Round 6 e Alice in Borderland: o fenômeno das obras de death games

Round 6 e Alice in Borderland: o fenômeno das obras de death games

Okja (2017), Parasita (2019), A Despedida (2019) e Minari (2020) são algumas películas do leste-asiático que conquistaram a atenção do público ocidental nos últimos anos. Tal público, talvez saturado da narrativa norte-americana e eurocêntrica de contar histórias, encantou-se pelos roteiros, fotografias e poesia por trás dessas obras asiáticas, que com o passar dos anos vem ganhando mais espaço e público.

Se antes o já citado público ocidental tendia a reduzir a Ásia a seus desenvolvimentos tecnológicos e animes e mangás, agora tal público se mostra mais disposto e curioso a desfrutar das possibilidades infinitas que o audiovisual asiático tem a nos oferecer.

Youn Yuh-Jung recebendo o Oscar por "Melhor atriz coadjuvante" em Minari (2020)
Youn Yuh-Jung ganhou o Oscar por “Melhor atriz coadjuvante” por seu papel em Minari (2020) | Via: O Globo

A mais recente prova disso foi o sucesso indiscutível e absoluto da Netflix, Round 6 (2021) – e em outros países, Squid Game – que, em menos de um mês de lançamento, tornou-se o programa mais assistido da história da plataforma, contabilizando mais de 140 milhões de plays mundialmente. O recorde anterior pertencia à série britânica Bridgerton (2020), que contava com “apenas” 80 milhões de plays.

Mas qual foi o diferencial de Round 6, que estreou em 16 de setembro de 2021 de maneira tão despretensiosa, que tornou capaz todo esse sucesso? Além disso, que outras obras, como o caso de Alice In Borderland (j-drama, de 2020, também da Netflix), trouxeram de novo para atrair tanta popularidade?

O que são death games e como se constrói a sua narrativa

Round 6 conta a história de Seong Gi-Hun (Lee Jung-Jae) e sua trajetória, após se abordado por um misterioso homem (interpretado por Gong Yoo) no metrô, ao embarcar em uma misteriosa e secreta competição para ganhar um prêmio avaliado em 44 bilhões de wons (na atual cotação, cerca de 222 milhões de reais).

Seong Gi-Hun tem 40 anos, é divorciado e está a um passo de perder contato com a filha. Ele não consegue arranjar emprego algum e está afundado em dívidas, tanto com o banco quanto com a máfia coreana, então essa oferta se mostrou indispensável.

Seong Gi-Hun aguardando os jogos iniciarem em Round 6
Seong Gi-Hun aguardando os jogos iniciarem. | Via: Netflix

Contudo, se o convite no metrô era uma brincadeira inocente de criança, os jogos das competições se mostraram mais complexos – e mortais.  Apresentado em um cenário colorido e meigo, com o objetivo específico de criar uma aura infantilizada, os jogos de Round 6 são inspirados em brincadeiras infantis, como batata-quente e cabo-de-guerra, mas os eliminados são literalmente eliminados quando perdem. Ou seja, mortos.

Assim, o nosso protagonista precisa lutar pela sua própria vida, matando ou fazendo terceiros morrerem. Antes, se entenderia como vitorioso aquele que conseguisse o prêmio de bilhões de wons, agora, o verdadeiro vencedor seria aquele que saísse com vida ao final do jogo.

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Não somente Seong Gi-Hun, mas os outros demais competidores também se encontram em um cenário afundados em dívidas e, por isso, apresentam-se tão dispostos a competirem por aquele dinheiro.

Agora pensemos: esse cenário, em que as pessoas são colocadas dentro de um ambiente (jogo) em que devam se digladiar até a morte, tendo um prêmio ou não para receber, além de conseguirem a própria sobrevivência, sem outra opção de saída, não soa similar a outras histórias?

É o caso de Jogos Mortais (2004) e Jogos Vorazes (2012), dois fenômenos cinematográficos que apresentam esta aura narrada acima: pessoas são condicionadas a um jogo que vale suas vidas. Em Jogos Mortais, elas entram de maneira “aleatória” e em Jogos Vorazes, é uma obrigação praticamente civil. Dentro da narrativa do leste-asiático, podemos encontrar alguns animes nessa mesma estrutura, como Danganronpa (2013) e Mirai Nikki (2006-2010).

