A Sala de Aula que Derreteu: a nova faceta do terror de Junji Ito

A Sala de Aula que Derreteu: a nova faceta do terror de Junji Ito

Os últimos anos têm sido tempos excelentes para os fãs do magaká Junji Ito. A editora Pipoca e Nanquim já trouxe ao Brasil os volumes 1 e 2 de Tomie, primeira obra dele, o aclamado Frankenstein no Halloween de 2021 e, agora, o seu mais novo e grotesco mangá, A Sala de Aula que Derreteu (traduzido por Drik Sada), promete tirar o sono de muitos leitores. Acompanhando os irmãos Yuma Azawa, um adolescente que se desculpa por tudo, e Chizumi, uma garotinha um tanto macabra que adora perseguir pessoas aleatórias na rua, os leitores conhecerão uma nova e arrebatadora faceta do terror do tão aclamado autor.

Yuma e Chizumi são os excêntricos novos moradores de uma cidadezinha, a província de Tochigi, região da ilha de Honshu, no Japão, que poderia ser facilmente encontrada em qualquer parte do mundo. Porém, os demais habitantes dela, em seus afazeres diários, não imaginam os perigos que correm com a dupla frequentando os mesmos espaços que eles, sobretudo a escola, lugar que é palco das primeiras e enormes atrocidades causadas pelos irmãos.

AVISO: a resenha contém spoilers do mangá

Yuma, personagem de "A Sala de Aula que Derreteu", de Junji Ito.
Yuma, personagem de “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito.
Chizumi, personagem de "A Sala de Aula que Derreteu", de Junji Ito.
Chizumi, personagem de “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito.

O irmão mais velho, Yuma, é constantemente vítima de comentários maldosos e olhares desconfiados vindos de seus colegas na escola nova, devido ao seu comportamento estranho: ele percorre os corredores se ajoelhando e pedindo desculpas por algo mínimo que tenha feito, como quebrar sem querer um vaso de flores da sala de aula, ou que sequer tenha acontecido. O comportamento de autopenitência exacerbada, que destoa do que é aceitável para um ser humano que comete erros, faz com que os outros garotos comecem a submetê-lo ao bullying, o que colabora para que a estranheza do comportamento do garoto se intensifique.

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Já Chizumi é o oposto do irmão: é sádica e ama perseguir as pessoas de propósito nas ruas e aterrorizá-las com brincadeiras de mau gosto, o que faz com que Yuma se desculpe, além de pelos seus próprios atos, pelas peças que a garotinha costuma pregar em quem cruza o seu caminho.

No entanto, tudo tem um motivo para acontecer e nem tudo é o que parece ser em A Sala de Aula que Derreteu. Dessa forma, os dois agem em conjunto com uma finalidade muito macabra. Ao se humilhar pedindo desculpas o tempo todo pelo que ele e a irmã fazem, Yuma inicia um processo de derretimento das vísceras de suas vítimas através de ondas eletromagnéticas malignas. Em seguida, ambos se alimentam das entranhas derretidas, como oferta ao Diabo.

Na infância, o rapaz invocou uma entidade e se arrependeu, mas já era tarde demais. Tanto Yuma quanto Chizumi, no intuito de ajudar o irmão, ficaram fadados a suprir a necessidade truculenta de ceifar almas para a criatura de uma forma absurda e grotesca, mas que, aos poucos, se torna um passatempo agradável para ambos – e deixa os lugares em que passam em completo estado de choque com as mortes inexplicáveis que começam a acontecer.

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Além disso, os irmãos não demoram muito para ganharem status de lendas urbanas locais, o que repercute ao longo de todas as histórias do mangá, que é dividido em cinco contos em que eles aparecem e são o pivô de inúmeras atrocidades: “A Sala de Aula que Derreteu”, “A Beleza que Derreteu”, “O Amor de Chizumi” e “A Coletiva de Imprensa do Diabo”.

Na trama, o passado dos dois é revelado aos poucos para justificar a escalada dos acontecimentos em “A Sala de Aula que Derreteu” (história que abre o mangá e dá título à obra), e nas demais narrativas gráficas. No entanto, o autor faz questão de deixar algumas pontas soltas para que os leitores as conectem e tirem as suas próprias conclusões acerca das motivações e possíveis paradeiros dos irmãos.

