Se alguém te pedisse pra dizer o nome das artistas plásticas que você conhece, quantos nomes teria na sua lista? E se fosse uma lista só com homens, ela seria maior? Desde 1985 o coletivo “Guerrilla Girls” discute a participação das mulheres na arte e causando incômodo com a questão: as mulheres precisam estar nuas para entrar nos museus? Essa questão faz referência ao baixo número de obras feitas por mulheres em comparação com o alto número de corpos femininos nus expostos nos museus. É nesse mesmo sentido que Aline Lemos, quadrinista e ilustradora de Belo Horizonte, publicou, no final de 2018, seu primeiro livro “Artistas Brasileiras”, onde conta, em cada página, a história de uma artista brasileira, a maioria delas esquecidas pelos livros de história. A publicação é fruto de um longo trabalho de pesquisa e Aline conversou com a gente pra contar mais sobre esse processo.
Aline tem formação e mestrado em História, e quando perguntamos como a sua formação a ajudou em alguma medida na pesquisa, ela contou que esse foi, inclusive, um dos motivos pelos quais ela escolheu fazer esse projeto, pois a pesquisa sobre a história das mulheres nas artes já era um tema pelo qual ela se interessava e a pesquisa acadêmica em si já fazia parte de sua vida. Ela se propunha a pesquisar, em uma semana, o máximo possível sobre cada artista, mas, mesmo com esse tempo curto, a quantidade de informações era muito grande para o espaço que ela havia destinado para cada história – a ideia sempre foi contar o máximo possível em uma única página.
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Então, foi preciso fazer uma triagem de informações, escolher um ponto de vista e fazer recortes específicos em cada história, geralmente definido por tema ou determinado contexto de vida da artista, da época, ou o diálogo com movimentos daquele período. Esses eram os pontos principais, mas sempre buscando alguma coisa que chamasse atenção sobre a artista. Na seleção, ela não buscou levantar as melhores ou as mais qualificadas, quis apenas apresentar uma maior diversidade – mesmo assim, ela conta que é menor o número de artistas negras, já que é mais difícil encontrar material sobre a sua história. Também não buscou demonstrar quais são as artistas mais reconhecidas ou de maior sucesso, “Até porque, o que isso quer dizer? O que é ser uma artista de sucesso? É ter seu nome reconhecido? Ou vender muito? Porque não criar novos parâmetros e não ir medindo as conquistas e as capacidades pelo sucesso?”
A proposta de ter uma biografia por página, fazia com que boa parte da pesquisa fosse descartada. Aline buscava deixar o máximo de informação na menor quantidade de texto, evitando que a história se tornasse massante, explorando mais a parte visual e as diferentes narrativas possíveis dentro do quadrinho. A cada leitura do roteiro, Aline disse que ia retirando mais e mais material, deixando apenas o que considerava essencial. “Na última leitura ainda achei que podia ter cortado mais”.
Desde o início da produção da série, Aline conta que buscou seguir uma padronização na história, com um mesmo formato de página, três linhas e as histórias teriam quase todas o mesmo tamanho, variando o grid e as cores, apesar de contar com uma paleta de cores definida. Cada artista tinha sua própria combinação de cores, uma forma de dar unicidade e, ao mesmo tempo, de diversidade quanto às biografias abordadas. No livro, é bastante claro que as cores que Aline usa para cada artista se relacionam com as obras das artistas. Na página sobre Georgina de Albuquerque, prevalecem tons claros de rosa e amarelo, comuns na obra da artista. A partir desses parâmetros, ela então se dedicava à pesquisa durante uma semana
“Eu já sabia que não seria uma leitura muito dinâmica, as pessoas iriam ficar na página por muito tempo, então eu queria dar saídas diferentes para a página e o que eu fiz foi trazer coisas que me chamavam a atenção da obra da própria artista para a linguagem do quadrinho. Eu trouxe colagens com as obras das artistas, algumas vezes o próprio formato dos quadros, de forma de que a especificidade da artista fosse algo que saltasse aos olhos, não só as informações lidas.” Tudo isso a levou a trabalhar ainda mais a integração entre texto e desenho, buscando passar o máximo de informações pelos dois meios.
A parte de produção, após a pesquisa, era feita de forma analógica, no nanquim mesmo, apesar de seguir um pouco a lógica de camadas da produção digital – ela criou camadas diferentes com a produção à mão, fazendo o desenho em uma, a parte escrita em outra. A finalização foi feita de forma digital. Segundo Aline, ela até tentou fazer a parte escrita à mão, para deixar a escrita mais próxima do seu traço, dando uma unidade para as histórias, mas como eram muitas, o processo era muito exaustivo e ela decidiu criar uma fonte com a sua própria letra – o que, segundo ela conta, é mais fácil do que parece.
