As mulheres nos Contos das Quatro Estações de Éric Rohmer

As mulheres nos Contos das Quatro Estações de Éric Rohmer

Os quatro filmes da série Contos das quatro estações, dirigidos por Éric Rohmer, foram lançados entre 1990 e 1998. Ao longo das obras que integram a quadrilogia, o diretor traça histórias centradas a beleza das relações humanas, ora complexas, ora simples, deixando que os holofotes recaiam sobre a banalidade do cotidiano. Sem grandes acontecimentos extraordinários, Rohmer escolhe contar histórias que revelam sua ótica sobre a extraordinariedade que é a vida em si.

A força motriz dessas histórias são as mulheres. As personagens femininas dos contos acabam direcionando os enredos com seus dilemas, indagações, sofrimentos e alegrias. Convicção e desejo são dois dos temas mais frequentes nos filmes, e os impasses provenientes dessas forças acometem todas as mulheres, apesar da diversidade de suas personalidades. 

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1) Conto da Primavera

O primeiro filme da quadrilogia, Conto da Primavera, conta a história da professora de filosofia Jeanne (Anne Teyssèdre), que precisa viver um período de mudança após emprestar seu apartamento para uma prima. Sua opção de estadia temporária é o apartamento do namorado, que lhe gera um desconforto por conta da bagunça. Em sua convicção pessoal, Jeanne sente que estaria invadindo o espaço do companheiro ao organizar o ambiente.

Ela acaba passando esse período com uma moça que acabou de conhecer, a pianista Natacha (Florence Darel), com quem desenvolve uma amizade. No entanto, durante esse período, Jeanne vai sendo arrastada cada vez mais para os dilemas da amiga, até chegar ao ponto de presenciar brigas familiares, sem saber com certeza quando intervir.

Cena de Conto da Primavera (1990)
Cena de Conto da Primavera (1990) | Divulgação

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O pai de Natacha namora uma moça que tem quase a mesma idade da filha, e as duas acabam entrando em conflitos constantemente. A ideia de Natacha para resolver essa inconveniência é juntar Jeanne com seu pai. 

Em meio ao absurdo da situação, Jeanne começa a entender cada vez mais o quanto a sua convicção excessiva em respeitar as liberdades dos outros atravessa os seus próprios limites e, por consequência, acaba violando a sua liberdade pessoal. Ao voltar para a casa do namorado, no fim da história, ela coloca as flores que ganhou no ambiente, e começa a ocupar o espaço ao seu redor pela primeira vez. 

Essas experiências sutis que são conquistadas através das interações entre pessoas protagonizam todos os quatro filmes da série. Ao sair do próprio casulo, os personagens de Rohmer são colocados à prova, com todos os seus ideais e incongruências. 

2) Conto de Inverno

O absurdo do desejo forçado também aparece em Conto do inverno, que acompanha Félicie (Charlotte Véry), uma moça que viveu uma tórrida paixão com Charles (Frédéric van den Driessche), um homem com quem perdeu contato após um problema de comunicação. Apesar de terem sido separados pelo acaso, Félicie nunca parou de pensar em Charles, que partiu antes de saber que ela estava grávida. 

Cena de Conto de Outono (1992)
Cena de Conto de Outono (1992) | Divulgação

Félicie é feliz cuidando de sua filha, e está convicta de que nunca mais vai amar outro homem como um dia amou Charles. No entanto, ela se vê dividida entre dois homens de quem não gosta realmente. A indecisão de Félicie não tem nada a ver com um triângulo amoroso, e sim com um dilema de expectativas – tanto as suas sobre a vida, quanto aquelas que as pessoas ao seu redor estão constantemente impondo sobre ela. Embora não queira nenhum dos dois homens, Félicie é pressionada a escolher. 

Os relacionamentos arranjados são um tema também frequente nos contos. Félicie não é a única mulher de Rohmer que precisa escolher entre homens que ela não quer realmente, já que a outra opção – ficar sozinha – parece um grande problema.

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Apesar disso, Félicie escolhe permanecer fiel à sua convicção pessoal de ainda amar um homem que há muito se tornou um fantasma, mas que é mais real do que seus romances artificiais. A convicção em sua esperança e em seus sentimentos, por mais absurdos que pareçam ser, ainda é melhor do que optar por mentiras convenientes. 

No fim, Félicie reencontra Charles e reata seu romance com ele. Ainda assim, dessa vez ela pede um tempo para pensar antes de ir morar com o homem, contrastando com o início do filme, quando ela decide ir morar com um de seus pretendentes sem hesitar. Sua felicidade, seu amor e sua esperança são, agora, mais lúcidos, mais racionais e, ao mesmo tempo, mágicos à sua maneira. 

