De Volta aos 15 e Heartstopper: possíveis adolescências queer

De Volta aos 15 e Heartstopper: possíveis adolescências queer

Em 2023, a Netflix disponibilizou as segundas temporadas da série brasileira De Volta aos 15 e da britânica Heartstopper. Ambas as séries apresentam personagens e arcos narrativos que envolvem temas LGBTQIAPN+, embora em níveis de atenção diferentes.

Enquanto em Heartstopper, esse é o foco da série, em De volta aos 15, as tramas queer são secundárias ao enredo principal. No entanto, ainda assim, essas tramas recebem certo destaque durante as duas temporadas da série, especialmente através da personagem Camila, interpretada pela atriz trans não-binárie Nila, e pela atriz e roteirista Alice Marcone.

coming of age queer na cultura pop

A cultura pop está cada vez mais consolidando a representação de jovens LGBTQIAPN+ no conteúdo mainstream. Esse movimento é especialmente visível na TV, com séries de canais e serviços de streaming populares. Além das séries que serão abordadas aqui, alguns exemplos incluem a minissérie da HBO, We are who we are (2020) e o filme brasileiro Alice Júnior (2019), disponível na Netflix.

Esse movimento, que apresenta um volume mais considerável de produções LGBTQIAPN+ recentemente, está em grande parte ligado à prática de adaptar obras literárias. Essas obras têm sido, por um longo tempo, o principal meio para que histórias sobre e para jovens adultos LGBTQIA+ encontrem seu público.

É possível destacar as adaptações de Com amor, Simon (2018), tanto para o cinema, como para a TV. Além disso, obras como Vermelho, branco e sangue azul (2023) e Aristóteles e Dante descobrem o segredo do universo, confirmado para o segundo semestre de 2023, seguem essa tendência.

Essa abordagem também se aplica às produções discutidas neste texto. Assim como Heartstopper, que adapta a bem-sucedida HQ de Alice Oseman para uma série de ainda maior sucesso, De volta aos 15 também fez a transição das páginas para as telas. Lançado em 2013, o livro é de autoria de Bruna Vieira.

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Cena da série "De Volta aos 15"
De Volta aos 15 | Imagem: Netflix

Representação LGBTQIAPN+: Heartstopper e De Volta aos 15

Portanto, o modus operandi das produtoras para atingir um público massivo muitas vezes envolve a adaptação de obras já consolidadas, aproveitando-se da base de fãs preexistente, em vez de arriscar em buscar novas histórias e formas de representações mais diversificadas. Por enquanto, este texto se concentrará no conteúdo das séries em questão. 

Ao abordar personagens LGBTQIAPN+, tanto Heartstopper quanto De Volta aos 15 seguem a estrutura dos romances de amadurecimento, ou coming of age, dando destaque principalmente às experiências formativas desses adolescentes. Suas identidades queer desempenham um papel importante na jornada de descoberta e consolidação do sujeito que eles se tornarão.

A sororidade em De Volta aos 15

Como já mencionado, De volta aos 15 é baseada no livro homônimo de Bruna Vieira, que conquistou muitos fãs durante a década de 2010. A trama apresenta elementos de realismo fantástico e narra a história de Anita (interpretada por Maisa Silva e Camila Queiroz), uma mulher de 30 anos que volta no tempo para se encontrar com seu eu de 15 anos.

Nesse enredo, Anita precisa enfrentar novamente os traumas e desafios da adolescência a fim de retornar ao presente sem prejudicar o futuro. Durante esse movimento entre passado e presente, a série introduz o personagem de César/Camila, a melhor amiga de Anita.

É importante destacar que essa personagem não existe no livro e foi criada especificamente para a série por Alice Marcone, que além de atuar como a fase adulta de Camila, também é roteirista na produção.

A inclusão de uma personagem queer na trama, desenvolvida por uma roteirista trans, demonstra a intenção não apenas de criar um conteúdo mais diversificado, mas também de reconhecer a importância de profissionais queer ocupando posições-chave na criação dessas representações de vivências.

Nila e Alice Marcone em "De volta aos 15"
Nila e Alice Marcone | Imagem: Buzzfeed

Ao longo da primeira temporada, enquanto César, Camila se identifica como um jovem gay. No entanto, já deixa evidente as dificuldades que enfrenta ao tentar se adequar à cisnormatividade compulsória predominante em nossa sociedade. Sendo abertamente gay e expressando traços afeminades, Camila enfrenta situações de bullying na escola e desafios em seus relacionamentos.

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Explorando a identidade de gênero na segunda temporada de “De Volta aos 15”

Na segunda temporada, o arco da personagem é mais explorado, focando no desenvolvimento dos questionamentos de Camila sobre sua identidade de gênero. Nesse ponto, ela começa a expressar os desejos que sempre soube existirem em relação à sua apresentação para o mundo.

Nila em "De volta aos 15"
De volta aos 15 | Imagem: Netflix

A série trata todo esse enredo de maneira sensível, considerando a noção de comunidade não apenas na experiência queer adolescente, mas também na vivência feminina durante a adolescência. Mesmo assim, a série não evita abordar os desafios enfrentados ao desviar da norma heteronormativa, ainda que de maneira utópica.

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A escolha da série é focar na relação de sororidade entre as personagens jovens, construída de forma genuína. De volta aos 15 apresenta uma visão de experiência de juventude queer e transfeminine, que se apoia na aceitação apesar da pressão da cisnormatividade.

Essa direção da trama decorre da falta de diversidade no elenco e nos personagens. Embora a série apresente mais personagens abertamente LGBTQIAPN+ nesta temporada, eles não interagem de forma tão coesa e significativa entre si.

