[CINEMA] Deserto: A crueldade de uma nação (Crítica)

[CINEMA] Deserto: A crueldade de uma nação (Crítica)

Em Deserto, filme de estreia na direção de Guilherme Weber (que também é ator e diretor de teatro), um grupo de artistas nômades percorre o sertão brasileiro se apresentando nas cidades. Um dia, chegam a um vilarejo vazio e fantasmagórico. Cansados da lida pelas estradas, eles decidem ficar ali e fundar uma comunidade. Para isso, resolvem que cada um irá cumprir um papel e assumir uma função social na formação de uma nação. Um sorteio determinará o personagem de cada um. Os papeis vão escolher os atores dessa vez, porém, a sociedade corrompe. A nova formação burguesa perverte o pensamento livre dos artistas, deteriora o caráter.

Inspirado no romance “Santa Maria do Circo“, do mexicano David Toscana, Deserto é um filme extremamente político, onde o grotesco e o desagradável fazem parte da estética. Oriundo do palco, Weber faz um filme onde a linguagem cinematográfica se une à teoria do Teatro da Crueldade.

Os papeis foram mal distribuídos.

– É duro mas é preciso aceitar.

Antonin Artaud foi um encenador de teatro francês que pretendia tirar o teatro e o público da estagnação psicológica e humana. Para isso, criou na década de 20 o Teatro da Crueldade. Uma manifestação artística visceral que dá ênfase ao espetáculo em detrimento da palavra, que prega a agressão para tirar o público da zona de conforto.

Artaud relaciona o teatro ao sonho, para ele o contato entre o teatro e o sonho deve ser sangrento e desumano”. O onírico remete à loucura e ao pesadelo; é preciso que a arte seja desagradável para provocar uma reação. É preciso desconforto. Um espetáculo precisa romper o sentido usual da linguagem através do que ele chama de violência sensitiva, uma exteriorização da crueldade presente no indivíduo. Nas palavras dele:

“O teatro, assim como a peste, leva o homem a se ver exatamente como ele é, sem máscara, exteriorizando todos os sentimentos por piores que sejam: O teatro, como a peste, é feito à imagem dessa carnificina, dessa essencial separação.” 

Encenador e poeta, Artaud também era ator e está no elenco do filme “A Paixão de Joana D’Arc”, do cineasta Carl Dreyer. Dreyer é uma das inspirações cinematográficas citadas por Guilherme Weber. O longa foi lançado no Rio de Janeiro, em São Paulo e algumas cidades no dia 14 de setembro.

Deserto está impregnado de crueldade. É o filme certo para o Brasil de hoje onde a indignação de um grupo é capaz de tirar uma exposição de cartaz. A arte política foi feita para desagradar. A opção pelo grotesco é uma provocação social. Citando o crítico de arte Luiz Camilo Osório, em entrevista à Revista Cult sobre o cancelamento da Mostra Queer pelo Santander Cultural: “é papel da arte abrir debates sobre formas não canonizadas de comportamento”.

Temas espinhentos precisam que ser debatidos. Vivemos um tempo onde o déficit educacional do povo se manifesta no discurso retrógrado de certos indivíduos, ou seja, o problema é falta de informação e conhecimento sobre a função da arte. Nelson Rodrigues dizia: “O personagem é vil para que não o sejamos“. Para o dramaturgo, expor mazelas sociais no palco era uma forma de evitar que o espectador repetisse aquele comportamento.

O grotesco é uma categoria estética feita para provocar medo, espanto e nojo. A intenção é mostrar as deformidades que existem na realidade. O universo do filme usa a natureza do estranhamento para refletir sobre a função da arte num quadro social. “Nós somos artistas, não somos salteadores”, antecipa o líder do grupo, vivido por Lima Duarte. Quando o artista perde a autonomia e ocupa um cargo pré-determinado, a sociedade vai mal. Com direção de arte de Renata Pinheiro, premiada no Festival de Brasília, e fotografia de Rui Poças, Deserto é uma alegoria grotesca da formação do Brasil, mostrada através de imagens do barroco espanhol.

Deserto

O roteiro de Guilherme Weber e Ana Paula Maia, do elogiado romance “De Gados e Homens”, está o tempo todo alertando para o perigo do desvio da função da arte. O pintor realista francês Gustave Courbet dizia que, “num mundo de coisas, as imagens também são coisas, e o artista é quem as fabrica”.

Para Coubert, o artista é um trabalhador que não pode obedecer à iniciativa e não deve acompanhar o interesse da sociedade. Num quadro social de uma época, a arte não deve se abstrair. Em Deserto, a corrupção começa quando os atores do filme renegam a arte para se enquadrar num sistema.

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Além de Lima Duarte, Deserto conta com intérpretes espetaculares e fora do padrão. Rostos interessantes e desconhecidos do grande público: Everaldo Pontes, Cida Moreira, Fernando Teixeira, Márcio Rosário, Claudio Castro, Magali Biff e Pietra Pan dão vida ao grupo de artistas mambembes.

Simbolista e integrado com o momento político que vivemos. Deserto também critica a igreja, o militarismo e não deixa de lado o empoderamento feminino, que é mostrado como uma forma de esperança e salvação.

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Candida Sastre é roteirista de humor e pesquisadora. Escreve artigo e entende dos paranauê acadêmico. Suas inspirações na crítica são Clement Greenberg (amém), Arthur Danto e a rainha Aracy de Almeida. Carioca, mother of cats, diferentona, tinha um blog chamado Sylvia. Faz parte do Gloria Steinem Futebol Clube. Escreve humor porque tem facilidade, mas queria mesmo ser o Daniel MacIvor.
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