Feet Under faz parte de um seleto grupo de séries que marcaram a época, mantendo uma posição constante nas listas das melhores séries de todos os tempos. A produção foi ao ar em 2001 e teve seu final exibido em 2005. Produzida pela HBO e criada por Alan Ball, Six Feet Under teve 62 episódios divididos em cinco temporadas, com doze episódios em cada uma.
Revisitar essa obra é uma missão estimulante, pois a série foi revolucionária em diversos sentidos. Six Feet Under estreou no mesmo ano que séries notórias pela ação, como 24 Horas, Alias e Smallville. Embora essas três obras possuam premissas diferentes, todas elas buscam agilidade e respostas fechadas para os problemas apresentados.
Em Six Feet Under, não temos super-heróis ou agentes secretos para salvar o dia. Seu ritmo é lento e, às vezes, surrealista, como a vida real. De forma simples e sensível, sem a intenção de chocar sua audiência, a produção levantou diversos temas polêmicos, como morte, relacionamento homoafetivo, infidelidade, religião e relações familiares conturbadas.
A trama de Six Feet Under
De forma resumida, a série começa quando Nathaniel Fisher (Richard Jenkins), o dono de uma funerária em Los Angeles, morre, deixando seu negócio para seus filhos. Sem ter muito para onde correr, seu filho mais velho, Nathaniel “Nate” Fisher Jr. (Peter Krause), que vivia em Seattle há anos, aceita gerenciar o negócio da família junto com seu irmão David Fisher (Michael C. Hall). Sua mãe, Ruth Fisher (Frances Conroy), é uma dona de casa infeliz, anulada como mulher e que fica totalmente sem rumo após a morte do marido.
A filha mais nova, Claire Fisher (Lauren Ambrose), é uma menina desajustada com veias artísticas. Além dos Fisher, temos a atormentada e brilhante Brenda Chenowith (Rachel Griffiths) e sua família; o policial Keith Charles (Mathew St. Patrick), namorado de David; e Frederico Diaz (Freddy Rodríguez), um imigrante latino e o único funcionário da funerária, além de sua esposa, a enfermeira Vanessa Diaz (Justina Machado).
Inovação e representatividade
Nos dias atuais, é comum que uma série americana com narrativa centrada no cotidiano de uma família ou grupo de amigos possua um personagem gay. Embora ainda possamos e devamos discutir os estereótipos presentes em muitos desses personagens, é inegável que a representatividade LGBTT ainda está longe do ideal.
Na década de 2000, a permanência de personagens gays nas obras televisivas não era comum, tanto nos Estados Unidos quanto no mundo. Com exceções como Will & Grace e Dawson’s Creek, os personagens gays eram geralmente associados a tramas ligadas aos perigos da AIDS ou ao humor escrachado.
Porém, no ano 2000, uma pequena série estadunidense e canadense, produzida pelo canal Showtime, chamada Queer as Folk, começou a ser exibida. No ano seguinte, estreou Six Feet Under, que introduziu a jornada de um personagem gay e de um relacionamento interracial de forma realista e profunda.
Essas duas obras foram responsáveis por abrir espaços para inúmeros personagens gays na televisão. Sem dúvida, sem Queer as Folk e Six Feet Under, séries como Transparent e Please Like Me não existiriam.
As personagens femininas de Six Feet Under
A representação feminina nos anos 2000 não era algo digno de comemoração, especialmente para personagens mulheres com mais de 50 anos. Six Feet Under inovou com Frances Conroy, cuja interpretação de Ruth Fisher marcou positivamente a história da televisão.
Inicialmente apresentada como uma senhora reprimida e esmagada pelo papel social de mãe e esposa, Ruth é gradualmente revelada como uma mulher complexa, religiosa e sexagenária, que dedicou sua vida à família, esquecendo de si mesma e de seus desejos.
Sua infidelidade com o cabeleireiro é uma surpresa para a família e pode ser vista como um grito por liberdade e reconhecimento como mulher e indivíduo, já que ela se casou precocemente com um homem que não conhecia bem.
A relação de Ruth com sua filha Claire (Lauren Ambrose) é marcada por conflitos geracionais comuns, com Ruth representando a contenção emocional e Claire a rebeldia típica da juventude.
