Com uma temática de extrema relevância para o âmbito dos direitos humanos, por meio de uma linguagem semiótica rica, entrelaçando textos e imagens, a novel graphic Desconstruindo Una, publicada em 2016 pela editora Nemo, cumpre a função social de denunciar uma das manifestações mais graves da desigualdade nas relações de gênero: a violência sexual perpetrada por homens em detrimento das mulheres.
A autora inglesa que adota o pseudônimo de Una, simbolizando o sentimento de pertencimento de todas as mulheres a um só grupo, uma só unidade, utilizando-se de uma narrativa gráfica com traços simples e ao mesmo tempo contundentes, dá voz e representatividade às torturantes experiências emocionais e psíquicas por que passam as mulheres em situação de vulnerabilidade, após terem sido vítimas de violência e abuso sexual. “Meu nome é Una. Una quer dizer uma. Uma vida, uma de muitas”.
Desconstruindo Una é uma autobiografia da autora que aos 12 anos de idade, na década de 1970, na cidade inglesa de Yorkshire, vivenciou uma experiência de abuso sexual e teve de conviver com o sentimento de culpa por ter sofrido tal violência até os 25 anos, quando começou a dar esboços de superação do acontecido e a reconstruir a autoestima e sanidade emocional que tinham sido brutalmente arrancadas.
Além de narrar a própria história, a escritora relata o caso de um assassino em série de mulheres que aterrorizou o lugar durante o mesmo período, e apesar de ter deixado um saldo de muitos feminicídios, assassinando mulheres com ataques de martelo, o autor dos crimes só fora preso 32 anos depois, após ter sido interrogado pela polícia nove vezes. As autoridades públicas fizeram vistas grossas para solucionar os crimes, sob o argumento de que o assassino somente matava prostitutas ou mulheres de “reputação duvidosa”, isto é, mulheres que saíssem à noite, que frequentassem bares e que tivessem uma vida sexual ativa. “Até dezembro daquele ano, a polícia de West Yorkshire ainda não tinha feito qualquer progresso com as investigações dos ataques com martelo…”.
Aqui imperam pensamentos cristalizados na cultura do estupro, o de culpabilização da vítima pela violência sexual sofrida e a tentativa de transformar os atos de uma mulher comum em atentatórios à moral e aos bons costumes. No fim das contas, a sociedade acaba por rotular a todas de “vadias”, uma vez que o exercício da liberdade feminina e o livre desenvolvimento das nossas potencialidades representam um incômodo e uma afronta para o modelo de sociedade patriarcal ainda vigente, um modelo de sociedade que não ama as mulheres. “Acredita-se que o assassino tenha um ódio terrível por prostitutas – um ódio que o leva a mutilar e violentar suas vítimas”.
Quando não estamos protegidas nem nas ruas nem em casa
Como vivemos, desde épocas imemoriais, em uma sociedade onde se predomina a cultura de estupro, as vítimas dos atos de violência sexual são condicionadas, na maioria das vezes, a somarem o silêncio à dor de ter sua dignidade humana e autonomia sobre o próprio corpo desrespeitados. Tal qual discorre a autora em uma das páginas da obra, embora as instâncias do Poder Judiciário e do Estado frisem a necessidade de denunciar os crimes sexuais para que os seus agressores não fiquem impunes, é preciso muita coragem e estabilidade emocional para até mesmo discorrer sobre o assunto que tanto causa constrangimento às vítimas como ocasiona certo mal-estar à família e pessoas próximas ao convívio social daquelas. Até porque, na maioria dos casos, o agressor que praticou a violência é parente ou uma pessoa próxima à vítima, que em tese, deveria protegê-la:
“Não é fácil discutir nada disso abertamente… Deixa as outras pessoas desconfortáveis, com vergonha e irritadas. Não é a reação de que você precisa se está angustiada e traumatizada. Mas se você não pode falar sobre isso, como as outras pessoas vão entender suas respostas emocionais?”.
A autora ainda percorre um caminho que descreve o quanto as ações diárias de misoginia sempre nos acompanharam, contudo, nos tempos atuais, elas estão mais visíveis e com o advento da internet, onde as vítimas de violência de gênero podem mais facilmente encontrar outras na mesma situação e conseguir apoio emocional na tentativa de superar o que ela denomina de quatro cavaleiros da violência sexual: humilhação, isolamento, descrença e ridicularização. Mas, ainda assim, a autora frisa que é uma tarefa árdua para garotas exploradas sexualmente romperem o silêncio e juntar forças para denunciar.
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Outra questão importante e exposta no livro é o atendimento por parte da justiça criminal às vítimas que sofrem violência de gênero. Segundo a autora, ainda há muito a se avançar, sobretudo, com relação a desconstruir a ideia nociva de que os crimes sexuais são menores ou que a vítima deu causa ao ato. Desconstruindo Una é, portanto, uma grande obra de arte sequencial que cumpre o papel para que veio: desconstruir preconceitos nocivos à dignidade da pessoa humana.
Desconstruindo Una
208 páginas