Bem-vindo a “The Witcher“. Lar de homens motivados pela ganância, terra daqueles que agora dominam o Continente. Não de forma pacífica, pois isso desafiaria a ordem natural dos humanos e seres vivos, incapazes de conter o impulso pelo poder que murmura em seus ouvidos todas as noites antes de dormir, e pela manhã, ao acordar. Suas mãos, punhos e planos afundam em sangue, que mancham a história retroativamente, desde a época dos Altos Elfos. E mesmo os Elfos travavam suas próprias batalhas, cantavam suas próprias canções, viveram em glória e definharam pela ganância de tantos povos incapazes de coexistir.
Sempre há uma escolha, e ela foi feita, geração após geração, arruinando alguns e erguendo outros. Transformando a magia. Alinhando o indivíduo comum em algum lado que ele escolheu ou não – pois toda ausência de escolha acaba sendo uma decisão. É nesse mundo que as baladas das aventuras sobre Geralt de Rívia ressoam nos salões em “The Witcher”, cantadas por um bardo de coração bom que se diz seu melhor amigo e recentemente transformadas em série pela Netflix.
Geralt de Rívia
O Lobo Branco. O Carniceiro de Blaviken. O Açougueiro de Blaviken. Dependendo da tradução, você encontrará diferentes alcunhas para Geralt de Rívia (Henry Cavill). Independente do título que lhe for concedido, o Witcher sempre desafia as expectativas. Para quem esperava um protagonista no protótipo virtuoso herói americano, encontrou a série errada. Debaixo de toda química que o impede de reproduzir sentimentos de maneira natural, existem inúmeras nuances e capacidade de empatia navegando entre a espada e o homem que a empunha.
Vamos especificar aqui um detalhe talvez não explicado com minúcia pelo seriado: Witchers em potencial são recolhidos quando criança e levados para seu treinamento. Geralt foi para Kaer Mohen ainda criança, assim como outros garotos de sua idade, porém, a maioria não sobreviveu ao Teste das Ervas. Trata-se, em termos neutros, de uma experiência química submetida ao corpo dos candidatos – na verdade, tem mais proximidade com uma tortura. Infusões são injetadas e são elas que expandem o usuário para que ele seja capaz de reproduzir “sinais mágicos”. Esses sinais são aqueles movimentos realizados por Geralt de “repelir” ataques com o que parece um escudo telecinético, dentre outros elementais.
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Witchers não conseguem ter o controle da magia em sua forma caótica pura, sendo seu foco o de aprimoramento corporal: resistência a poções, força, alto nível de estamina, entre outros detalhes que podem ser vistos em ação na série da Netflix. Nada disso impede o bruxo de se apaixonar perdidamente pela feiticeira de Yennefer (Anya Chalotra) ou de se convencer, ao fim, que proteger e ensinar Ciri (Freya Allan) está em seu futuro. Além disso, as infusões em seu corpo também não o impediram de formar um laço de amizade com Jaskier (Joey Batey), o bardo dono das cenas mais engraçadas da série. Portanto, Geralt é um andarilho que vai encontrar seu lugar no mundo e descobrir uma surpresa: pertence à pessoas, não lugares ou moedas de ouro. Mesmo a contragosto, exibindo sua consternação frequentemente e teimosia, ele acaba sempre tocado por moradores de vilarejo e companheiros de viagem.
Lilás, Groselha e Caos
As mulheres em The Witcher pertencem a um mundo que muitas de nós gostaríamos de fazer parte ou ter crescido assistindo. Nesse universo onde os homens regozijam em guerra, o poder é conferido ao feminino sem que seja revisto, sem vestígio de dúvidas. Sua força é exercitada sem dar espaço para questionamentos. Seus interesses são tão válidos quanto os dos homens ao redor. Claro, não é um mundo fácil. Os cantos do bardo entoam baladas de felicidade, mas também de tristeza, luto, e batalhas sem fim. Como Yennefer de Vengerberg menciona, seu universo é de dor. Mas suas ambições, sonhos e agência, inegáveis.
A feiticeira predileta de Tissaia (Anna Shaffer) vive numa incansável busca pelo direito de escolha que não é interrompida por ninguém – qualquer um prezando por sobrevivência, não ousa atrapalhar os planos da feiticeira mais alinhada com o Caos que o Continente tem para oferecer. Dentro de Yennefer, sob o bálsamo de lilás e groselha, existem várias mulheres. Infinitas camadas expõem fragmentos de suas emoções, uma por vez. E cada uma dessas mulheres têm o direito de aparecer, enquanto nós temos o privilégio de vislumbrar uma das personagens mais conscientes de seus defeitos e focada na própria trajetória que o mundo da fantasia audiovisual construiu na memória recente da cultura popular.
