A feminilidade monstruosa de “Noites Brutais”

A feminilidade monstruosa de “Noites Brutais”

Noites Brutais (Barbarian, no original) se divide em várias camadas, como as camadas do porão da casa que Tess (Georgina Campbell) aluga em um estranho bairro de Detroit. Bill Skarsgård interpreta Keith: sua gentileza e postura como aliado à causa feminina gera, não conforto, mas inquietação. Os filmes de suspense são caracterizados, no geral, por trazerem uma quebra da atmosfera harmônica da narrativa, o que não ocorre aqui. Na verdade, há um efeito contrário: começamos com um pé atrás e aos poucos descobrimos estarmos certos ou errados perante esse sentimento.

Um outro personagem — A.J Gilbride (Justin Long) — é introduzido à trama e para seu arco, sim, há uma atmosfera de paz que é interrompida. Diferentemente de Tess, não é a situação peculiar de um Airbnb que ocasiona o incômodo, mas a acusação de um estupro. Ele, agressor, tem sua vida abalada como se o elemento estranho e violento fosse sua vítima. Mas tanto sua história quanto a de Tess são narrativas comuns da atualidade.

Embora o feminismo tenha tido diversas conquistas, como a ampliação das oportunidades das mulheres profissionalmente — coisa que também podemos notar através das conversas iniciais de Tess com Keith — ainda existem múltiplas violências sobre as quais debater. Violências estas que nem sempre são explícitas, como o abuso sexual, mas que tornam “ser mulher” uma condição de constante risco. São essas micro-violências que estão por trás do clima de suspense crescente do longa. É o que descobriremos se continuarmos a descida pelas camadas da casa. Mas que fique avisado: o que se encontra é brutal.

Cena de Barbarian
Noites Brutais (Barbarian) | Imagem: Reprodução

Vivendo um sonho

No começo, havia Tess, chegando à noite no Airbnb que alugou. E havia Keith, o moço bondoso que não se importou em ficar com o sofá e deixar o quarto para ela, quando buscaram resolver o conflito dos dois terem alugado o mesmo local. Mas então, há também o porão. E a casa, que parece ser um elemento único, quase que com vida própria.

As crises econômicas e imobiliárias dos Estados Unidos são um tópico importante para o filme, pois são nesses cenários que o “american way of life” (jeito americano de se viver) se desestrutura totalmente em conjunto com a promessa de que os Estados Unidos é o país da liberdade; além da meritocrata, visão do enriquecer e o mundo perfeito das vizinhas de cercas brancas. Há não apenas um viés liberal, mas patriarcal e racista nessa visão de mundo. Quando as pessoas começam a notar o quão frágil é a lógica desse sistema, esse sonho começa a se deteriorar.

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O que também está deteriorado, como descobrimos, é o bairro em que se localiza a casa que é cenário para o, filme. Entretanto, ao descobrir que o bairro está abandonado, Tess permanece. Embora seja avisada, não apenas por uma outra mulher, mas por um homem — negro, como ela — para sair dali o mais rápido que pode.

A casa, ainda estável, mesmo com o restante do bairro deteriorado, indica que o sonho americano ainda vive. E indica, consequentemente, que essa estrutura social, que violenta minorias em nome de uma suposta liberdade, ainda está firme e forte nesse país. Mas não apenas lá, como sabemos, mas em diversos países em que o capitalismo deixou seus rastros. E Tess foi avisada para deixar aquele lugar.

Georgina Campbell interpreta Tess em Noites Brutais (Barbarian)
Georgina Campbell interpreta Tess em Noites Brutais (Barbarian) | Reprodução

“Nem todo homem, mas sempre um homem”

As figuras masculinas de Noites Brutais são os verdadeiros monstros. Mas dizer isso é ignorar a estrutura citada anteriormente. Por quê? Porque mesmo se tratando de uma ficção, homens como esses existem, e não são “monstros”, mas homens de carne e osso, reais, humanos e terríveis. Ao explorar a casa, a única que ainda está intacta, Tess descobre uma entrada no porão, que leva a corredores e mais corredores. Passagens obscuras no interior de uma construção limpa e bonita.

Os elementos usados são sugestivos: uma câmera em um quarto minúsculo e sujo, paredes com marcas de sangue, jaulas. A imagem de pessoas mantidas em cativeiro não demora para se formar na nossa imaginação. E queremos que aquele desconforto acabe logo, que Tess suba, dê meia-volta e vá embora. Mas não é o que acontece. Na tentativa de denunciar o que viu, ela conta para Keith mas sua opinião é questionada. Ele precisa ver com os próprios olhos para acreditar na palavra daquela mulher.