Apesar de o livro ter sido publicado em dezembro de 2018, o projeto sobre a vida de artistas brasileiras é antigo. Aline começou a trabalhar nessas histórias em março de 2016, com o objetivo de realizar um projeto longo, em que ela pudesse estudar a linguagem dos quadrinhos e se dedicar a isso por mais tempo. Sem confiança e tempo para fazer uma narrativa longa, ela optou por fazer a série e aproveitou o mês de março e as discussões do dia da mulher para lançar as primeiras histórias. A discussão sobre a participação das mulheres no mundo artístico também não era um tema novo para a autora, e a reflexão sobre mulheres quadrinistas e como a história delas é constantemente apagada foi um grande incentivador para iniciar o projeto.
“E, esse é um assunto que desde que eu comecei a fazer quadrinho ele já era muito importante pra mim, eu tinha feito mestrado em história, pesquisei sobre a história do feminismo no Brasil, um pouco sobre história da literatura, comecei a fazer quadrinho por causa de autoras novas, e desde essa época já comecei a me envolver com o debate sobre a presença e a visibilidade das mulheres nos quadrinhos e na arte de modo geral, e também na história de modo geral. Eu me juntei ao grupo do Zine XXX, que foi o primeiro grupo que eu participei, que tinha uma pegada, estive no Festival de Angoulême, onde essa questão foi muito debatida, e aqui no Brasil também com o Lady’s Comics, essa sempre foi uma pauta que me interessava, quando decidi exercitar a linguagem do quadrinho em uma abordagem mais longa, eu achava queria algo que fosse relevante para o momento e que eu tinha interesse e já estava mais envolvida.”
O Zine XXX é um projeto que começou em meados de 2012/2013, com o objetivo e apoiar a produção de mulheres quadrinistas. Aline fez mestrado em História dos Quadrinhos na França e, durante o período que esteve lá, participou do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême. As discussões na edição em que participou e a pauta da participação de mulheres na produção estava em alta e muitas quadrinistas levantaram a questão. Entretanto, a maioria dos homens do evento disseram que não era preciso divulgar ou criar espaços específicos para mulheres, porque ainda não existia um número muito grande delas por aí, quando existisse, elas iriam se destacar por conta própria. Ela menciona que acha esse um posicionamento raso, pois não ataca as desigualdades que estão na base desses problemas, que é o acesso ao estudo e a possibilidade de acreditar que elas podem ser quadrinistas ou artistas. Ela publicou um texto sobre o Festival no Lady’s Comics e você pode conferir aqui, a Aline tem outras publicações por lá que vale a pena conferir, só clicar aqui.
Quando começou a escrever e planejar as histórias, apesar de saber que queria fazer uma série, Aline não fazia ideia de quantas histórias seriam ou quanto tempo se dedicaria a cada uma, o objetivo era fazer e ir praticando. Já existia a ideia de talvez transformar todas as publicações em um livro, mas não era nada concreto, produzindo mais ou menos em determinados momentos. Aline conta que foi o quadrinista e produtor cultural Jão (Baixo Centro, pela editoria Miguilim), que trabalha na Pulo Comunicação em Belo Horizonte, que a convidou para publicar a série no formato de livro pela editora Miguilim. Foi a partir desse convite que ela começou a pensar no livro de forma mais concreta e definir números: seriam 30 artistas, escolhidas com critérios de diversidade, diferentes regiões, contextos, movimentos, e um panorama realmente diversificado, e limitando a artistas nascidas até 1930, que foi uma definição mais arbitrária para limitar a quantidade de artistas e tornar a escolha menos complicada.
“Com a editora eu produzi alguns quadrinhos, todos foram publicados online, eles vão todos continuar online, e a editora trouxe estúdio Guayabo pra fazer a parte gráfica, coisa que eu não teria condição de fazer sozinha, mesmo porque eu pensava que, se eu fosse transformar em livro seria viabilizando por outras formas, seja por publicação independente, financiamento coletivo, mas como era um projeto que eu já tava trabalhando há um tempo, eu já estava me sentindo um pouco cansada e a editora me ajudou fazendo todo processo de transformar em livro e de dar saída nele – essa foi uma grande vantagem de ter feito com eles, e também de trazer um estúdio de design mesmo pra fazer o projeto, o que agregou muito no livro, e a editora também me possibilitou acompanhar esse processo de perto, o que nem sempre acontece, mas com eles eu consegui participar das reuniões, vi a concepção do projeto, a materialidade do livro mesmo.”
O livro “Artistas brasileiras” pode ser encontrado em Belo Horizonte na Livraria da Rua ou online na loja virtual. Atualmente, Aline Lemos está trabalhando na sua primeira história longa, chamada “Fogo Fato”, que, segundo ela, tem sido levada aos poucos, pois ainda está trabalhando em outros projetos como ilustradora e cartonista, além de participar do coletivo Corpas em Risco, um coletivo de arte e ativismo com o objetivo de fortalecer os debates feministas nos quadrinhos. Ela falou sobre esse projeto recentemente no episódio do podcast “HQ sem roteiro”.