Ana Carolina e sua Trilogia da Condição Feminina

Ana Carolina e sua Trilogia da Condição Feminina

O mês de setembro marca o aniversário da cineasta paulistana, Ana Carolina Teixeira Soares, ou apenas, Ana Carolina. A data exata de seu nascimento difere em algumas fontes. Mas, segundo o CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, em 2023 a diretora completa 74 anos. Independentemente de ter vindo ao mundo em 1943 ou 1949, é incontestável a influência e relevância de seu trabalho no cenário cinematográfico brasileiro. Especialmente no contexto do cinema produzido por mulheres no Brasil e no mundo ao longo do século XX.

Ana Carolina: da condição feminina à hipocrisia da sociedade brasileira

Ana Carolina se formou na Escola Superior de Cinema São Luiz. Antes disso, passou pelos cursos de medicina na USP e pela Faculdade de Ciências Sociais da PUC-SP. Iniciou sua trajetória no cinema como continuísta e, ainda nos anos 1960, co-dirigiu seu primeiro filme, o curta-metragem documental Lavra Dor (1968), em parceria com Paulo Rufino

O início de sua carreira foi marcado pela produção de documentários, incluindo Indústria (1969), A fiandeira (1970) e Guerra do Paraguai (1970), entre outros. Seu primeiro longa de ficção também faz parte da Trilogia da Condição Feminina, sendo Mar de rosas (1978) um dos trabalhos mais celebrados.

Ana Carolina explora as fronteiras entre o real e a imaginação, colocando em destaque comportamentos, desejos e pensamentos que desafiam a moral e os valores da sociedade que representa.

A diretora utiliza protagonistas femininas para revelar os diferentes padrões de comportamento esperados de homens e mulheres. Em seus filmes, promove a libertação das mulheres através de um registro do exagero. A loucura, que costumava ser usada para controlar as mulheres, torna-se o motor libertador das personagens.

Trilogia da Condição Feminina:

1) “O mar de rosas” (1978)

No primeiro filme da trilogia, Ana Carolina representa a condição feminina através das personagens Felicidade (Norma Bengell) e Betinha (Cristina Pereira).

Em Mar de rosas (1977), mãe e filha fogem do controle de figuras de autoridade que as perseguem, sejam elas o marido, simbolizando a prisão de um casamento falido e infeliz, o agente do estado, que se torna uma alegoria para o controle sociocultural, ou o político, vivido durante a ditadura civil-militar. Até mesmo a própria mãe, no caso de Betinha, personificando gerações anteriores de mulheres e o conflito que esse encontro de formas de pensamento pode causar.

O filme "Mar de rosas" (1977) faz parte da Trilogia da Condição Feminina.
Mar de rosas (1977) | Reprodução

Betinha rejeita qualquer tipo de autoridade que se apresente a ela. Desde seus primeiros momentos em tela, a menina não leva em consideração o que o pai ou a mãe dizem, e essa postura se mantém em sua relação com outros adultos que cruzam o seu caminho.

A fala de Betinha, portanto, representa seu corpo rebelde, que não hesita em apontar as hipocrisias da vida adulta que a cerca, assim como faz a própria diretora ao chamar de Felicidade uma personagem que, em nenhum momento, parece estar feliz.

Além disso, o filme faz uso do absurdo em seu texto, apesar de manter uma visualidade sóbria e centrada na realidade. As personagens dizem e tomam ações que despertam estranhamento no espectador, levando-o a questionar se o que está sendo apresentado é realmente a realidade.

Leia também >> A felicidade opressiva em “As duas faces da felicidade”

2) Das tripas Coração (1978)

Já em Das tripas coração (1987), o filme adota o ponto de vista masculino sobre a mulher, representando a condição feminina enraizada no machismo e na misoginia.

Quatorze anos após Laura Mulvey publicar o seu trabalho, “Prazer visual e cinema narrativo” (1973), no qual a autora discute a representação da figura feminina no cinema e cunha o termo “male gaze“, referindo-se à forma como essa representação é construída a partir da visão masculina sobre a mulher, Ana Carolina produz um resumo prático do conceito de Mulvey.

Ao focar o filme durante o sonho de um interventor, cuja missão é ir até um colégio exclusivamente para meninas e fechá-lo, a diretora nos mostra como os homens imaginam entender a mulher.

Leia também >> Infâmia: a lesbianidade no cinema em tempos de censura

O personagem masculino, além de se colocar como objeto de desejo, também assume uma postura voyeurística ao investigar e imaginar o despertar sexual das alunas em um ambiente sáfico, retratado como depravado, mas sem se afastar de um olhar fetichizante.

O sentimento de histeria, imprevisibilidade e, em alguns momentos, até mesmo de violência, completa essa ideia do male gaze apresentado por Mulvey e trabalhado por Ana Carolina. Portanto, o filme é uma forma clara de representar as ideias criadas por uma sociedade misógina sobre a experiência feminina.

O filme "Das tripas coração" (1987) faz parte da Trilogia da Condição Feminina.
Das tripas coração (1987) | Reprodução

O que seriam, dentro da história, poucos minutos de sonho do personagem de Antônio Fagundes, revelam os medos que essa sociedade utiliza como ferramenta para manter o seu controle sobre a mulher.

