“Família é um vaso que quebra até por excesso de flores.” Essa frase está no belíssimo e melancólico livro “Se deus me chamar eu não vou“, da autora Mariana Salomão Carrara. Toda família é um grande caldeirão que a qualquer momento pode desandar e explodir. Não à toa, “Até o fim“, novo filme da dupla do Recôncavo Baiano Glenda Nicácio e Ary Rosa, começa enquadrando grandes panelas nas quais uma apetitosa refeição está sendo preparada. O desfoque das imagens e a fumaça que envolve o quadro, já prenuncia que nem tudo é o que parece ser. Um passado enevoado está prestes a emergir.
Quatro mulheres vão se reencontrar após quinze anos afastadas. Laços familiares que foram rompidos desde a morte da mãe. Geralda (Wal Diaz), a mais velha, foi a única a ficar no Recôncavo da Bahia. As panelas borbulhantes vistas no começo do filme são do bar que ela é proprietária. As outras três irmãs são convocadas a retornar por conta do prenúncio da morte do patriarca. O tempo narrativo é um só: o da noite que passarão juntas.
Ao longo do filme, vamos conhecendo um pouco mais de cada uma, seus motivos de partida, seus segredos e suas conquistas. Geralda ficou cuidando desse homem que está prestes a parte dessa vida e, com isso, libertar essas mulheres das violências físicas e simbólicas que ele as impingiu. Incrível o poder destrutivo encarnado na figura do patriarcado que jamais aparece em cena, mas que permeia toda a trama.
Na cinematografia brasileira não temos uma grande tradição de filmes que se alicercem numa enorme verborragia, confinado num único espaço, sendo a potência dos diálogos seu eixo central. Em “Até o fim” os diretores retomam o tema da reconfiguração familiar, já explorado em “Café com canela” (2017), com maestria. O roteiro de Ary Rosa é soberbo, na medida em que mescla com precisão relatos de amor, horror, mágoa, dúvida, gratidão e ressentimento num ritmo por vezes frenético, outras vezes cadenciado, com uma confluência que jamais resvala no artificial ou caricato.

As irmãs vão sendo apresentadas uma a uma, por ordem de nascimento, tendo maior tempo de tela a dupla mais velha formada por Geralda e Rose (Arlete Dias, atriz assinatura da dupla de diretores). A câmera na mão, nervosa, trêmula, pulsante, com enfoque nas mãos das personagens, nos rostos, nas pernas, nos bruscos movimentos de corpos, nos olhares das irmãs dá a dimensão da tensão que esse encontro sugere.
A locação é uma só: o bar da primogênita. É nele que a roupa suja vai ser lavada. O elenco formado ainda por Maíra Azevedo, que interpreta Bel — a bem sucedida produtora de cinema que acaba de voltar de Los Angeles com um Oscar na bagagem — e Jenny Muller, que encena a misteriosa Vilmar. Cabe ressaltar a ótima direção de atrizes que conduz um elenco de mulheres que atuam no cinema pela primeira vez (a exceção de Arlete Dias) com a força e o vigor de veteranas.
Dessa forma, “Até o fim” consegue dar conta, através dessas quatro interessantíssimas personagens, de um inventário de mulheres múltiplas e plurais com suas alegrias, agruras e opressões experimentadas ao longo da vida, mesmo sendo completamente diferentes entre si. A plateia lotada do cine-tenda da 23ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes aplaudiu de pé durante longos minutos nos créditos finais do filme. A emoção das personagens transbordou a tela e a comoção tomou conta dos espectadores.
O cinema brasileiro contemporâneo do alto do seu vigor estético e narrativo segue brilhando dentro e fora do país. Em um momento de desvalorização da sétima arte por parte das instituições governamentais, filmes como esse servem de norte para uma nova onda cinematográfica brasileira em curso.