Eartha Kitt: da rejeição na infância a adoração nos palcos e cinema

Eartha Kitt: da rejeição na infância a adoração nos palcos e cinema

Eartha Kitt foi uma cantora e atriz americana. Ela foi uma das primeiras atrizes negras da TV americana e ficou marcada no icônico papel de Mulher-Gato na série do Batman de Adam West, nos anos 1960. Ao mesmo tempo que atuava, tornou-se um ícone do cabaret com as suas performances musicais. Orson Welles se referia a ela como “a mulher mais excitante do mundo”.

Apesar de todo o seu talento e carisma, a carreira e a vida da artista ficaram marcadas por um episódio que a perseguiria pelo resto de sua vida. Quando em uma reunião na Casa Branca ela se posicionou contra a guerra no Vietnã, causou, na época, reações da Primeira Dama dos EUA. Além disso, ela foi colocada na mira do FBI e teve a sua carreira prejudicada. Eartha Kitt é um ícone que até hoje influencia as gerações mais novas.

Os primeiros anos de Eartha Kitt

Eartha Kitt. Imagem: reprodução
Eartha Kitt. (Imagem: reprodução)

Nascida na Carolina do Sul em 1927, Eartha era filha de uma mulher negra com um homem branco. Ela nunca conheceu o seu pai e acredita-se que ela tenha sido fruto de um estupro. Desde a infância conheceu a rejeição e o desamor por parte de sua família, posto que ela era considerada branca demais para a sua família e negra demais para os brancos. Sua mãe não quis criá-la e a abandonou com uma tia.

Aos 16 anos, ela entrou para a companhia de dança de Katherine Dunham, em 1943, e permaneceu em turnê com essa companhia por alguns anos antes de seguir em carreira solo. Em Paris, Eartha ficou famosa cantando em clubes noturnos e foi em uma dessas apresentações que Orson Wells ficou encantado pela figura dela. Assim sendo, ele a escalou para o seu primeiro filme em Hollywood como Helena de Troia em “Dr. Faustus”.

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Kitt estrelou outras produções da época como “St. Louis Blues” e “Anna Lucasta”, bem como fez sucesso como cantora nos anos 1950, com canções como “Santa Baby”, “I Want To Be Evil” e “C’est si bon”, que até hoje são a sua marca registrada. Ela também criou uma imagem de símbolo sexual na época e ficou conhecida como uma “Sex Kitten”.

Nos anos 1960, ela encarnou a icônica vilã da série do Batman. Substituindo Julie Newmar no papel da Mulher-Gato, Eartha se tornou a primeira mulher negra no papel em uma série de sucesso. Contudo, infelizmente o público não reagiu muito bem e ela ocupou o posto por alguns episódios apenas. Além do cinema, da TV e da música, a artista também fez muito sucesso na Broadway em sua estreia nos anos 1950.

A primeira Mulher-Gato negra

Eartha Kitt como Mulher Gato.
Eartha Kitt como Mulher-Gato. (Imagem: reprodução)

Foi oferecido a Kitt o convite para substituir Julie Newmar como a mulher-gato na famosa série do Batman, de Adam West, nos anos 1960. Troca de atores não eram algo incomum na série, que já havia trocado os atores do personagem Mr. Freeze e a própria Mulher-Gato, que tinha sido interpretada por Lee Merriweather, no filme da época. Mas a simples inclusão de uma mulher negra nas telas das TVs da família tradicional americana da década de 1960 se tornou uma afronta e ao mesmo tempo uma conquista para a comunidade negra.

Eartha já havia se tornado uma sensação mundial na época e por consequência, produtores resolveram apostar na atriz que era considerada um símbolo sexual e se encaixaria perfeitamente no papel da vilã, que também era o interesse romântico do protagonista. Contudo, para não chocar ainda mais as audiências conservadoras e racistas, que se sentiram ultrajadas com Kitt interpretando uma personagem de destaque na série, o romance dos personagens foi deixado de lado, permitindo a Eartha interpretar uma vilã mais interessante.

Apesar de ter sido a Mulher-Gato por apenas alguns episódios, Eartha ficou marcada pelo papel e frequentemente é lembrada como a melhor versão da Mullher-Gato, além de ter aberto portas para Halle Berry interpretar a vilã, no filme de 2004, e Zoë Kravitz na mais recente adaptação para os cinemas do Homem-Morcego, prevista para 2021.

O incidente na Casa Branca: hipocrisia e perseguição

Eartha Kitt e Lady Bird
Eartha Kitt conversando com Lady Bird Johnson na Casa Branca. (Imagem: Bettman Archive)

Kitt sempre foi conhecida por sua personalidade forte e por falar o que pensava. Em 1968, ela era uma sensação em seu país, com trabalhos de sucesso na TV, cinema e teatro. Por consequência, recebeu um convite para participar de um almoço na Casa Branca a convite da então Primeira Dama Lady Bird Johnson. Eartha, num primeiro momento, não demonstrou interesse no convite, mas acabou indo ao evento.