Isso inclui o medo da possibilidade de romper o contrato social que fundamenta sua estrutura na posição da mulher como cuidadora e submissa. Portanto, o cenário de liberdade sexual representa o medo da revolução que a liberdade da mulher traria para essa sociedade.

3) Um Sonho de Valsa (1987) 

No último filme da trilogia, Ana Carolina aborda a experiência da mulher mais velha ao lidar com as expectativas impostas pela sociedade patriarcal. Vemos possíveis relações entre homens e mulheres que partem de ideias conservadoras, onde uma mulher tem pouca ou nenhuma agência sobre sua vida e precisa esperar por sua salvação, representada pela figura masculina.

"Um sonho de valsa" (1987), filme de Ana Carolina.
Um sonho de valsa (1987) | Foto: Reprodução

Quando falta autonomia e ainda assim age conforme as expectativas, sonha com o resgate por seu príncipe encantado e não por si própria. Em Sonho de Valsa (1987), Teresa (Xuxa Lopes) finalmente encontra a felicidade ao se libertar das concepções românticas e machistas sobre o amor, ao perceber que a felicidade estava em sua autodescoberta e ao se reconhecer independente dos outros.

Os impactos da censura no cinema de Ana Carolina

O cinema de Ana Carolina utiliza artifícios do exagero e do absurdo para ilustrar os embates sociais enfrentados pela diretora em cada uma das obras de ficção mencionadas aqui. É importante considerar esses dispositivos no contexto da época em que seus filmes foram produzidos, já que a maioria deles foi lançada durante a ditadura militar.

Durante esse período, que suspendeu os direitos dos cidadãos brasileiros, perseguiu opositores, incluindo artistas, e instaurou a censura nos meios de comunicação, as alegorias utilizadas pela cineasta ajudaram seus filmes a passarem pela censura. Mesmo que suas personagens fossem estranhas, elas abordavam de maneira subjetiva os desafios impostos pelas normas da sociedade.

Leia também >> Primeira retrospectiva da cineasta Helena Solberg no Brasil

Ao explorar os esquemas hipócritas da sociedade em situações da vida privada, a diretora funde o privado e o público, como a vida de uma família disfuncional ou os sonhos fetichistas de um funcionário público. Isso se estende à dimensão extracinematográfica, ou seja, ao contexto político em que os filmes foram produzidos.

Não é possível separar essas duas dimensões no cinema de Ana Carolina, pois ele está profundamente enraizado na sociedade da qual ela faz parte e retrata. Assistir aos seus filmes é uma maneira de compreender um pouco sobre a cultura brasileira da época em que foram produzidos.

Por um cinema autoral

Este é também um cinema autoral, onde a diretora desempenha diversas funções na produção e acompanha as demais etapas, desde o roteiro até a montagem. A presença de sua visão é de extrema importância para a cineasta, o que, segundo ela mesma, torna a produção de seus filmes mais desafiadora.

“A única língua que é minha, a minha única maneira de expressão é o cinema. E eu acho penoso, difícil, fazer cinema. Como meio de expressão, é uma expressão dificílima […]

Estou submetida a essa linguagem, assim como eu estou sob a condição feminina, eu estou sob a condição de fazedora de cinema.” 

A diretora Ana Carolina em set de filmagem.
Ana Carolina em set de filmagem | Imagem: Reprodução

Após Sonho de Valsa, Ana Carolina realizou poucos trabalhos. Foram treze anos até lançar seu próximo filme, Amélia (2000). Em Quarto 666 (1982), um documentário de Wim Wenders no qual o diretor alemão entrevista vários cineastas durante o Festival de Cannes de 1982, Ana já demonstrava certo desânimo com os rumos da indústria audiovisual.

“Particularmente, tenho vontade de parar de fazer cinema todos os dias. Se eu conseguisse pequenas produções, para fazer pequenos filmes, com a paixão e o vigor que eu sei que eu tenho, esse seria o meu caminho.” 

Esse depoimento expresso na entrevista acabou se concretizando. No entanto, é importante lembrar Ana Carolina como uma artista autoral que se aventurou em meio a turbulências políticas e sociais, mas não omitiu o papel transformador de sua arte.

Leia também >> Chantal Akerman, cinema e o estrondo do silêncio feminino

A condição feminina

A Trilogia da Condição Feminina retrata uma sociedade em crise interna, que tenta camuflar suas falhas por trás da fachada de “moral e bons costumes” em uma escala exterior. Assim, esse trabalho também explora a inevitabilidade da libertação da figura feminina dos ideais impostos pelo machismo, representados pela economia de cuidados, a mãe, a filha exemplar, a esposa.

As obras de Ana Carolina refletem que mesmo as relações mais íntimas não estão desconectadas das amarras sociais. Portanto, o cinema desempenha a importante função de escancarar e refutar essas relações.

Fontes: 

Colagem em destaque: Beatriz Dota para o Delirium Nerd

Escrito por:

11 Textos

Historiadora e mestranda em Cinema e Audiovisual, com pesquisas voltadas para as relações entre os lugares ocupados por mulheres no cinema brasileiro. Apaixonada por arte, cinema e educação.
Veja todos os textos
Follow Me :