Ted Lasso –  3ª temporada: quando uma narrativa nos convence de que tudo vai ficar bem

Ted Lasso – 3ª temporada: quando uma narrativa nos convence de que tudo vai ficar bem

Quando o assunto é Ted Lasso, o comentário mais frequente é o de que se trata de uma narrativa que “dá um calorzinho no coração”. Para quem ainda não teve a oportunidade de se apaixonar pelo universo da série, trata-se da história sobre um treinador de futebol americano que é contratado para treinar um time inglês de futebol.

Tudo faz parte de uma estratégia maquiavélica da dona do time, Rebecca Welton (Hannah Waddingham), que, tendo passado por um divórcio humilhante, pretende usar Ted (Jason Sudekis), que tem pouco conhecimento sobre o esporte, para afundar o AFC Richmond e irritar seu ex marido, o milionário machista e mulherengo, Rupert Mannion (Anthony Head).

Ted é um típico cara família e está atravessando uma dolorosa crise no casamento. Simpático e otimista, o treinador norte-americano chega ao AFC Richmond para subverter todas as lógicas da masculinidade tóxica e competitiva típica do universo futebolístico. Sensível, seu método rejeita cobranças agressivas e investe na compreensão e acolhimento dos integrantes do clube, na tentativa de aumentar a autoestima e a autoconfiança de todos aos seu redor, incluindo sua chefe, Rebecca.

Ted Lasso: Believe

Apesar de bastante maniqueísta – quando os heróis são super bonzinhos e os vilões são muito malvadinhos – como Rupert -, sem muito espaço para linhas de sombra – Ted Lasso, curiosamente, funciona bem.

Acostumados a narrativas distópicas, e, na recente pós-pandemia, ainda lidando com o trauma de uma realidade sombria e mórbida, a verdade é que Ted Lasso, para além do brilhantismo do roteiro, é uma utopia que nos faz desejar fazer parte deste distrito londrino chamado Richmond, onde as pessoas, mesmo quando rabugentas, são gentis e compassivas.

Quem não gostaria de beber um pint de cerveja servido por Mae (Annette Bedland) no pub The Crown & Anchor, e conhecer a culinária nigeriana no restaurante de Sam Obisanya (Toheeb Jimoh)?

Ted Lasso: quando uma narrativa nos convence de que tudo vai ficar bem
Imagem: reprodução

Utopias à parte, o fato é que, apesar da narrativa de superfície, através da qual descobrimos esse lugar de conforto e empatia, repleto de pessoas das quais gostaríamos de ser amigos, as personagens vivenciam, sim, dramas humanos e realistas.

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Roy Kent (Brett Goldstein), por exemplo, precisa aprender a lidar com o envelhecimento da perspectiva de sua carreira de atleta; Jamie (Phil Dunster), a ser menos ególatra e a se reconciliar com um pai alcoólatra e abusivo; Nate (Nick Mohammed), a fortalecer sua autoestima e seus laços afetivos, e Keeley (Juno Temple), por sua vez, a provar que possui muitos outros talentos além da beleza, como inteligência, criatividade e um olhar aguçado para os negócios.

As trajetórias afetiva e profissional de Keeley, por sinal, e a construção de sua amizade com Rebecca são alguns dos pontos altos da série, pois apesar de a narrativa girar em torno do clube de futebol, também empresta relevância para questões relativas ao feminino, como objetificação e sororidade. Além disso, Keeley traz uma importante contribuição para a representatividade LGBTQIA+, ao se envolver com Jack (Jodi Balfour), a financiadora de sua empresa, revelando-se bissexual.

Mas, e quanto a Ted? O que podemos aprender com um personagem que parece um ser humano sem defeitos e que resolve todos seus problemas na base da compreensão, empatia e respeito?

Hannah Waddingham (Rebecca), Jason Sudekis (Ted Lasso e Juno Temple (Keeley) em evento promocional da Apple TV+
Hannah Waddingham (Rebecca), Jason Sudekis (Ted Lasso e Juno Temple (Keeley) em evento promocional da Apple TV+| Imagem: reprodução

Football is life!

