Irmãs da Revolução: uma antologia de sci-fi poderosa (e feminista) para chamar de nossa!

Irmãs da Revolução: uma antologia de sci-fi poderosa (e feminista) para chamar de nossa!

A ficção especulativa é importantíssima para conhecermos mundos diversos, encantados, apavorantes e futurísticos, ao passo que pensamos sobre as nuances do mundo real e do nosso cotidiano. E quando falamos sobre uma ficção especulativa feminista, o papel social da literatura ganha uma camada ainda mais poderosa: as discussões sobre questões de gênero e o tratamento recebido por mulheres de diversas etnias, orientações sexuais e classes sociais.

Irmãs da Revolução – antologia de ficção especulativa feminista é um dos mais novos lançamentos da Editora Aleph, organizada pelo power couple literário Ann e Jeff Vandermeer (este último, autor da trilogia Comando Sul), e serve como uma maravilhosa porta de entrada para o gênero.

Irmãs da Revolução: uma antologia sci-fi poderosa (e feminista) para chamar de nossa!

A obra conta com trinta contos de diversas autoras de vários países, incluindo Octavia Butler, Ursula K. Le Guin, Nnedi Okorafor, Joanna Russ e, com exclusividade à edição brasileira, uma história inédita de Aline Valek. Aqui, as leitoras encontrarão narrativas que atravessam o horror, a fantasia, a ficção científica e as releituras de contos clássicos que contam os percalços de existências femininas plurais.

O processo de curadoria de Irmãs da Revolução

Na introdução de Irmãs da Revolução, Ann e Jeff comentam sobre o desafio que foi compilar apenas trinta contos de ficção especulativa nesta antologia, uma vez que há por aí uma infinidade de histórias desconhecidas com potenciais transformadores que precisam ser ouvidas e lidas.

A obra é composta por contos lançados no final da década de 1960 até meados dos anos 2000, e é visível como temas como o silenciamento feminino, as durezas da maternidade, relacionamentos abusivos e o apocalipse diário que é existir como mulher em um cenário opressor já fazem parte de narrativas do gênero há décadas.

a ficção especulativa feminista, além de falar para o mundo, também constitui uma conversa interna com as integrantes de seu próprio grupo — onde o material que veio antes é sempre reavaliado, tanto por suas qualidades quanto por seus defeitos. (pág. 12)

Levando em conta que o cenário da ficção especulativa ainda é denominado por obras de homens brancos, cisgênero e héteros, Irmãs da Revolução vai na contramão do que há anos é proposto pelo meio editorial, com raras exceções, e vem em uma excelente hora, em que cada vez mais as vivências das mulheres, suas lutas e conquistas, vêm sendo discutidas, celebradas e pensadas na sociedade.

Leia também » Aline Valek: “a realidade já é bem absurda, se olharmos com atenção”

Os temas da antologia se complementam e, mesmo alguns deles se repetindo ao longo das narrativas, cada abordagem é única, pois traz consigo a voz de autoras muito diferentes entre si, algumas delas pouco conhecidas e de várias localidades do mundo, que abordam problemáticas também distintas, o que permite a nós, leitoras, nos relacionarmos com as vozes ecoadas pelas páginas.

Abaixo, trazemos alguns dos nossos contos favoritos separados em grupos temáticos presentes em Irmãs da Revolução.

Os percalços da maternidade na antologia sci-fi

A maternidade, em suas mais diversas formas, é um dos temas presentes e mais bem trabalhados em Irmãs da Revolução; ultrapassando a ideia de que ser mãe é algo sempre fácil, prazeroso e impecável, algumas autoras abordam também as intempéries da relação mães e filhos.

No conto “As mães da ilha Tubarão”, de Kit Reed, acompanhamos um mundo em que os filhos podem se livrar das mães quando elas atingem determinada idade ou quando simplesmente se cansam delas. As mulheres são enviadas, então, para a ilha Tubarão, onde passam o resto de seus dias como prisioneiras, relembrando os momentos em que foram felizes em liberdade.

Eles tentaram me apagar, mas eu deixei rastros. Sinais para que o mundo saiba o que aconteceu aqui. Um grampo de cabelo na gaveta de meias dela. Uma pintura de presente que ela terá medo de tirar da parede.

Quando me levaram, eu deixei longas marcas de garras em uma das portas de nogueira deles. Na Ilha Tubarão, não há redução de pena por bom comportamento, Aqui, existe apenas a prisão perpétua. 

(“As mães da ilha Tubarão”, pág. 55)

Esta narrativa é muito comovente, sobretudo quando refletimos que o descaso e a ingratidão, em certas relações familiares, muitas vezes é o motivo do abandono de idosos quando mais necessitam de ajuda, o que torna a história muito real e tocante.