Jogos Mortais | Via: divulgação
Jogos Mortais | Via: divulgação

Todas essas obras podem ser categorizadas como death games que, em tradução literal, seriam “jogos mortais”, ou seja, obras que tragam no enredo essa proposta. Há quem considere como obra raiz dessa categoria o livro Battle Royale, do autor Koushun Takami, lançado em 1999. A história de Takami apresenta o evento anual de escolas japonesas que enviam turmas cheias de alunos para se matarem em uma ilha. Se não a primeira, essa foi pelo menos a obra que trouxe maior visibilidade sobre o tema.

No vídeo abaixo, a Mikannn explica um pouco mais sobre o conceito de death games e suas projeções no audiovisual:

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Com a ascensão de Round 6, foi inegável a busca por mais obras similares a esta e, como foi comentado no início do texto, o público ocidental se interessa por obras fora do eixo Europa e América do Norte. Então, surgiu como indicação imediata, Alice in Borderland, drama japonês que, na clássica narrativa de death games, explora a luta de Arisu e seus amigos de sobreviverem em Borderland.

Foi um perfeito exemplo de “se você gostou de, vai gostar de”; a questão é que muitas pessoas acabaram criando inúmeras comparações em relação aos dois dramas. Afinal, por serem da mesma categoria e por serem asiáticos, a busca para saber se as possíveis semelhanças seriam cópias ou não pesou mais ao entender cada um dos programas por seus objetivos narrativos propostos.

A semelhança e os objetivos distintos de Round 6 e Alice in Borderland

A semelhança entre os dois dramas é o fato de ambas as histórias serem sobre fight for you life, ou seja, lute pela sua vida. Ambas foram um sucesso em seu período de lançamento e, após a explosão que foi Round 6, Alice voltou a entrar no top 10 da Netflix. E muitas pessoas ou se surpreenderam ou se decepcionaram com uma das duas séries, exatamente por esperarem os mesmos elementos de uma em outra.

A semelhança e os objetivos distintos de Round 6 e Alice in Borderland
Em Alice in Borderland, os jogos são explicados por misteriosos celulares. | Fonte: Netflix

A questão é que, além de ambos os dramas serem death games e os personagens terem que solucionar os jogos para sobreviverem, as semelhanças se encerram aí. A partir disso, o desenvolvimento das histórias se dispersa totalmente. Vale ressaltar que Alice in Borderland é uma releitura do clássico livro Alice no País das Maravilhas, já em Round 6 existe toda uma narrativa reflexiva ao capitalismo e crítica ao governo sul-coreano.

O foco narrativo das duas obras

Em Round 6 o público tem consciência de quem está por trás dos jogos, isto é, somos apresentadas àqueles que estão pelos bastidores. Portanto, sabemos que os idealizadores existem e compreendemos quais seriam seus possíveis objetivos com isso, já que, além dos jogadores e suas histórias, vemos o “anfitrião” dos jogos e seus “empregados” trabalhando. É como se tivéssemos acesso aos bastidores da competição. É claro que existem alguns elementos misteriosos por trás – qual seria a graça caso contrário?

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Entretanto, Alice in Borderland trata essa questão como uma das incógnitas que aspiram um de seus vários mistérios: não sabemos quem organiza os jogos e muito menos se existe algum objetivo por trás, além da luta pela sobrevivência de seus participantes.

Em ambas histórias, vemos seus personagens se desenvolverem. Contudo, Round 6 amplia tal desenvolvimento para além dos jogadores; como foi falado, conhecemos o apresentador do jogo, também vemos algumas histórias por trás dos “empregados”, conhecemos familiares dos participantes e por aí vai. Em Alice o foco é conhecer os personagens e suas reações aos jogos. Além disso, conhecemos personagens alheios aos jogos, como a parte da história do corajoso policial Hwan Jun-Ho (Wi Ha-Joon).

O policial disfarçado (Wi Ha-Joon) em Round 6
O policial disfarçado interpretado por Wi Ha-Joon em Round 6 | Via: Netflix

Entretanto, temos mais um fato que ambos os dramas dividem: quando você descobre quem está por trás, você entenderá toda a construção simbólica por trás de cada roteiro; e não deixará de ser extremamente revoltante.

Objetivo dos jogos em Alice in Borderland e Squid Game

Outro ponto é entender qual o objetivo de cada jogo. Com Squid Game, as personagens têm como meta alcançar o prêmio em dinheiro – e, como “bônus”, buscarem a própria sobrevivência. Além disso, é possível admitir que os jogadores escolheram esta ali. Afinal, todos foram convidados e aceitaram participar e permanecer nos jogo, ainda que esse poder de escolha seja ilusório.

