É fato que as mulheres em Aquaman (James Wan, 2018) são representadas como fortes, independentes, corajosas e ousadas, apesar do filme começar com a rainha Atlanna (Nicole Kidman) sendo salva pelo faroleiro Thomas Curry (Temuera Morrison) e se apaixonando por ele. Mas logo ela mostra que tem muito mais a oferecer do que o papel de mocinha indefesa que é grata por ser salva pelo príncipe encantado. Aliás, no caso, ela é a rainha.
O roteiro básico do filme não foge à regra de apresentação dos heróis através de sua origem. Aquaman/Arthur Curry (Jason Momoa), metade pertencente ao reino da terra e metade ao reino do mar, é filho desse amor, um mestiço, como é chamado muitas vezes ao longo do filme.
E esse é um dos pontos positivos do longa: mostrar o diferente, a mistura entre raças como algo positivo. Afinal de contas, o Aquaman de pele morena e cabelos longos – bem diferente das primeiras versões loiro-mauricinho dos quadrinhos – é o escolhido para herdar o trono da Atlântica e unir os dois mundos dos quais faz parte.
Mas, voltando à sua mãe: o conto de fadas da rainha e o faroleiro acaba com a chegada de soldados atlantes que vieram levá-la de volta ao reino dos mares, de onde nunca poderia ter saído. No entanto, em vez de simplesmente se render e ir embora, Atlanna luta contra todos os soldados e vence, praticamente, sem a ajuda de Thomas Curry. Forte, decidida e ousada. Logo em seguida, para proteger seu amado e seu filho, ela decide voltar ao seu lugar de origem e arcar com as consequências dos seus atos. Atlanna é banida para o Reino do Fosso e considerada morta.
Aquaman cresce sem a mãe por perto e tem uma forte relação com o pai. Logo aparece uma segunda mulher na vida dele: a princesa Mera (Amber Heard). Ela tenta convencer Arthur a assumir o trono de Atlântida, já que ele é o escolhido para unir os dois mundos e salvar a superfície de ser destruída pelo meio-irmão, o violento-puro-sangue-genuíno-príncipe-loiro-de-olhos-azuis, Orm Marius (Patrick Wilson), que pretende unir os sete reinos da Atlântica e se tornar o Mestre do Oceano. Ele decide que é hora de a humanidade pagar pela destruição constante do meio ambiente submarino, resultado de anos de poluição das águas de Netuno. Uma nobre razão, no entanto, que não justifica tamanha violência.
Nesse aspecto, o filme peca em não oferecer, em momento algum, outra alternativa ao problema da poluição dos mares e também em não mostrar as consequências dos danos causados. Ninguém na Atlântica parece estar sofrendo por danos ambientais. Nem mesmo o próprio Aquaman parece preocupado com a poluição das águas.
Ele só quer assumir o trono e salvar os dois mundos de uma guerra. Aqui entra o duelo dos machos ancestrais para resolver o problema. Assim como em Pantera Negra (Ryan Coogler, 2018), o trono deve ficar com quem vence a luta corpo e corpo e a tradição de matar o adversário deve ser mantida. Soluções demasiadamente arcaicas para civilizações tão evoluídas como Atlântica ou Wakanda.
O lado bom é que Aquaman não tem tempo de objetivar Mera, como fez com a Mulher-Maravilha em “Liga da Justiça” (Zack Snyder, 2107). A princesa, no entanto, tem muito trabalho. Mera consegue convencer Aquaman a reclamar o trono depois de salvar seu pai, impedindo que ele morresse afogado dentro de uma caminhonete e fosse engolido por um tsunami causado por Orm. Em Aquaman, a mocinha salva o mocinho mais de uma vez. É Mera quem decide tirar o herdeiro da Atlântida da injusta luta contra o meio irmão.
Ao contrário de Nuidis Vulko (Willem Dafoe), o homem que treinou Arthur para ser um guerreiro, e, nesse momento, apenas comentou que o duelo era um massacre, Mera toma uma atitude. Ela tira a roupinha rosa de princesa, pega uma nave, salva o herói e parte em busca do Tridente de Netuno, que pertencia ao rei Atlan (Graham McTavish). A relíquia pode provar que Arthur é o verdadeiro herdeiro dos reinos dos sete mares. É nesse momento que a história se repete: apenas um verdadeiro rei (Arthur) pode conseguir tirar o Tridente (espada) de onde ele está há milênios. No caso, nas mãos da estátua do antigo monarca. A mesma premissa da lenda do Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda.
Mera não tem medo, nem sequer pensa duas vezes antes de saltar sem paraquedas de um avião que cruza o deserto do Saara. Além disso, ela é a inteligente, a que pensa nas estratégias e decifra os enigmas. Mais de uma vez, a moça insinua que Aquaman não passa de um monte de músculos, com cérebro limitado. Não importa: o bom coração do rapaz é que pode salvar os mundos e conquistar a mocinha.
Apesar da crítica, a princesa parece gostar cada vez mais das estripulias do herói e vai pintando um clima entre eles. Quando a atriz Amber Heard foi convidada para interpretar a princesa, ela deixou claro que não faria o papel de uma donzela submissa e foi a possibilidade de ser uma heroína o que a fez aceitar o convite.
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Por muitos anos, Amber Heard ficou no limbo de Hollywood por ter denunciado seu ex-companheiro, o ator Jonhnny Depp, por maus tratos. Na época, ela se viu sozinha e desacreditada, um dos motivos pelos quais passou a defender a bandeira do feminismo, em busca de igualdade e justiça para as mulheres. Na tela, não poderia ser diferente. A personagem parece ter agradado tanto que já existe a ideia de fazer um spin-off unindo Mera com a Mulher-Maravilha, em uma aventura cheia de super-heroínas.
Mera encontra-se uma única vez com a rainha Atlanna e elas, praticamente, não trocam uma palavra que não seja sobre Aquaman. O grande problema é que o longa passa a sensação de que só existem duas mulheres em tantos e diferentes mundos. Assim como em filmes de ficção científica, as mulheres nem sequer aparecem como coadjuvantes: todos os soldados, todos os reis, quase todas as pessoas que aparecem são homens. Até mesmo criaturas não humanas parecem ser seres masculinos sempre.
Aquaman é um bom entretenimento e uma das melhores apostas do Universo DC, que parece ter encontrado o tom depois do sucesso de Mulher-Maravilha (Patty Jenkins, 2017). No entanto, discussões importantes sobre ecologia e feminismo não avançam muito. Filmes como o da amazona e do Pantera Negra funcionam melhor como obras politizadas, uma em defesa da mulher e a outra das pessoas negras, respectivamente.
Cada vez mais as mulheres conseguem espaço em filmes de ação e deixam de ser apenas a mocinhas salvas pelos mocinhos, assumindo um papel de destaque nas tramas. No entanto, ainda falta variar, ampliar e diversificar mais essa representatividade. Afinal de contas, em histórias de ficção, qualquer mundo pode ser criado e seria interessante que eles tivessem mais mulheres em toda a sua totalidade e não se limitassem apenas àquelas que giram em torno do herói, mesmo que sejam heroínas.