É difícil falar de mulheres nos quadrinhos sem falar de Marjane Satrapi. A franco-iraniana não foi somente a primeira iraniana a escrever HQs como também escreveu a obra que é considerada uma das melhores graphic novels de todos os tempos, “Persépolis“. Não que Marjane aprecie esse termo. “Eu não gosto desse termo, ‘graphic novel’. Eu acho que eles inventaram esse termo para a burguesia não ter medo de ler quadrinhos. Tipo, oh, esses são os quadrinhos que você pode ler”, declarou ela ao The New York Times. Esse estilo de fala – direta, sem rodeios – é um estilo que não surpreenderá ninguém que já for familiar com os trabalhos da autora.
Marjane nasceu em 1969, na cidade de Rasht, capital da província de Gilan, no Irã, mas foi criada e cresceu em Teerã, capital e principal cidade do país. Bisneta de um imperador, Marjane foi criada por uma família culta e de boas condições sociais, que a criou com uma mentalidade muito moderna. Seus pais, marxistas e religiosos, ensinaram-na a ler muito, questionar muito e a não ter medo de lutar pelos seus direitos, e essa criação a transformou numa adolescente questionadora e rebelde. Após a Revolução Islâmica de 1970, preocupados com as possíveis consequências de seu comportamento, seus pais decidiram mandá-la para estudar na Áustria. Marjane tinha 14 anos e passou quatro fora do país, retornando em 1987. Formou-se e fez mestrado em Comunicação Visual e depois saiu do Irã para morar na França, onde vive até hoje.
Toda essa biografia soa diferente para quem já estiver familiar com “Persépolis“. Afinal, depois de ter lido a forma profundamente pessoal com que Marjane narra a história de sua vida, é quase estranho ver sua jornada resumida em um parágrafo. Essa jornada é a narrativa de “Persépolis”, ilustrada em quatro volumes com uma honestidade muita crua, às vezes cômica, mas sempre muito carregada de sentimento. Marjane nos conta suas experiências como uma criança crescendo em meio à guerra, uma adolescente imigrante tentando se encontrar no mundo e uma adulta sem rumo com crises de depressão e impulsos suicidas: incorpora em si todas essas personagens e assim compõe um retrato que é, antes de qualquer coisa, visceralmente humano.
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Essa humanidade é algo que torna a obra de Marjane singular. Suas outras duas HQs, “Frango com Ameixas” e “Bordados“, também abordam temas simultaneamente culturais e pessoais. “Frango com Ameixas” conta a história de Nasser Ali, tio-avô de Marjane, um músico que, cansado da vida, decide deitar na cama e esperar a morte chegar, lembrando de pessoas e fatos que passaram pela sua vida, e “Bordados” é uma coleção de relatos que eram trocados pelas mulheres da família Satrapi em conversas durante o chá da tarde. “Frango com Ameixas” é uma história de melancolia e amargura; já “Bordados” é recheado de humor, compondo um retrato afiado de alguns questionamentos do universo feminino na sociedade iraniana, especialmente com relação à sexualidade.
O que essas histórias têm em comum é o elemento da memória, tema que perpassa toda a obra de Marjane. A memória, a família, a ancestralidade e a história – todos esses conceitos emergem de uma forma ou de outra, entrelaçando-se com questões cotidianas de maneira incrivelmente natural; um painel possui milhares de camadas de significado.
Essa multiplicidade se manifesta na própria Marjane, cuja gama de talentos é variada. Além de escrever e ilustrar quadrinhos, ela também deu início a uma carreira de cineasta em 2007, adaptando “Persépolis” para os cinemas. Em conjunto com o co-diretor Vincent Paronnaud, Marjane fez uma animação que seria aclamada pela crítica e pelo público. O filme de “Persépolis” foi indicado ao Oscar de Melhor Animação em 2008, fazendo dela a primeira mulher a ser indicada para a categoria.
Depois disso, a carreira de Marjane no cinema não parou. Ela ainda dirigiu uma adaptação live-action de “Frango com Ameixas”; uma comédia policial chamada “A Gangue dos Jotas” (na qual também atuou no papel principal); uma comédia de humor negro chamada “As Vozes“, estrelada por Ryan Reynolds; e atualmente está trabalhando num filme sobre a famosa química Marie Curie, Radioativo, que tem previsão de lançamento em 2020.
Esse projeto é ainda mais interessante quando se leva em conta um detalhe mostrado em “Persépolis”: quando as universidades do Irã são fechadas, durante a guerra Irã-Iraque, Marjane, na época apenas uma criança, lamenta, pois tinha o sonho de ser uma mulher culta, “que nem a Marie Curie”. No auge da sua ingenuidade infantil, ela sonha: “queria pegar um câncer em nome da ciência”.
É esse o tipo de toque pessoal que está presente na maioria dos seus trabalhos e que contextualiza todos os eventos que a cercam. Acontecimentos históricos não acontecem em paralelo à sua própria história, mas sim em conjunto, mostrando sempre como eles se misturam. Na obra de Marjane Satrapi, o pessoal e o político não encontram qualquer separação; pelo contrário, são um só.
Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.