Stardust – O Mistério da Estrela: o conto de fadas de Neil Gaiman

Stardust – O Mistério da Estrela: o conto de fadas de Neil Gaiman

Algumas coisas se tornam especiais quando estão prontas; outras se tornam especiais muito antes. Stardust: O Mistério da Estrela é o que Neil Gaiman chamou de “a continuação de um romance que não escrevi e que não tenho certeza se chegarei a escrever” e, portanto, deve sua existência a um mundo que nunca se concretizou. Esse trânsito entre existir e não existir parece condizer com a própria matéria do livro: a história de um rapaz que rouba uma estrela para encantar o amor de sua vida é uma ponte entre o ficcional e o real.

Entre o que existe no mundo das ideias e aquilo que se concretiza ao atravessar uma Muralha ou escrever palavras em uma folha. Ou ilustrar tão belas figuras, o que fez Charles Vess em uma edição ilustrada do livro. Ou, talvez, filmar imagens. Afinal, Stardust também possui uma adaptação para os cinemas, a qual, à maneira de sua própria arte, também retrata como o fantástico se materializa para nós e qual efeito ele pode ter em nossas vidas.

A magia da escrita e a coletividade da literatura

O autor conta que comprou uma caneta-tinteiro para escrever esse romance, porque parecia uma boa ideia escrever um livro dessa forma. Talvez, nos tornemos mais íntimos do que colocamos no papel se o sentimos em nossas mãos.

De qualquer forma, a intimidade é essencial para colocar no mundo físico um mundo tão vasto que se desenvolveu apenas em um imaginário. Mas a magia de Stardust está, dentre outras coisas, no fato de que a história mistura magistralmente elementos fantásticos extraídos da Era Vitoriana.

Há menções diretas sobre o que acontecia no mundo dos humanos naquele período da história: “A rainha Vitória ocupava o trono da Inglaterra, mas ainda não era a viúva trajada de negro de Windsor. Tinha as bochechas rosadas e caminhava com energia.” (p.11) ressaltando que essa história, embora um quase conto de fadas, possuía um pé no real.

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A constante transição entre os sonhos e a realidade é um tema recorrente no trabalho do autor, basicamente o que move toda a narrativa de Sandman, um de seus trabalhos mais significativos. O que se torna ainda mais interessante é notar que esses sonhos – as ideias que constroem esse mundo com unicórnios, bruxas, estrelas que caem do céu e se parecem com humanos – não se formam apenas da visão de Gaiman.

Ao contextualizar seu livro na mesma época em que Charles Dickens publicava Oliver Twist, ele torna essa história parte de algo possível. Ao incorporar elementos fantásticos tão popularizados pelos contos de fada, ele faz desta história algo coletivo. É como se, na verdade, a história sempre tivesse existido, e a partir da tinta de sua caneta, ela pudesse ser redescoberta por outros.

O mistério da estrela: Stardust

O amor verdadeiro!

Dunstan Thorn se apaixona. E esta história é, por si só, interessantíssima. Primeiro, porque temos pistas de que não se trata de uma história infantil, apenas porque se baseia em contos de fadas. De fato, assim como os outros livros do autor que possuem crianças como protagonistas, Stardust tem passagens que beiram o terror.

Além desse detalhe na escrita, é também interessante porque, embora seja o começo de uma história, não é o começo da história do livro. Isso remete a um estilo narrativo que remonta aos tempos anteriores ao romance burguês. Dunstan não é o protagonista, mas também não é Tristran, embora seja ele que acompanhamos na maior parte do livro.

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O fio condutor da obra é a paixão por coisas impossíveis. Seja Dunstan apaixonado pelo desconhecido, seja Tristran apaixonado pela mulher que não o ama. As inúmeras referências a corações no livro são detalhes que ajudam a perceber isso.

Afinal, a jornada de Tristran é uma busca para conquistar o coração da amada, e para isso, conquista outro coração, literalmente e metaforicamente, uma vez que o coração da estrela era requisitado pelas bruxas. É a paixão que leva os dois homens a saírem do mundo real e se transportarem para o mundo encantado que existe além da Muralha.

Ilustrações de Charles Vess para a edição ilustrada de Stardust
Ilustrações de Charles Vess para a edição ilustrada de Stardust

Stardust poderia ser lido como uma história de amor do tipo romântico, mas não se limita a isso. Apaixonar-se é retratado como parte da inocência. O amor puro é o que torna a dupla de “protagonistas”, Yvaine e Tristan, tão cativante. Esse amor torna suas motivações sinceras em um mundo cheio de perigos e maldades. É uma fórmula clássica, mas aplicada de forma magistral, o que torna o livro verdadeiramente precioso.

Stardust – O Mistério da Estrela (2007)

Falando sobre a importância do amor na construção do livro, o ponto alto do filme é, sem dúvida, o desenvolvimento da relação entre Yvaine e Tristan.

No livro, essa evolução ocorre de forma gradual, e quando percebemos, eles já estão juntos. Parece que o autor esconde os sentimentos dos personagens por trás dos encantamentos dos quais fala. A magia que permeia a obra funciona como um disfarce para o amor.

Como o filme não tem os mesmos recursos, precisa aproveitar as cenas em que os personagens interagem para demonstrar, através de olhares, que estão se apaixonando.

Stardust - O Mistério da Estrela (2007)
Stardust (2007) | Imagem: Reprodução

As mudanças que o roteiro traz nessa parte da narrativa valem a pena, pois transmitem de outras maneiras, além das palavras, aquilo que fica subentendido no texto. Grande parte disso se deve ao excelente trabalho de Charlie Cox e Claire Danes. Robert De Niro também se destaca como Capitão Shakespeare.

A aparição desse último personagem, tanto no original quanto na adaptação, é um momento de alívio para os personagens. No filme, o roteiro decide usá-lo como uma quebra de expectativas em relação à masculinidade esperada de um capitão pirata. Isso segue a ideia original, mas leva o filme a um tom um pouco mais jocoso.

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Por fim, o final do longa difere um pouco do original. Enquanto o filme apresenta o “final feliz” clássico associado aos contos de fada, o livro fecha o ciclo e volta-se novamente para o mundo real.

Felizes para sempre?

Tristran e Yvaine foram felizes juntos. Não para sempre, pois o Tempo, esse ladrão, acaba levando tudo para seu depósito empoeirado, mas foram bastante felizes, na medida do possível. E então uma noite a Morte chegou e murmurou seu segredo no ouvido do octogésimo segundo Senhor da Fortaleza da Tempestade.”

Stardust (2007)
Stardust (2007) | Imagem: Reprodução

Tristran, mesmo apaixonado por uma estrela, é mortal. Por mais que flertemos com mundos imaginários, não podemos nos esconder do tempo ou da morte. No entanto, podemos enganar o esquecimento. Yvaine continuou se lembrando de Tristran, e Neil Gaiman contou a história deles. Essa história foi impressa, tornou-se um filme e hoje é relembrada neste breve texto.

O que Stardust traduz é que os seres humanos se apaixonam e sonham com coisas fantásticas porque isso os ajuda a superar as limitações de um mundo repleto de pobreza e finitude. A escrita é essa coisa quase mágica que conecta os dois mundos e que só se constrói em conjunto. Não é uma solução definitiva, nem poderia ser. Mas o ciclo de sonhos continua, na humanidade, ao longo do tempo.

As citações são da edição da editora Rocco.

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31 Textos

Estudante de Letras na Universidade de São Paulo, apreciadora de boas histórias e exploradora de muitos mundos. Seus sonhos variam entre viajar na TARDIS e a sociedade utópica onde todos amem Fleabag e Twin Peaks.
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