A aproximação entre elas ocorre gradualmente, à medida que Claire amadurece e Ruth começa a se libertar das amarras domésticas e de seus preconceitos. Antes da popularização de conceitos como sororidade e empoderamento, o discurso de libertação feminista já estava implícito na relação entre mãe e filha.
Brenda Chenowith: uma geração intermediária
Brenda (Rachel Griffiths) representa uma geração intermediária entre Ruth e Claire. Ela começa a série como uma mulher forte, mas com tendências autodestrutivas, cuja personalidade analítica colide com o comportamento reprimido da família Fisher. Sua relação com Nate é marcada por altos e baixos, e sua integração com os Fisher é complexa.
A abordagem da série sobre a doença mental do irmão de Brenda, Billy, é bem explorada. Embora possamos não concordar com todas as escolhas de Brenda, sua jornada de amadurecimento é lindamente narrada. Sua evolução como mulher e mãe, assim como sua relação de apoio com Claire, são aspectos importantes de seu arco.
Abordagem de temas tabus
Falando sobre sua relação com Claire, o aborto sem dúvida é um tema tabu. Antes de Six Feet Under, poucas séries estadunidenses se arriscaram a retratar uma situação de aborto em seus enredos. Geralmente, quando o tema aparecia em uma narrativa televisiva, a menina, no final, sempre abraçava a maternidade como um presente divino.
Na terceira temporada, Claire descobre que está grávida de um ex-namorado e, em uma das cenas mais marcantes das duas personagens, Claire pede ajuda a Brenda para acompanhá-la ao hospital para realizar um aborto. A cena começa de forma banal: “Você pode me dar uma carona?”, pede ela a Brenda. “Tenho que fazer um aborto.” Durante todo o caminho até a clínica, as duas conversam sobre comida picante. Chegando na clínica, a espectadora é apresentada passo a passo ao procedimento.
Representação realista das mulheres
As mulheres em Six Feet Under possuem arcos narrativos multifacetados, algo que não era comum na representação feminina nas produções da época; elas agem, pensam e se sentem como mulheres normais que conhecemos na vida real. Todas que aparecem ao longo das cinco temporadas tinham algo a dizer. Até mesmo Lisa Kimmel Fisher (Lili Taylor), com seu comportamento passivo-agressivo, possuía várias camadas de desenvolvimento, pois podemos lembrar que sua relação com Nate foi carregada de machismo e sofrimento.
Além disso, como um contraponto às “mulheres difíceis da trama”, não podemos nos esquecer de Vanessa Diaz (Justina Machado). Ela cresce ao longo da série e passa a refletir sobre seu lugar no mundo e sua autonomia enquanto mulher, após a traição de seu marido Frederico Diaz (Freddy Rodríguez) e a separação do casamento.
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Tempo, finitude e a exploração do medo da morte em Six Feet Under
Quando pensamos nas contribuições de Six Feet Under, podemos destacar seu conceito de tempo e finitude. O medo da morte, para muitos pensadores, é algo que está conectado ao que há de mais profundo nos seres humanos. Seja na filosofia ou na literatura, esse tema está presente em todas as culturas e civilizações.
De forma única, Six Feet Under explorou esse tema universal por meio do trágico-cômico, através da família Fisher e do negócio de serviços funerários. Todas as religiões do mundo possuem suas próprias interpretações do fenômeno da morte, e a série, em nenhum momento, se eximiu de também interpretar esse fenômeno. Ao discutir o que seria sagrado e profano, a produção nunca caiu numa crítica às religiões ou ao credo das pessoas; apenas tentou refletir sobre algo que é inevitável para todos os seres humanos.
Tudo em Six Feet Under é bem pensado, da abertura ao figurino, chegando à paleta de cores. Mas o grande triunfo da série foi seu roteiro e as atuações memoráveis de todos os atores e atrizes, que conseguiram mostrar uma verdade única ao retratar a vida e o dia a dia de seus personagens. Passados 13 anos de seu desfecho final, que na época levou o público às lágrimas, a obra demonstra com o tempo uma atemporalidade e vivacidade raras.