Conto de Inverno ainda traz discussões metafísicas, fruto das reflexões do próprio Rohmer, cuja obra carrega, ao mesmo tempo, um registro das mudanças de valores que aconteciam na sociedade ao seu redor, e uma influência de sua relação com o catolicismo. Assim, há um profundo interesse pela alma humana, suas esperanças e crenças, mas também pelas reconfigurações que aconteciam na vida, nos papéis de gênero, nos hábitos e pensamentos da sociedade que cercavam Rohmer. Seus personagens ora buscam respostas complexas, ora se perdem em aborrecimentos pueris. Em um momento, buscam a imortalidade de compor uma bela canção, em outro, o dilema banal de uma paixão juvenil. 

3) Conto de Verão

Em Conto de verão, o jovem Gaspard (Melvil Poupard) tenta finalizar uma música autoral enquanto aguarda sua namorada Lena (Aurelia Nolin) visitá-lo durante as férias. Ao longo desse período, ele conhece Margot (Amanda Langlet), uma moça com quem desenvolve uma amizade. Enquanto aguarda a visita da namorada, suas inseguranças com relação a Lena crescem, até ele decidir ter um caso com uma terceira garota, Solène (Gwenaëlle Simon). 

Conto de Verão (1996)
Cena de Conto de Verão (1996) | Divulgação

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Ao longo do verão, Gaspard acaba dividido entre as três moças, todas inteligentes e com muita personalidade. Não há nenhum dilema amoroso, sua indecisão não é motivada por amor, e sim por expectativas e inseguranças. Na maior parte do tempo, os personagens que interagem não estão apaixonados, com exceção talvez da personagem Margot. Em certo momento, Gaspard declara só ter se envolvido com outra moça para equilibrar a balança com Lena, que viajava por vários lugares, o que o deixava inseguro a respeito da possibilidade de estar sendo traído.

No fim, paralizado pela indecisão, Gaspard não escolhe nenhuma das três garotas, indo embora da mesma forma que chegou, como um viajante, incapaz de se conectar verdadeiramente com as pessoas ao seu redor por mais do que um caso de verão. A imaturidade, a insegurança e a indecisão que acompanharam o protagonista desde o princípio de sua jornada embarcam junto com ele. Nas ilhas pessoais das mulheres que conheceu, Gaspard só consegue tirar férias.

4) Conto de Outono

Em Conto de Outono, a produtora de vinhos Magali (Beatrice Romand) fica dividida entre os planos de duas de suas amigas para encontrar um namorado para ela. Magali é uma mulher inteligente e interessante, que vive de maneira quase reclusa, isolada em sua vinícola. Ela desenvolve uma amizade com a namorada de seu filho, Rosine (Alexia Portal), que prolonga o relacionamento apenas para ter uma desculpa para manter o contato com Magali.

Rosine teve um envolvimento romântico com seu professor de filosofia, Étienne (Didier Sandre), um homem mais velho do que ela que tem um histórico de namorar suas alunas. Por achar a relação um tanto problemática, Rosine decide encerrar o relacionamento. Sua ideia é juntar Étienne e Magali, embora ambos percebam o absurdo de seu plano. 

Cena de Conto de Outono (1998) | Divulgação
Cena de Conto de Outono (1998) | Divulgação

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Outra amiga de Magali, Isabelle (Marie Rivière), também procura um namorado para a protagonista. Ela decide publicar um anúncio no jornal, na seção de relacionamentos, em nome de Magali. No entanto, sua busca por um pretendente para a amiga acaba ficando no caminho de seus próprios sentimentos quando Isabelle começa a se aproximar demais de um dos homens que responde o anúncio, Gérald (Alain Libolt). Ao longo da comédia, todos os personagens ficam presos em confusões geradas pelos encontros e desencontros armados pelas amigas de Magali. 

No fim, Rohmer se preocupa em retratar a vida como ela é, com suas simplicidades e complexidades, que vão do ordinário até o extraordinário de forma imprevisível, tal como a realidade. Nessas histórias, as mulheres ocupam um papel de protagonismo, representando indagações que direcionam todo o enredo. Elas também funcionam como um índice para a visão de mundo de Rohmer ao carregarem a essência dessas quatro obras.

A saga de Rohmer é, afinal, uma jornada em busca de maravilhar o espectador com a vida e sua fluidez, afinal como afirmou o próprio diretor, “Eu sou um admirador. Eu mostro apenas coisas que eu admiro”.

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Formada em Jornalismo. Gosta muito de cinema, literatura e fotografia. Embora ame escrever, é péssima com informações biográficas.
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