Olhos D’Água é uma obra de Conceição Evaristo lançada em 2014 pela Pallas Editora. Contando com 116 páginas, o livro é uma coletânea de contos da autora que abordam temas relacionados à vida cotidiana, mas centrados nas vivências e experiências de pessoas negras, com especial destaque para as mulheres.
A realidade não é mais branda na escrita de Conceição Evaristo, muito pelo contrário; a autora faz questão de demonstrar, sem cortes ou fantasias, como é a realidade – externa e interna – de uma pessoa negra e marginalizada no Brasil.
“A cor dos olhos de minha mãe eram cor de olhos d’água”
O conto que dá nome ao livro é o primeiro que lemos. Trata-se da história de alguém que, ao tentar lembrar da cor dos olhos de sua mãe, mergulha em sua própria história e deixa de ser apenas agente/filha para também ser agente/mãe, protetora e conhecedora de sua origem.
A sensibilidade da água, assim como a sua fúria, é quase como que – literalmente – um rio permeando as histórias contadas, quase como que narradas de uma notícia de jornal, por Conceição Evaristo.
Mulheres/mães, mulheres/filhas, mulheres/amantes, mulheres/amadas, mulheres como são e como se sentem. Ao criar personagens e narrativas, Evaristo nos conta um pouco de si, um pouco de sua própria história de luta e superação ajudada por outras mulheres e homens, em busca de sobreviver nessas sociedades desiguais.
Em suas próprias palavras: “Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu-agora a puxar um eu-menina pelas ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con (fundem), sigo eu nessa escrevivência…”
A crueldade pode viver lá fora, mas a ternura também é uma forte personagem
As desigualdades sociais são o ponto central dos contos de Olhos D’Água. Nas situações que fazem parte do cotidiano – e nem por isso devem ser consideradas como banais -, como um assalto a um ônibus, a vida como pessoa moradora de rua, uma criança que se perde da sua família em meio a um tiroteio na favela, além de fome, miséria, desespero, desamparo.
Pois bem, tratar desses temas não é novidade. Há muito tempo homens brancos privilegiados têm feito tentativas – infelizmente louvadas – de retratar outras realidades que não as suas com a destreza de uma criança que aprendeu a fazer o primeiro desenho. É por isso que devemos, mais uma vez, falar sobre a escrevivência de Conceição Evaristo.
A autora, muito mais do que retratar a dureza do mundo nos crimes, nas desigualdades, nas violências, a partir de grupos sociais historicamente violados – as pessoas negras, as mulheres –, tem a genialidade de usar as palavras para nos mostrar que essas “personagens reais” não são apenas vítimas, mas principalmente protagonistas de suas próprias histórias.
Ao mesclar pensamentos com diálogos, Conceição nos mostra a complexidade da existência. Toda personagem é, em si mesma, uma narradora da própria narrativa que tem sonhos, paixões, medos, raivas, amores, desamores e prazeres. Isso quase que não é novidade. O diferente é, mais uma vez, a forma de demonstrar a sexualidade, mesmo quando a sociedade tenta impor padrões fechados e sem discussões.
O dedo na ferida de uma sociedade que sangra
São 116 páginas que colocam o dedo na ferida de uma sociedade que sangra. E aqui peço licença para dizer isso em primeira pessoa, mas Olhos D’Água de Conceição Evaristo foi um tiro no estômago do meu privilégio de mulher branca – e mesmo passando por dificuldades e preconceitos, a minha a realidade de apartamento nunca será igual à realidade de tantas Marias, Anas, Natalinas, Luamandas e Cidas presentes em Olhos d’água.
Portanto, pessoa branca que me lê, não leia apenas a mim falando sobre Conceição Evaristo. Leia Conceição Evaristo falando sobre uma realidade que nós nunca conheceremos e que se nós fizermos nossa parte – lembrando que não adianta não sermos racistas, precisamos mesmo é sermos antirracistas – poderemos começar a reparar os tantos erros de uma sociedade que ainda está despedaçada, mas que, com outras e outros trilhando o mesmo caminho de Evaristo, ainda poderemos ter esperança no futuro.
O Delirium Nerd é integrante do programa de associados da Amazon. Comprando através do link acima, ganhamos uma pequena comissão e você ainda ajuda a manter o site no ar, além de ganhar nossa eterna gratidão por apoiar o nosso trabalho.
Uma adolescente emo virou uma hipster meio torta que sem saber muito bem o que fazer, começou jogar palavras ao vento e se tornou escritora e tradutora. Também é ativista dos direitos humanos. Além disso é lésbica, Fé.minista, taurina. E, principalmente, adoradora de gatos e de café.