Já em “Contos do peito”, Hiromi Goto utiliza o puerpério de uma mulher para mostrar as minuciosas dores diárias que ela sofre ao tentar sobreviver aos primeiros dias com a novidade de ter uma criança em casa e de ter o corpo completamente mudado, principalmente sem ter o apoio de quem também deveria ajudá-la: o próprio marido.

As perguntas que nunca foram feitas podem ser as mais importantes. Você não pensa nisso. Nunca pensa. Quando era pequena, sua mãe lhe dizia que fazer perguntas demais podia metê-la em encrencas.

Você se dá conta agora de que não perguntar o bastante te colocou no mesmo barco, no mesmo rio de m**** sem o mesmo remo. 

(“Contos do peito”, pág. 241)

Porém, o contrário também é narrado em “As cinco filhas da gramaticista”, de Eleanor Arnason, em que vemos uma relação feliz entre uma mãe e suas cinco filhas prestes a encararem o mundo pela primeira vez.

A mulher oferece a elas classes de palavras como verbos, substantivos e adjetivos para que suas meninas consigam vencer as batalhas do mundo (este conto é uma verdadeira ode às palavras criadas por mulheres e como a escrita e a fala têm um poder transformador).

Mulheres metamorfoseadas em elementos da natureza

Outra temática interessante presente na antologia Irmãs da Revolução é a da mulher que transcende a própria existência e se transforma em elementos da natureza, por não caber mais em si, por querer — e saber — ser maior do que querem que ela seja.

Neste segmento, os contos são extremamente poéticos e refletem sobre o que se espera das mulheres na sociedade, quando, na verdade, ninguém as ouve e compreende que querem ser muito mais do que lhes é imposto.

Em “O sono das plantas”, Anne Richter cria uma protagonista que, para fugir da monotonia e alcançar a tão sonhada solidão que a rotina não permitia que tivesse, começa a se transformar em planta e saborear os processos vagarosos de sua nova vida.

Ela vivia como uma planta. Os ritmos de sua vida eram mais vegetais do que humanos. Ela tendia a, periodicamente, pegar no sono devagar.

Permanecida inativa, imóvel, com as mãos cruzadas sobre os joelhos, a cabeça inclinada de leve na direção de um ombro, olhando para a frente.

Às vezes era algo minúsculo. Uma abelha extenuada perdida numa dobra de cortina, fazendo a escalada com paciência e hesitação, parando para reunir suas forças. 

(“O sono das plantas”, pág. 201)

“A mulher que pensou que era um planeta”, de Vendana Singh, conta a história de uma mulher que repentinamente decide que é um planeta e tenta convencer o marido sobre isto; na relação dos dois, fica bem clara a preocupação do homem com as convenções sociais e com as aparências do matrimônio.

Eu sou um planeta. Eu era uma humana, uma mulher, uma esposa e mãe. O tempo todo eu me perguntava se havia mais em mim do que isso. Agora eu sei. Ser um planeta é bom para mim.pág. 308

Por fim, em “A mulher que vestiu a montanha”, Aline Valek cria um paralelo entre um mundo extremamente tecnológico e a necessidade de se fincar raízes no que é natural e verdadeiro.

Leia também » Língua Nativa: nomeando as inomináveis trajetórias femininas

Desconectada, a memória da serpente permaneceu na mente de Devra. Cada esquerda e direita que precisava virar. Cada passagem que precisava atravessar.

Cada botão que precisava acionar. Cada elevador que precisava pegar. De fora, parecia apenas mais uma pessoa movendo seu corpo nas insossas horas desconectadas do dia. 

(“A mulher que vestiu a montanha”, pág. 522)

Irmãs da Revolução e a resistência queer

Personagens queer também são contempladas e bem retratadas na antologia sci-fi: em “E Salomé dançou”, de Kelley Eskridge, uma companhia de teatro busca pela personagem Salomé perfeita para atuar na peça intitulada Salomé: Identidade e desejo — até que uma pessoa em especial surge para desconcertar a todos com sua dança hipnótica e desafiar as convenções de gênero.

Não tenho palavras certas para conversar com o surreal, exceto quando está dentro da minha cabeça. Não sei o que fazer quando o surreal desce pelo corredor e me mostra os dentes. 

(“E Salomé dançou”, pág. 87)

Em “Quando mudou”, Joanna Russ cria um casal de protagonistas lésbicas e suas filhas para que as leitoras reflitam sobre como, mesmo em um cenário futurístico hostil e desolador, o que mais será mais perigoso é a homofobia e o tratamento dos homens dispensado às mulheres.

Mas os homens estão vindo para Faztempo. Ultimamente, fico acordada à noite e me preocupo com os homens que virão a este planeta, com minhas duas filhas e Betta Katharinason, com o que vai acontecer com Katy, comigo, com a minha vida.

Os diários de nossas ancestrais são um longo grito de dor, e suponho que eu deveria estar feliz agora, mas não se podem jogar fora seis séculos, ou mesmo (como descobri recentemente) trinta e quatro anos.

