“O Porco Espinho” e a busca por conexão em meio à solidão

“O Porco Espinho” e a busca por conexão em meio à solidão

O dilema do porco-espinho, proposto pelo filósofo Schopenhauer, descreve a situação em que um grupo de porcos-espinhos tenta sobreviver ao inverno, buscando calor uns nos outros, mas acabam se ferindo com seus espinhos. Este dilema reflete concessões, distância e solidão nas relações humanas. O filme O Porco Espinho, dirigido pela franco-marroquina Mona Achache, também aborda esse tema.

O filme, na verdade, é uma adaptação da obra literária A Elegância do Ouriço, escrita por Muriel Barbery, que também explora a premissa do dilema de Schopenhauer. No entanto, em vez de apenas apresentar a questão, tanto o livro quanto o filme exploram exemplos desse dilema e oferecem algumas resoluções.

A solitária jornada de Paloma no filme O Porco Espinho

A história começa com Paloma (Garance Le Guillermic), uma menina de 11 anos pertencente a uma família rica na França. Paloma está profundamente entediada com a vida, que ela percebe como limitante. Convencida de que a vida não vale a pena, planeja seu suicídio quando completar 12 anos. Mas, movida por uma natureza teimosa, ela deseja provar seu ponto, inclusive registrando-o em imagens.

“Para Taniguchi, os heróis morrem escalando o Everest. E o meu Everest é fazer um filme. Um filme que mostre porque a vida é absurda. A vida dos outros e a minha também. “

Paloma (Garance Le Guillermic) no filme O Porco Espinho (2009), dirigido por Mona Achache, adaptado do livro de Muriel Barbery.
Paloma (Garance Le Guillermic) no filme O Porco Espinho (2009)

Por estar tão isolada dentro da própria cabeça e tão convicta da estranheza infeliz da vida, Paloma não tem conexão alguma com outras pessoas ou animais. Ela tem dois gatos e um peixe na casa onde mora com três familiares, mas não se conecta com nenhum deles.

Nunca temos cenas de Paloma na escola, interagindo com outras crianças, e a única menina com a qual ela teve contato no filme foi alvo das suas previsões pessimistas para o futuro da humanidade.

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Schopenhauer e a escolha da solidão

Para Schopenhauer, o distanciamento das pessoas era a única possível segurança contra os espinhos da convivência, da contaminação ou da total submissão às vontades alheias. Dessa forma, para viver em liberdade, era necessário escolher a solidão. Esse foi aparentemente o caminho que Paloma instintivamente trilhou.

Com uma câmera própria, ela grava os eventos e as pessoas que acredita serem a prova da sua teoria sobre a vida e seus absurdos. Em cena estão seus pais, sua irmã, inquilinos do prédio e Renée (Josiane Balasko), a figura quase invisível de zeladora do prédio, uma criatura que Paloma não conseguia decifrar e que despertou seu interesse.

A figura da zeladora pode ter sido imediatamente intrigante para Paloma, porque ela era a única pessoa sobre a qual ela não poderia fazer suas análises e julgamentos. Renée vivia sozinha e não se esforçava para agradar os vizinhos. Ela parecia um exemplo perfeito de uma pessoa verdadeiramente livre. Mas é só com a chegada de um novo inquilino que o propósito de Paloma segue um rumo diferente.

Renée (Josiane Balasko) no filme O Porco Espinho (2009), dirigido por Mona Achache, adaptado do livro de Muriel Barbery.
Renée (Josiane Balasko) no filme O Porco Espinho (2009)

A chegada do Sr. Kakuro Ozu (Togo Igawa) ao prédio desperta imediatamente a simpatia da menina, porque alguém finalmente se interessou pelo que ela tinha a dizer. Não é por acaso que ele não está na mira da câmera; em vez disso, eles jogam e conversam de verdade.

O novo amigo de Paloma é, na verdade, um exemplo de que a vida não precisa ser absurda e sem sentido. E, melhor ainda, a presença do Sr. Ozu prova que a vida nem mesmo necessita de um enorme propósito. Juntos, eles jogam e discutem interesses em comum, como a curiosidade que ambos têm pela estranha zeladora do prédio.

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A elegância do ouriço

O porco-espinho é, em si, uma criatura muito interessante. Por fora, uma barreira de grossos espinhos o protege, mas por dentro se encontra uma criatura frágil e facilmente amada. Todavia, fazendo jus ao dilema, o animalzinho também é extremamente solitário e terrivelmente elegante. Da mesma forma, Paloma descreve Renée quando fala sobre ela ao Sr. Ozu.

Paloma e Sr. Ozu se aproximam desse autêntico ouriço – isto é, nas entrelinhas do dilema – que encontram ali mesmo pelos cantos do prédio. Renée é uma mulher que já desistiu de interações sociais. Coleciona e devora muitos livros, tem um gato como companheiro e apenas uma amiga. Ela se dedica ao trabalho mecanicamente e não parece nada disposta a mudanças. Até que duas pessoas interrompem sua solidão.

Sr.Ozu (Togo Igawa) no filme O Porco Espinho (2009)
Sr.Ozu (Togo Igawa) no filme O Porco Espinho (2009)

A solidão sempre foi um tema recorrente nas reflexões humanas. Mesmo que a formação de sociedades fosse inevitável para a perpetuação da raça, também é inegável que, não importa o quanto tentemos escapar, estar sozinho é inerente à condição humana, dentro e fora da sociedade, pois nascemos e morremos sozinhos. As diferenças estão nas influências sofridas e nas concessões feitas em favor de integrar um grupo.