Na segunda temporada, entra em cena a Dra Sharon Fieldstone (Sarah Niles), especialista em psicologia do esporte, que chega com a missão de auxiliar Dani Rojas (Cristo Fernández), o alegre e entusiasmado jogador de origem mexicana, do trauma de ter acertado fatalmente o cãozinho mascote do time durante a cobrança de um pênalti. Através da interação de Ted com a Dra Sharon, descobrimos que Ted é vítima de um poderoso trauma de abandono: o suicídio do pai.

Pessoas que possuem trauma de abandono ou são educadas por pais ausentes ou narcisistas frequentemente carregam consigo um forte sentimento de culpa e uma necessidade impulsiva de agradar aos outros no intuito de provar que são dignas de afeto. São indivíduos que negligenciam as próprias necessidades em favor das necessidades dos outros e têm dificuldade de dizer não.

No caso de Ted, apesar de a generosidade ser um traço positivo e marcante de sua personalidade, algumas vezes nos perguntamos se suas reações não seriam excessivamente passivas, como, por exemplo, quando Rebecca revela tê-lo contratado com o objetivo de vê-lo falhar e ele a perdoa com a rapidez e facilidade de um monge zen budista. Entretanto, o que mais surpreende, em relação à capacidade do treinador de não se abalar com eventuais atitudes, no mínimo questionáveis, de seus amigos e colegas de trabalho, é sua falta de reatividade em relação à traição de seu treinador assistente.

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Ted Lasso representando o AFC Richmond em coletiva de imprensa.
Ted Lasso representando o AFC Richmond em coletiva de imprensa | Imagem: reprodução

Quando Nate revela à imprensa sensacionalista que Ted vem enfrentando crises de pânico, Ted permanece impassível. No mundo do futebol masculino, é esperado que um treinador, sujeito em posição de liderança, seja competitivo e tenha sangue frio diante da adversidade – o típico macho alpha – ou seja, o golpe de Nate é não apenas desleal, mas cruel, expondo a intimidade de Ted ao público e a seus rivais, justamente quando ele se encontra mais vulnerável. A passividade de Ted nos faz pensar que sim, é louvável pagar de bigger person, mas até que ponto a falta de reatividade de Ted é uma resposta ao trauma do abandono?

A resposta está no próprio roteiro. Em determinado momento, Ted questiona sua capacidade para ser um bom pai, possível reflexo do medo recalcado de não ter sido um bom filho, e os ataques de pânico são um sinal de que não, ele não é inabalável, ou seja, não se trata de um personagem exageradamente romantizado, mas humano, com sua alegria de fachada e suas feridas subterrâneas.

Finalmente, após ter encontrado o sucesso como treinador, Ted volta para junto da família, para interromper a trajetória cíclica que o faria repetir o trauma do abandono no próprio filho, o que mostra um personagem amadurecido e mais humano.

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O jogador veterano Roy Kent, interpretado por Brett Goldstein
O jogador veterano Roy Kent, interpretado por Brett Goldstein | Imagem: reprodução

A masculinidade tóxica e heterotópica, com o perdão do trocadilho, também é posta à prova quando a orientação sexual do jogador Colin Hughes (Billy Harris) causa impacto no capitão do time, Isaac McAdoo (Kola Bokinni).

McAdoo tem uma reação negativa ao descobrir que Collin é gay e acaba se envolvendo em um atrito com um torcedor que o chamara de fag. O time desconfia que o capitão se alterara por ele próprio ser gay e Collin decide sair do armário diante de toda a equipe, que o acolhe dizendo “nós não nos importamos se você é gay”. É então que Ted dá um de seus discursos inspiradores, em um dos momentos mais tocantes da série:

Nós nos importamos muito, nós nos importamos sobre quem você é e sobre o que você deve estar passando.

A partir de agora, você não precisa enfrentar isso sozinho.

Nada mal para um papo de vestiário de time de futebol.

Estrelada por Jason Sudekis e programada desde o início para durar três temporadas, Ted Lasso bateu recorde por ser a primeira série estreante a receber 20 indicações ao Emmy. Exibida pela Apple TV +, o último episódio da série foi veiculado no dia 31 de maio de 2023.

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Gaúcha de Porto Alegre radicada em Curitiba. Sou professora de Filosofia e doutoranda em Teoria Literária pela UFPR. Gosto de cultura greco-romana e cultura pop. Tenho dois gatos e tento não matar minhas plantas. Vou até onde as pernas aguentam de bicicleta.
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