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E é nesse momento que, descendo novamente pela porta, porque Keith não acreditou nela, encontramos “algo”. Algo grotesco, violento e assustador. Se o clima de suspense e os diversos elementos situados no porão da casa não foram o suficiente, é nesse ponto que Noites Brutais se firma como um filme de terror. Mas é graças ao uso desse novo ser que o filme pode, ou não, se consagrar como um bom filme de terror.

Bill Skarsgård interpreta Keith em Noites Brutais (Barbarian)
Bill Skarsgård interpreta Keith em Noites Brutais (Barbarian) | Reprodução

Os tipos de violência em Barbarian

Tess escolheu ficar na casa. Escolheu descer ao porão, não uma, mas três vezes. Nas duas últimas vezes, para ajudar os personagens masculinos. Mas será que é de fato uma escolha? Será que podemos nos livrar tão facilmente dos horrores que nos cercam? Ao descobrir a verdade sobre a casa, Tess não consegue partir.

Ao contrário dos homens que ela conhece, ela se solidariza com as vítimas do suposto “monstro” e não abandona aqueles que precisam de ajuda. A luta contra a violência é algo que só interessa aqueles que são afetados por ela. O que fica ainda mais claro quando até os policiais ignoram a denúncia de Tess.

A camada mais superficial do filme indica que a mulher-monstro (ou, apenas, “a mãe”) da casa não é o verdadeiro monstro. Na verdade, seriam os homens. Ela, fruto de múltiplos incestos, ao longo de gerações, é forte e visivelmente agressiva. Mas o homem que lhe causou isso, o dono da casa e responsável por estuprar e sequestrar meninas, prendendo-as no porão, é frágil e debilitado.

Os paralelos entre a vítima como raivosa e o agressor como inocente, incompreendido, são muito interessantes. Contudo, isso se perde um pouco nos últimos minutos do filme, na tentativa de criar um plot twist que comova. Não é um final desastroso – está longe disso – mas tenta encerrar, de alguma forma, todas as questões levantadas ao longo do filme. Questões estas que o próprio filme demonstra não serem simples de resolver.

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A escolha por não apresentar violência explícita contra as mulheres é muito boa, principalmente considerando que o diretor (Zach Cregger) é um homem. No terror, a banalização da violência contra minorias ainda é um problema. No caso de Noites Brutais, toda a violência é concentrada na figura da mulher do porão. Ela também é a responsável por representar o “corpo estranho”, elemento comum desse gênero. Ela é grotesca. Mas no fim, não é. Apenas visualmente. Funciona bem, mas simplifica questões como maternidade compulsória e a repulsão por corpos femininos.

Cena do filme Noites Brutais (Barbarian)
Cena do filme Noites Brutais (Barbarian) | Reprodução

Moral da história de Noites Brutais?

Tess é a única personagem que não morre. Ela rasteja quando os créditos começam e a música é Be My Baby. Não poderia haver uma escolha melhor. A imagem da mulher no porão, que não era um monstro, afinal, fica cravada em nossas mentes. A crueldade das histórias se entrelaça e dá forma a um desenho realmente doloroso de nossa sociedade. Mas é a imagem de Tess, chorando e caminhando, que permite alguma faísca de esperança. Embora tenha matado a mulher que a salvou, ela termina de uma vez o histórico da casa. É uma sobrevivente no meio de tantas outras que se foram.

E o que levar disto, afinal? Todas as histórias precisam de uma moral? Essa não é uma fábula, certamente. E o que se leva é a angústia, o asco, as lembranças de um filme doloroso de assistir, mas que sem dúvida, vale a pena.

Cena do filme Noites Brutais (Barbarian)
Cena do filme Noites Brutais (Barbarian) | Reprodução

A “mãe” é colocada como um monstro. A maternidade é algo asqueroso. Mas não de verdade, não é? O filme segue uma tendência que é representar que o mal não é apenas as coisas nojentas visualmente. O mal é muito mais complexo do que isso. Em referência a Midsommar, podemos dizer que “o mal não espera à noite”. Ele não fica restrito a porões de casas misteriosas. E eles não são como monstros. Eles são o resultado de uma estrutura de dominação que – isso sim – é brutal.

Tess deixa a casa, mas nós ainda estamos nela.

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Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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