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Yennefer não apenas é guiada pela sede de poder, como pelo princípio básico da escolha e o desejo incontrolável de pertencer. Ela quer direitos sobre o seu próprio corpo e a habilidade de exercer seus dons sem os desperdiçar numa corte, eventualmente esvaziados pelas mãos de um Rei decadente ou autoritário. E mesmo com todos os seus defeitos cortando-lhe a pele e transbordando em suas emoções, ela é amada. Amada quando vulnerável, ambiciosa, sensível, manipuladora, resiliente e sem dobrar-se para ninguém. Um detalhe que para muitos pode não ser importante, mas quem viveu uma vida presa aos moldes de comportamento social do “sorria e seja dócil” encontra em Yennefer uma fuga e a resposta: é possível encontrar o amor quando somos nós mesmas.
Mais importante ainda é lembrar que as mulheres merecem esse amor independente do que pensam. Assistir a uma obra tomada pela violência, magia e guerra, enquanto tantas mulheres assumem papéis de importância, é um alívio no coração da espectadora. Ela não mais espera ser salva. Não mais teme por sua sobrevivência. E sabe que pode se envolver com aquelas mulheres sem que elas sejam cortadas da série de forma grotesca. Aqui, vemos muito do cuidado que Lauren Hissrich teve durante o desenvolvimento do seriado: desde sua proposta para a Netflix, a produtora deixou claro que esta não seria uma obra focada apenas em Geralt, mas também no feminino.
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Em um universo composto por infinitas criaturas mágicas, as mulheres detém os maiores poderes em suas mãos. Mesmo que esse poder traga consigo um peso aos seus ombros, a magia delas é vista como ameaça pelos homens mundanos. Feiticeiras vivem em cortes, servindo aos membros das famílias reais, e fazem da política o seu jogo de marionetes. Dessa maneira, “The Witcher” triunfa ainda por suas análises políticas paralelas com nosso mundo.
The Witcher: uma narrativa que atravessa o tempo
Motivo de controvérsia durante a primeira temporada, “The Witcher” não apresenta seus eventos de maneira linear. Existem três linhas cronológicas diferentes, onde cada uma acompanha um personagem distinto até que os três protagonistas se encontram no presente.
A princípio, pode ser confuso para a espectadora que não leu os livros, ter a tarefa de localizar quando se passam os eventos mostrados na tela – e como televisão e livros são duas mídias diferentes, a série deveria tornar mais claro seus rituais de passagem. Entretanto, acaba não sendo algo que prejudica seu entretenimento ou o resultado final, pois conforme os episódios vão passando, percebemos a jornada caminhando numa só direção: em frente, rumo ao Destino. Geralt, Yennefer e Ciri são destinados um ao outro, e a primeira temporada é dedicada ao entendimento disso e o derradeiro encontro entre o bruxo e a princesa de Cintra. Além disso, os acontecimentos em Aretusa (academia das feiticeiras) antecedem os demais, enquanto Geralt transita no meio e, por fim, temos a tomada de Cintra seguida pela fuga de Ciri.
A season finale trouxe consigo o fim do desalinhamento cronológico, sendo esse elemento algo para não se preocupar na sequência de 2021. De acordo com os livros, de agora em diante iremos seguir o desenvolvimento da guerra e as consequências que o Destino traz para Geralt e a leoazinha de Cintra.
Espadas, feitiços e sangue
A construção das batalhas, duelos e momentos de perigo que passam ao longo dos episódios constituem um ponto muito alto. As coreografias são gravadas por câmeras que acompanham os movimentos dos duelistas, resultando naquela que já virou a predileta de muitos: a luta entre Renfri (Emma Appleton) e Geralt. O duelo foi elogiado nas redes sociais tanto pelo público quanto por profissionais de coreografias e até mesmo quem maneja espadas reais.
Como pequena curiosidade, vale a pena mencionar o fato de Henry Cavill ter participado de todas as gravações do personagem, dispensando qualquer dublê. Isso pediu empenho reforçado nos treinamentos, mas o ator excedeu as expectativas e nos trouxe seu Geralt de Rívia para as telas como tanto queria.
Contudo, nem só de bruxo solitário vivem os entraves no Continente, não quando Yennefer de Vengerberg precisam lidar com o Caos borbulhando dentro de si, além de uma verdadeira guerra dividindo o Conselho dos feiticeiros. Lilás e groselha aromatizam não apenas belos salões, como levam para a morte criaturas poderosas, em sequências onde ela corre, levanta a saia, se suja de lama, grita seus comandos a plenos pulmões e não hesita em mostrar seu poder.