Ela achou que poderia conversar sobre o que acontecia com a juventude de seu país de maneira sincera e sobre a guerra que estava acontecendo no Vietnã, mas que não fora mencionada pela Primeira Dama. Ao ser questionada sobre o que podia ser feito pela juventude delinquente da América, Eartha não mediu suas palavras e seu discurso, alegando que os jovens americanos não estavam se rebelando sem motivo, e que eles estavam criandos seus filhos para serem enviados para a guerra.

“As crianças da América não estão se rebelando sem motivo. Eles não são hippies à toa. Nós não temos o que nós temos no Sunset Boulevard sem motivo. Eles estão se rebelando contra algo. Há muitas coisas consumindo as pessoas nesse país, principalmente as mães.

Elas sentem que vão criar os seus filhos — e eu sei como é, e você também tem seus filhos, Senhora Johnson — Nós criamos crianças e as enviamos para a guerra. ”  — Eartha Kitt

Essa simples declaração foi suficiente para quase pôr fim à carreira de Kitt e a transformar numa pária em seu país. Jornais diziam que Eartha havia atacado a Primeira Dama, que teria se debulhado em lágrimas após a fala da artista. As reações foram instantâneas e Eartha recebeu o repúdio imediato da Casa Branca. Há relatos de que a Primeira Dama teria dito que não queria mais ver a cara de Kitt. Em poucos dias os contratos de shows de Eartha foram cancelados e ela começou a ser perseguida pelo FBI, que grampeou seu telefone e criou um dossiê sobre ela, descrevendo-a como uma ninfomaníaca.

Sem conseguir trabalhar em seu país, ela se viu forçada a se mudar e reconstruir a sua vida na Europa, onde sempre foi muito bem recebida. Ela falava fluentemente quatro idiomas e chegou a cantar em onze línguas diferentes.

Em 1978, dez anos após o incidente, Eartha retornou ao seu país de maneira triunfal como estrela da peça da Broadway “Timbuktu”, que lhe rendeu uma indicação ao prêmio Tony.

O legado de Eartha Kitt: amor e compromisso

Ao longo de sua carreira Eartha Kitt foi uma defensora dos direitos humanos e da causa LGBT, o incidente na Casa Branca só reforçou o seu posicionamento e a sua luta pelas minorias, pois ela mesma sentiu na pele o peso da rejeição por ser quem ela é.

Nos anos 1980, ela apoiou o casamento gay e chegou a se apresentar em shows beneficientes em favor da causa da AIDS. Suas canções “I Love Man” e “Where is My Man” se tornaram muito populares na comunidade Gay e Kitt se tornou um ícone para a comunidade. Ela dizia que entendia o que era ser uma pessoa rejeitada e oprimida, por também ser uma e que nada no mundo era mais doloroso do que a rejeição, por isso entendia pelo o que passava uma pessoa LGBT.

Já nos anos 2000,  Kitt dublou a vilã Yzma no filme “A Nova Onda do Imperador” (The Emperor’s New Groove no original) e voltou a fazer sucesso nos cinemas. Além disso, ela cantou “Snuff Out the Light”, uma das canções originais do filme. Ela faleceu em 25 de dezembro de 2008, aos 81 anos.

Ao longo de sua vida Eartha enfrentou diversas dificuldades e rejeições, mas era extremamente talentosa e devotada a sua carreira e fãs. Ela se dizia órfã e dizia que seus fãs eram a sua família.

Recentemente um trecho de uma entrevista de Eartha, retirada do documentário de 1982 “All by Myself: The Eartha Kitt Story” voltou a circular. O entrevistador pergunta a Eartha se ela estaria pronta a se comprometer com um homem que desejasse entrar em sua vida, ela responde lindamente, e as gargalhadas, que um relacionamento deve ser merecido, não ser apenas um compromisso e que ela se apaixona por ela mesma, procurando alguém que queira compartilhar ela com ela mesma.

Abaixo você pode ver o trecho da entrevista em inglês, com legenda em português.

A fala de Kitt, nessa entrevista, acabou influenciando a cantora Mahalia, que em 2019 lançou um álbum intitulado “Love and Compromise”, sampleando a fala de Eartha em sua canção “Hide Out,” provando que ela continua sendo mais relevante do que nunca, além de ser uma mulher a frente de seu tempo.

A cantora Jamila Woods também prestou homenagem a Kitt em seu álbum mais recente “LEGACY! LEGACY!”. Além da canção intitulada EARTHA, ela também lançou um vídeo cheio de referências a carreira da artista e fez uma bela homenagem a vida e a carreira da mulher mais interessante da face da Terra.


Edição/revisão por Mariana Teixeira.

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Formada em artes visuais e apaixonada por arte, música, livros e HQs. Atualmente pesquisa sobre mulheres negras no rock. Seu site é o Sopa Alternativa.
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