(“Quando mudou”, pág. 305)

Mulheres, mitos e monstros

Além das típicas narrativas envolvendo ficção científica e realismo mágico, Irmãs da Revolução também abre espaço para histórias clássicas de terror: em “O truque da garrafa de vidro”, Nalo Hopkinson recreia a lenda do Barba Azul, em um conto cheio de mistério, fantasmas e discussões acerca de racismo.

“Gestella”, de Susan Palwick, retoma as histórias clássicas de lobisomem para apresentar Gestella, uma lobismoça retirada do seu país de origem e transformada em namorada e animal de estimação de um homem extremamente machista. O conto aborda, além de relacionamentos abusivos, o etarismo sofrido por mulheres.

Leia também » Octavia Butler: o que seria da ficção científica sem o seu legado?

O problema é o tempo. Tempo e aritmética. Você sabia desde o começo que os números dariam problema, mas era muita mais nova — muito, muito mais nova — e muito menos sábia.

E também tem o choque cultural. De onde você vem, é normal as mulheres terem rugas. De onde você vem, a juventude não é a única mercadoria. 

(“Gestella”, pág. 352)

Já “Tias”, de Karin Tidbeck, é uma história surrealista com um quê de contos de fadas que fala, entre outras coisas, sobre os pesos familiares carregados por meninas e mulheres ao longo da vida.

Autoras clássicas e histórias marcantes

Há ainda, na obra, uma miscelânea de contos de autoras consagradas e histórias marcantes, como em “Os assassinatos a machado em Fall River”, de Angela Carter (uma história de true crime perfeita para os fãs do gênero), “A tarde e a manhã e a noite”, de Octavia Butler (um conto pesadíssimo sobre os estigmas que a sociedade impõe às pessoas com transtornos mentais) e “Sur”, de Ursula K. Le Guin (uma linda história sobre um grupo de exploradoras na jornada mais perigosa e marcante de suas vidas).

A edição brasileira de Irmãs da Revolução

Os novos lançamentos da Aleph acompanham a nova identidade visual que a editora adotou no ano de 2023; a edição brasileira de Irmãs da Revolução tem o projeto editorial assinado por Giovanna Cianelli, incluindo a belíssima capa em toda a sua diversidade de mulheres e cores.

A obra conta, ainda, com a Órbita, uma incrível novidade que também acompanha os lançamentos: por meio de uma plataforma expandida, acessada por um QR code na quarta capa do livro, podemos continuar a leitura e ter acesso a entrevistas, playlists, biografias e um mundo de materiais interessantíssimos e complementares.

Cada conto da antologia é antecedido por uma pequena biografia de cada escritora, o que nos faz interessar ainda mais pelos nomes pouco conhecidos ali presentes, além de uma pequena sinopse de cada conto, que ajuda a aguçar a curiosidade pelo que está por vir.

Irmãs da Revolução conta também com um marcador de páginas temático e um card colecionável com algumas características da obra. Confira a seguir alguns detalhes da edição da Aleph:

A edição brasileira de Irmãs da Revolução, publicada pela editora Aleph

Autoras clássicas e histórias marcantes de sci-fi

A Mulher que Vestiu a Montanha - Aline Valek

Edição de Irmãs da Revolução

Antologia de ficção especulativa feminista, publicada pela Aleph

Página da edição de Irmãs da Revolução

Trecho da edição da antologia sci-fi feminista, publicada pela Aleph

Trecho da edição da antologia sci-fi feminista, publicada pela Aleph

Detalhes da antologia de ficção especulativa feminista

Indicações de obras audiovisuais para quem curtiu Irmãs da Revolução

Terminou a leitura e quer se aventurar pelo universo audiovisual de ficção especulativa sobre as mais diversas vivências femininas? Temos algumas dicas imperdíveis para você!

Holy Spider (2022) - Indicação de obra audiovisual para quem curtiu Irmãs da Revolução

Eu não sou uma bruxa (2019)

Lovecraft Country - indicação de obra audiovisual para quem curtiu Irmãs da Revolução

Tudo em todo lugar ao mesmo Tempo (2022) - filme para quem curtiu Irmãs da Revolução

O conto da Princesa Kaguya (2013)

A Outra Terra (2011)

I am Mother - indicação de obra para quem curtiu Irmãs da Revolução

Lamb (2021)

Os Cinco Diabos (2023)

Swallow (2019)

Crédito: Fotos/colagem por Laís Fernandes


Irmãs da RevoluçãoIrmãs da Revolução

Várias autoras | Organizado por Ann e Jeff Vandermeer

Tradutora: Marcia Men

536 páginas

Se interessou pelo livro? Compre aqui!

Escrito por:

117 Textos

Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
Veja todos os textos
Follow Me :