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É extremamente satisfatório ver o desempenho de mulheres como Yennefer, Fringilla (Mimi Ndiweni) e Calanthe (Jodhi May). As três representam lados antagônicos na guerra, cada uma tem suas diferentes motivações, mas em momento algum o show parece tratar uma ou outra como menor. Em “The Witcher”, personagens são movidas por objetivos passionais ou não, almejando total poder ou… Algo mais íntimo, como encontrar ou proteger sua família. Ou ser importante para alguém.
Representação na Fantasia
Yennefer. Fringilla. Cirilla de Cintra. Triss Merigold (Anna Shaffer). Calanthe de Cintra. Tissaia de Vris. Sabrina. Renfri. Essas são apenas algumas das mulheres cujo as linhas de sua vida não são tecidas ao redor do protagonista homem. Todas elas tem agência própria, fazem suas escolhas e pagam por elas – ou levam a melhor. Há muito não víamos tantas mulheres reunidas numa mesma obra, e a elas sendo entregue o poder de transformar o mundo sem que algum homem dentro da narrativa questione sua força ou merecimento. Vale a pena mencionar que nos livros temos ainda menos personagens masculinos no cerne da magia.
Mas não apenas disso vive a representação da série, sendo ela repleta de mudanças que despertaram a fúria dos usuários de fóruns (ex: Reddit). Vamos começar por Fringilla Vigo, personagem interpretada por Mimi Ndiweni no seriado, a qual as páginas lançadas na década de 90 retratam como uma jovem pálida de olhos claros. A mudança para a adaptação Netflix foi muito bem vinda e as reclamações dos “fãs” da obra original não deram em nada, sendo que Fringilla ainda ganhou uma extensão de suas competências no livro para agora estar mais perto da sua maior rival: Yennefer. O roteiro da série, falando sobre desenrolar do relacionamento entre elas, consegue ser mais satisfatório que o do livro.
Isso porque a competição entre as feiticeiras, nos livros, não é alimentada por política e poder da forma mostrada na série, tendo foco numa disputa emocional. Enquanto no audiovisual, temos duas mulheres poderosas, antagonizadas por suas escolhas diferentes na vida, mais similares do que pensam: afinal, nenhuma delas pede desculpa ou sente remorso por querer o melhor para si e buscar seus objetivos.
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E não somente Fringilla foi alvo das declarações racistas online, como também as dríades. Para essa camada ignorante, as reclamações sobre veracidade de um universo fantástico (onde dragões existem) são válidas, mesmo quando não passam de lamúria repleta de preconceitos (internalizados ou não). Mesmo a escolha de Anya Chalotra (Yennefer de Vengerberg) foi massivamente criticada por aqueles desejando uma mulher com características semelhantes à sua versão dos jogos da CDPR; também sendo alvo de críticas iniciais a decisão de dar um dos pontos de vista para Yennefer, pois os protagonistas dos livros são Geralt e Ciri.
Mas a produção da série não parece se importar com esse tipo de consternação, uma vez que compreendem que tais mudanças são necessárias para atualizar o livro, produto de seu tempo e autor. Aliás, autor esse que já declarou em entrevistas estar plenamente satisfeito com a série e suas adaptações. Andrzej Sapkowski é conhecido por suas falas polêmicas, mas sobre a série, foi apenas elogios, sendo ainda um dos consultores oficiais da primeira temporada.
The Witcher retorna apenas em 2021
Apesar do sucesso gigantesco que a série teve na plataforma de streaming, o retorno vai acontecer somente ano que vem. Especulações vieram se deve ao fato de terem um provável bom aumento na verba liberada para sua realização, assim como suas localizações serem divididas pela Europa. Nesse ínterim, os produtores têm o período ideal para rever alguns pontos mais fracos, como os efeitos especiais e caracterização em certos episódios. Olhando por ângulo otimista, o sucesso deve garantir uma segunda jornada feita com mais primor.
O próximo desdobramento da história também deve finalmente entregar a Ciri seu devido papel em tudo isso, pois a mesma, quando a guerra eclode, não sabe a trama na qual está envolvida desde seus ancestrais. Para aqueles que leram os livros, devem imaginar o quanto espaço em tela e desenvolvimento de personagem está prestes a acontecer, sendo agora apenas uma questão de espera e torcida para que continuem tratando com sensibilidade a jornada dessa família prestes a ser formada: um bruxo, uma feiticeira e uma princesa órfã, destinada a grande feitos.
Preparem os bolsos e trocados para o lobo de Rívia, pois sua aventura apenas começou.