Ladies of the Canyon: as diversas camadas de Joni Mitchell

Ladies of the Canyon: as diversas camadas de Joni Mitchell

Roberta Joan, mais conhecida como Joni Mitchell, é uma artista canadense cuja carreira já abrange mais de 50 anos, deixando um legado indescritível. Suas composições são marcadas pela poesia, pela pintura e, principalmente, pelas histórias que contam. O nome de Joni traz consigo elementos marcantes que povoam o imaginário coletivo.

Os acordes profundos do violão e uma voz simultaneamente firme e trêmula se unem a letras profundas, que não apenas revelam a identidade de quem as escreve, mas a destacam como compositora e mulher.

Sua voz, sempre clara em suas canções, apresenta em cada álbum uma nova narrativa. Essas histórias são permeadas pelo intimismo da posição que ocupa no mundo, por seus sentimentos e por algo a mais: o relato de um tempo único capturado pelo olhar de Joni e transcrito em suas letras, às vezes através de personagens fictícios. Esse é o caso de seu terceiro álbum de estúdio, lançado em 1970, intitulado Ladies of the Canyon.

A icônica imagem de Joni Mitchell olhando pela janela de seu quarto em Laurel Canyon, em 1970, capturada pelo fotógrafo Joel Bernstein.
A icônica imagem de Joni Mitchell olhando pela janela de seu quarto em Laurel Canyon, em 1970, capturada pelo fotógrafo Joel Bernstein.

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Um passeio pelo Cânion de Joni Mitchell

As músicas são pequenos fragmentos de uma história completa, que compõem álbuns. São esses fragmentos, ordenados ou não, que ajudam a montar o quebra-cabeça, ou melhor, a organizar o fio narrativo de uma história.

A história que Joni deseja apresentar aos ouvintes em Ladies of the canyon carrega um prosaísmo único. Ao mesmo tempo leve, ela nos guia entre os acordes suaves do violão e traz o sentimentalismo e o drama de uma década perdida e idealista, por meio do piano e da poderosa voz de Joni Mitchell.

Este álbum é conhecido como um dos mais famosos e acessíveis da cantora. No entanto, essa acessibilidade não deve ser confundida com simplicidade.

Embora aborde temas cotidianos que podem parecer superficiais, há um trabalho velado que atribui a cada letra um significado nas entrelinhas, muitas vezes em forma de metáfora e melancolia. Isso é evidente na nona faixa, “Blue Boy“, que descreve a impossibilidade e tristeza de um amor esgotado até não sobrar nada, transformando ambas as partes em uma estátua de frieza e vazio.

Ela acordaria de manhã sem ele e iria olhar pela janela através da sua dor, mas a estátua em seu jardim, ele sempre pareceu o mesmo.

Nem tão simples quanto parece

Os temas explorados não se limitam apenas ao amor e suas desilusões, mas também abrangem críticas ao sistema capitalista. Essa postura fica claramente evidente na faixa “Big Yellow Taxi“, uma das mais famosas do álbum.

Mitchell relata que a inspiração para a música surgiu durante uma viagem ao Havaí, quando ficou chocada com o que testemunhou. Ela percebeu que, diante da beleza paradisíaca do mar azul, existia um estacionamento, um hotel e todo um centro comercial.

Pavimentaram o paraíso e puseram um estacionamento com um hotel cor-de-rosa, uma butique e uma danceteria descolada. Pegaram todas as árvores e colocaram num museu de árvores e cobraram das pessoas um dólar e meio só pra vê-las.

Joni Mitchell em Laurel Canyon, em 1970. Foto por Joel Bernstein.
Joni Mitchell em Laurel Canyon, 1970 | Foto por Joel Bernstein (reprodução)

Em “For Free“, ela estabelece um paralelo com sua própria vida, destacando a fama e os privilégios que contrastam com a cena de um clarinetista tocando em uma esquina de Nova York em troca de comida, sem muitas perspectivas. A letra da música reflete sua crítica a um público que não reconhece o verdadeiro valor de um músico, mas se concentra apenas em números e fama.