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As raízes da solidão na literatura, filosofia e audiovisual

Para a tradição judaico-cristã, a solidão está associada ao crescimento pessoal e espiritual. Você cresce quando se isola no deserto e encara de frente seu interior, distante de influências. Seguindo o eremita Santo Antão do Deserto, “Quem adota a solidão e nela permanece é libertado de três inimigos: a audição, a fala e a visão, e então só lhe resta lutar contra um, seu coração“. Ao se isolar do mundo, essas distrações são eliminadas, permitindo que o solitário se concentre em si mesmo.

Lord Byron escreveu que “é na solidão que estamos menos sós“, porque, assim como Heidegger e Schopenhauer, acreditava que a solidão era o preço da liberdade e do autoconhecimento. No entanto, o relacionamento entre Sr. Ozu, Paloma e Renée reflete encontros que modificam os destinos dos personagens, sem necessariamente interferir em suas liberdades; ao contrário, a experiência dessa amizade dá às personagens novas perspectivas em torno do tema solidão.

Cena do filme "Medianeras" (2011)
Cena do filme Medianeras (2011) – Reprodução

No cinema, é comum encontrar personagens presos na perversa solidão da sociedade moderna, onde tanto a desigualdade social quanto a diferença de idade ou gênero as isolam do restante do mundo. É comum que, mesmo em uma cidade cheia, algum personagem sucumba à solidão elevada ao sentido negativo, mas não é exatamente o que vemos em O Porco Espinho.

Em Medianeras, do diretor argentino Gustavo Taretto, Martin e Mariana vivem em Buenos Aires em pleno século XXI e, mesmo assim, estão sozinhos. Em O Iluminado, de Stanley Kubrick, Jack Torrance enlouquece quando é fisicamente isolado do restante do mundo. O mesmo vale para Jina, personagem do filme Aloners, da diretora sul-coreana Hong Sung-eun, que se vê melancolicamente solitária em um prédio cheio de moradores que ela não conhece.

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Renée e Paloma: da invisibilidade ao encontro

Tanto no dilema de Schopenhauer como no filme O Porco Espinho, há, ao mesmo tempo, a vitória pela solidão e autoconhecimento conquistados e algo que empurra as personagens em direções inéditas. Tanto Paloma quanto Renée sentiam-se sozinhas, mesmo cercadas de pessoas, elas se sentiam invisíveis – e eram de fato.

Consideradas menos relevantes do que adultos em altas posições sociais, as duas criaturas se aqueceram em seus próprios mundos. Renée escolheu uma biblioteca repleta de histórias, enquanto Paloma, propensa ao drama, escolheu a morte.

Paloma (Garance Le Guillermic) e Renée (Josiane Balasko) em cena do filme
Paloma e Renée em cena do filme de Mona Achache

“A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais” 

Ainda sobre o que diz Schopenhauer, o filósofo enfatiza que, sozinhos, prosperam as pessoas de espírito singular, porque somente acompanhado de nós mesmos podemos sinceramente saber quem somos ou quem podemos ser. Ou seja, livre de interferências externas dos espinhos alheios, somos a nossa versão mais pura. No entanto, o preço dessa liberdade é o isolamento.

Abordando o dilema filosófico com uma perspectiva menos pessimista, livro e filme apresentam personagens em distintas fases e contextos sociais que mitigam suas solidões ao se conectarem com semelhantes através da arte e da filosofia. Por meio da exploração e documentação da vida, Paloma descobre uma resposta para sua própria solidão, enquanto Renée, ao compartilhar seu amor por filmes e livros com outros, reconecta-se ao mundo ao seu redor.

Em seu livro O dilema do porco-espinho: como encarar a solidão, o professor e historiador Leandro Karnal conclui seu capítulo reflexivo sobre a imagem do solitário na arte e no cinema com uma frase do escritor Alain de Botton: “Pessoas que vivessem o tempo todo felizes jamais iriam a uma livraria ou ouviriam música”.

Paloma (Garance Le Guillermic) e Renée (Josiane Balasko)
Cena do filme O Porco Espinho 

O professor aponta que as tristezas da vida poderiam ser diminuídas pela arte, à medida que ela nos faz pensar e nos aproxima de sentir, afastando-nos da solidão em seu sentido negativo.

A falta de vontade de viver de Paloma e Renée – cada qual entregue à própria intensidade – e a chegada de novos ares ao prédio impulsionam as personagens em direção ao fazer e pensar artístico que as devolve à conexão interpessoal.

O valor da arte para as conexões humanas

Por fim, o filme nos leva a refletir sobre a profunda complexidade entre o ser humano e a solidão que muitas vezes o acompanha. Ao conectar o dilema filosófico do porco-espinho com a jornada das personagens, tanto o livro de Muriel Barbery quanto o filme de Mona Achache apresentam uma visão única da busca por significado e conexão em um mundo que frequentemente nos isola.

O filme mostra como a arte pode ser uma ponte para compreender a solidão, conectar-se consigo e com os outros. Através da expressão artística, as personagens encontram uma maneira de transcender a alienação e se reencontrar.

Assim, O Porco Espinho nos lembra da capacidade humana de lidar com a solidão através da criatividade e da busca por significado, oferecendo-nos uma visão diferente das complexas teias de conexão que podemos tecer em nossas vidas.

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Roteirista e Copywriter formada em Produção Audiovisual. Amante de livros, filmes e podcasts.
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