Como foi dito, os personagens entraram na competição por estarem afundados em dívidas: Seong Gi-Hun é perseguido por agiotas, Cho Sang-Woo (Park Hae-Soo) é um advogado falido que acumula uma divida milionária de 600 milhões de wons, Kang Sae-Byeok (Jung Ho-Yeon) é fugitiva da Coreia do Norte e tem que salvar seu irmão do orfanato e os demais personagens se encontram assim, desesperados por dinheiro, para salvar suas casas, alimentar suas famílias e preservar a própria vida.

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Ainda que eles tivessem a escolha de desistir do jogo – uma das cláusulas da competição permite uma possível desistência coletiva -, é possível entender que o desespero pelo dinheiro não diferencia muito, para eles, de cenário. Se nos jogos, as chances de morrer eram mais explícitas, na vida real, o risco de morte seria mais lento, angustiante e torturante. Afinal, uma hora ou outra, os cobradores bateriam em suas portas, os agiotas cobrariam suas dívidas, e o governo pegaria sua casa para quitar contas. Assim, os personagens ali se vêem condicionados a participarem dos jogos, não pelo direito de escolha defendido, mas pela necessidade e desespero em conseguir dinheiro.

Personagens de Alice in Borderland
Personagens de Alice in Borderland | Via: Netflix

Em Alice in Borderland não há esse “direito de escolha”. De uma maneira inexplicável, as personagens são dispostas nos jogos como se tivessem sido “abduzidas”, sem terem o conhecimento de absolutamente nada. Portanto, o único aparente objetivo dali é a sobrevivência. Também não existem prêmios ofertados ao final do jogo e muito menos a ideia de vencedor e perdedor; tudo depende do tipo de jogo a ser competido no dia.

Os jogos de Round 6 e Alice in Borderland

Alice in Borderland carrega uma complexidade maior em seus desafios do que em Round 6. Os jogos são inspirados nas cartas do baralho – uma referência à Alice no País das Maravilhas – e cada símbolo carrega um estilo de jogo, além do número revelar o grau de complexidade. Os competidores devem fluir suas habilidades em força, raciocínio lógico, agilidade e reflexo. Portanto, o j-drama tende a focar seus episódios na resolução dos jogos e como os mesmos impactarão no desenvolvimento das personagens.

Já em Round 6 o foco narrativo é outro. Podemos até pensar que os jogos e suas resoluções tendem a ser um plano de fundo – a não ser no episódio 6, onde o quarto jogo é o divisor de águas na história e provavelmente o mais doloroso de toda a série. Nesse, em específico, vemos como o desespero pelo dinheiro afetou o caráter dos personagens, refletindo na perspectiva de futuro deles. Os jogos, portanto, retratam uma alegoria do quão dispostas essas pessoas, necessitadas, estão e ao que elas podem submeter pela necessidade do dinheiro.

Seong Gi-Hun em Round G
Sem dinheiro para comprar um presente para a filha, Seong Gi-Hun tenta a sorte nessas máquinas de brinquedo. | Fonte: Netflix
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Assim, Round 6 traz uma crítica explícita a estrutura capitalista e a maneira como a Coreia do Sul encara essas fatos, uma vez que, mesmo que seja uma nação com um índice alto de desenvolvimento tecnológico e em pesquisa, o país enfrenta uma grave crise imobiliária.

Essas são apenas algumas das diferenças entre os dois dramas, além da construção narrativa que possui elementos da cultura de cada país. Em Round 6, temos exemplos das comidas, da influência de uma pessoa pelo bairro, além do quão doloroso e humilhante é ter sua honra ferida. Já em Alice in Borderland, vemos outras referências à Alice no País das Maravilhas, como, por exemplo, os nomes dos personagens e suas personalidades, além da influência dos cenários.

Ou seja, há motivos suficientes para conhecer ambos os títulos e ampliar, de maneira universal, a audiência de tais produções em programas de TV e streaming.


Edição e revisão por Isabelle Simões.

Escrito por:

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Ket tem 23 anos, é formada em Letras - Língua e Literatura Portuguesa, pela UFAM. Nasceu e criou-se em Manaus, onde ainda mora. Não é capaz de conceber uma realidade em que as mulheres não sejam livres, uma vez que sua vida inteira viveu em um lar matriarcal. Gosta de histórias tristes, é fascinada pela cultura Sul-coreana e chora com animes.
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