Agora eu, eu apenas toco por fortunas e quando se abrem as cortinas de veludo eu tenho uma limusine preta e dois cavalheiros escoltando-me pelos salões e eu toco, se você tiver o dinheiro ou se você for um amigo para mim mas a banda de um só homem pelo rápido horário do almoço, ele estava tocando realmente bem, de graça.

 A celebração da criatividade feminina 

Assim como vários temas mencionados, um se destaca com maior frequência: as mulheres e suas relações no cotidiano. As personagens femininas criadas pela compositora dão vida à história que Mitchell deseja contar. Logo na abertura do álbum, com a faixa “Morning Morgantown“, somos imersos na narrativa, tratando-se de uma manhã comum em uma cidadezinha.

Com o início do dia, a cidade desperta em suas diversas formas: o pão é feito, os leiteiros se preparam e há um desfile. Dessa forma, Joni prepara o ouvinte para a faixa principal, que dá nome ao álbum. É com Trina, Annie e Estrella que povoamos a manhã, mulheres do Cânion que se entrelaçam por um único tema: a sua própria criatividade.

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Joni Mitchell olhando pela janela de seu quarto em Laurel Canyon, em 1970. Fotógrafo Joel Bernstein.
Fotografia de Joel Bernstein (reprodução)

Em outras palavras, a canção é uma forma de celebrar as mulheres reais, suas diversas ocupações e paixões. Essas mulheres desenham, bordam, cantam, assam bolos, algumas têm filhos, outras têm gatos, e, assim, cultivam seu espírito artístico nas montanhas. É um retrato colorido e simpático da criatividade feminina da década de 1970, na liberdade de ser mulher e se perder nas artes, por mais cotidianas que possam parecer.

Trina leva suas dores e seus fios e  ela tece um padrão próprio. Annie assa seus bolos e seus pães e ela colhe flores para sua casa para sua casa, e Estrella, querida companheira colore as horas de Sol derramando música no desfiladeiro, colorindo as horas de sol. Elas são as senhoras do cânion.

Somos poeira de estrela, disse Joni Mitchell

Por fim, fechando essa narrativa, está uma das músicas mais fortes e poéticas da cantora e compositora Joni Mitchell, “Woodstock“. Escrita em homenagem ao evento tão famoso que marcou a juventude dos anos 1970, a faixa consegue capturar o sentimento de liberdade e ludicidade provocado pelas vozes de uma geração. O mais interessante sobre esse fato é que a cantora não conseguiu se apresentar no evento.

Joni cantaria no mesmo dia de grandes nomes da década, como Janis Joplin, mas por não conseguir ir até o evento, compôs a música que marcaria o sentimento woodstock. Em 2021, a cantora esclareceu que, se tivesse ido ao festival, jamais teria escrito a canção que definiu aquela geração. Talvez seja por isso que Mitchell descreveu tão bem a sensação e a magia atribuída aos shows, ela escreveu a sua própria perspectiva.

Joni Mitchell | Foto: Norman Seeff (reprodução)

O seu relato é de quem observa de fora. O de quem percebe a mudança de toda uma geração a partir do sonho de caminhar com outros jovens para o paraíso na terra. Assim, ela escreve um cântico sobre a possibilidade, a criatividade e, principalmente, sobre a brevidade da nossa jornada e estadia nesta terra.

Nós somos poeira estelar, nós somos dourados e devemos encontrar o caminho de volta ao jardim. Assim que chegamos em Woodstock éramos mais de meio milhão em todo lugar havia música e celebração.

Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.

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3 Textos

Formada em Letras e viciada em pesquisar Lygia Fagundes Telles. Nas horas vagas é uma grande leitora de ficção científica e de mulheres a beira de uma crise de nervos. Escolheu a escrita como forma de aliviar a ansiedade. O maior hobby é iniciar séries e nunca terminá-las e, também, ouvir Lana Del Rey no repeat.
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