Elenco de "De Volta aos 15"
De Volta aos 15 | Imagem: Netflix

Contudo, a produção não deixa a desejar como uma representação de alegria juvenil, algo que também precisa estar associado à infância queer. Já que essas vivências vão muito além dos temas de opressão e não devem ficar limitadas aos traumas e dificuldades.

O pacto das minorias em Heartstopper

A amada história de Nick (Kit Connor) e Charlie (Joe Locke) retornou para sua tão aguardada segunda temporada em 2023. Baseada nos quadrinhos de Alice Oseman, a trama de Heartstopper foca no relacionamento entre Charlie, um jovem gay de 15 anos, e Nick, cujo processo de autodescoberta sobre sua bissexualidade foi explorado na primeira temporada.

Uma distinção notável entre Heartstopper e a série brasileira De Volta aos 15 é que a primeira foi concebida desde o início por sua autora. Oseman visava criar uma obra que representasse a inclusão de narrativas LGBTQIAPN+ no âmbito jovem adulto e infantojuvenil.

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Joe Locke e Kit Connor em "Heartstopper"
Charlie e Nick | Imagem: Netflix

Enquanto De volta aos 15 tem seus pontos a melhorar, Heartstopper se destaca ao fazer um esforço perceptível para incluir uma gama mais ampla de representações de identidades queer, orientações sexuais e românticas.

Heartstopper ainda vai além dos protagonistas, construindo um grupo diversificado de amigos na temporada atual. A inclusão de jovens pansexuais, lésbicas, trans e assexuais ilustra a série explorando as diversas possibilidades que transformam gênero e sexualidade em um espectro, afastando-se das concepções binárias.

Comunidade queer como suporte: fortalecendo vínculos

Um dos aspectos interessantes é a representação do vínculo entre esses jovens queer como uma forma de comunidade e apoio mútuo. Esta comunidade funciona como uma segunda família, oferecendo suporte emocional e afetivo a indivíduos que compartilham vivências semelhantes.

Cena de "Heartstopper"
Heartstopper | Imagem: Netflix

Por meio da interação com esses personagens, Nick consegue uma compreensão mais profunda de seus sentimentos por Charlie e do significado que esses sentimentos têm para ele. Em contraste, em De Volta aos 15, essa exploração se deu através da jornada de Camila após sua saída do ambiente em que vivia e seu contato com adultos.

Dessa forma, é nesse ambiente coletivo, porém seguro, que as personagens têm a liberdade de explorar suas identidades e sentimentos sem o julgamento e o medo impostos pelo mundo exterior.

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Na segunda temporada, a série começa a se afastar do foco exclusivo na descoberta. Apesar de ainda abordar alguns arcos nesse tema, como os de Isaac (Tobie Donovan) e Imogen (Rhea Norwood), ela se direciona para um novo rumo, o qual promete ser mais explorado na próxima temporada já confirmada. Essa nova direção enfrentará os desafios que surgem ao crescer como pessoa queer em uma sociedade cisheteronormativa.

Bradley Riches e Tobie Donovan em "Heartstopper"
Bradley Riches e Tobie Donovan em Heartstopper | Imagem: Netflix

Nesse ponto, a ideia de uma comunidade, mesmo que modesta como a apresentada em Heartstopper, ganha uma significância simbólica considerável. Isso se deve à sua representação como um dos símbolos mais marcantes da cultura queer no mundo ocidental: a noção de que a união fortalece.

Utopias necessárias de uma adolescência queer

Refletindo sobre a concepção de utopias queer, o pesquisador José Esteban Muñoz nos oferece uma visão perspicaz:

Utopias concretas podem também ser como sonhar acordado, mas elas são as esperanças de uma coletividade, um grupo emergente, ou até mesmo do excêntrico solitário que sonha por muitos.

MUÑOZ, José Esteban. Cruising Utopia: The Then and There of Queer
Futurity. Nova York: New York University Press, p. 03, 2009.

Produções como as que estamos discutindo funcionam como impulso para essas utopias possíveis. A representação de personagens trans em De volta aos 15, como Camila, e em Heartstopper, como Elle (Yasmin Finney), são exemplos de representações positivas de indivíduos pertencentes a grupos marginalizados. Embora as representações utópicas possam não ser a norma, elas permitem que os espectadores acessem potências de vida necessárias para o próprio crescimento e desenvolvimento.

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Segunda temporada de "Heartstopper"
William Gao e Yasmin Finney em Heartstopper | Imagem: Netflix

Ainda há um longo caminho a percorrer, no que diz respeito à representações mais diversificadas. É notável a ausência de protagonistas lésbicas, trans e não-bináries em produções audiovisuais.

Além disso, é inegável a predominância dessas produções em língua inglesa, que muitas vezes abordam experiências majoritariamente brancas e de classe média. No entanto, é essencial reconhecer a importância de aproveitar as oportunidades trazidas por séries e filmes que estão encontrando seu caminho até o público em geral.

Rumo a uma utopia queer

Em conclusão, alinhando-se com as observações de Muñoz (2009, p.20), conceber uma utopia queer significa recorrer a uma concepção de sociedade e vivências que ainda não existem. Isso implica em ir além das fronteiras atuais e buscar uma realidade que desafia integralmente os padrões da heteronormatividade.

Mais do que uma busca individual; é uma busca por um pertencimento coletivo de indivíduos que rejeitam as normas estabelecidas e, assim, criam um mundo próprio onde podem conquistar aquilo que antes lhes foi negado ou sequer imaginado.

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Historiadora e mestranda em Cinema e Audiovisual, com pesquisas voltadas para as relações entre os lugares ocupados por mulheres no cinema brasileiro. Apaixonada por arte, cinema e educação.
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