O terror que parte da natureza humana – para explicá-la

Horror e terror andam de mãos dadas nas obras de Junji Ito e, em A Sala de Aula que Derreteu, mangá serializado e publicado entre 2013 e 2014 na revista Motto!, o autor desenvolveu uma de suas histórias mais marcantes e, possivelmente, a mais assustadora de todas. Para além do fator sobrenatural da trama, com o pano de fundo da invocação do Diabo fazendo parte da mitologia dos dois irmãos, temos os próprios personagens que personificam o mal que o ser humano pode causar.

O terror que parte da natureza humana na obra de Junji Ito
Yuma em cena de “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito.
O Diabo em "A Sala de Aula que Derreteu", de Junji Ito.
O Diabo em “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito.

Em outras obras do autor, os leitores já puderam se deparar com aspectos da sociedade explicados através de alegorias diretas, como em Tomie, em que há uma personagem-incógnita, talvez um demônio ou feiticeira, que provoca sobretudo os homens a lhe assassinarem, para que volte mais forte, trazendo à tona o potencial misógino que muitos deles, dentro da narrativa, carregam.

Outro exemplo é o personagem Oshikiri, presente nas histórias iniciais do mangá Frankenstein, que projeta toda a frustração e complexo de inferioridade quanto à própria aparência no amigo que é seu exato oposto, assassinando-o e vivendo atormentado pelo crime hediondo. E, citando sua obra mais famosa, em Uzumaki (edição da Devir) a espiral maligna é apenas o estopim para que a cidadezinha de Kurôzu-cho revele todo a insanidade que já carregava e é capaz de atingir, partindo das próprias interações – e degradações – dos moradores (algo que lembra em grande parte da narrativa de HEX, de Thomas Olde Heulvet, publicado pela DarkSide Books).

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Em A Sala de Aula que Derreteu, os leitores encontrarão não só uma excelente e horripilante história envolvendo pactos diabólicos, repleta do absurdo body horror de Junji Ito, como também um estudo de caso acerca de como as pessoas podem ser intrinsecamente malvadas, mesmo que na superfície se mostrem o contrário, e como podem estar inseridas no cotidiano de cada um sem que se tenha conhecimento.

Yuma, para além de sua mania estranha, é um rapaz aparentemente normal, que inclusive desperta a compaixão de uma de suas colegas de sala, Keiko Arisu, que se solidariza pelos maus-tratos sofridos por ele e logo inicia uma amizade. Porém a garota não sabe que está prestes a se envolver com um pessoa tão perigosa, capaz de querer até mesmo o mal dela, a fim de cumprir com a sua devoção ao Diabo, mas, antes de qualquer coisa, satisfazer o próprio prazer sádico.

Isso fica evidente na história “A Beleza que Derreteu”. Ao reencontrar a amiga Maiko, com quem estudou no ensino fundamental, a protagonista do conto se vê apavorada com a aparência decrépita da garota, drasticamente alterada por algo sobrenatural. A amiga, então, apresenta o namorado, Yuma Azawa, que fora transferido de escola após os acontecimentos de “A Sala de Aula que Derreteu” e iniciara um romance com a garota.

A protagonista e Maiko, sua amiga, em "A Beleza que Derreteu", de Junji Ito.
A protagonista e Maiko, sua amiga, em “A Beleza que Derreteu”, de Junji Ito.

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Desnorteada com o que estava vendo, e tentando encontrar algo de semelhante na amiga de outrora, a protagonista percebe que, mesmo naquela situação, Yuma ainda venera Maiko, elogiando cada aspecto de sua aparência. Porém, não demora muito para que o rapaz largue a amiga e passe a investir na protagonista, que aprenderá da pior forma o motivo pelo qual Maiko ficara daquele jeito.

Essa história, portanto, mostra o potencial abusivo de Yuma que, distorcendo as suas vontades, e manipulando as duas garotas para que se sentissem desejadas, consegue destruir a vida de ambas para saciar seu próprio ego, honrar uma figura masculina maligna e seguir adiante destruindo quem quer passasse pela sua frente.

Quanto à Chizumi, Yuma afirma que ela é a única culpada pelas mortes, pois após o falecimento dos pais foi corrompida, passou a mentir e, ela sim, invocou o Diabo. No entanto, a realidade é que os dois agem em conjunto, um sendo o oposto do outro à primeira vista, mas com um objetivo em comum: fazer mais vítimas e saciar a sede de sangue (no começo da história, sabemos que os pais de Yuma e Chizumi estão mortos e que, inclusive, eles carregam os restos mortais dos entes queridos consigo – uma das aparições mais horripilantes da trama; o reflexo da ausência parental, e de como isto mexe com o psicológico dos irmãos conforme o mangá avança, fica evidente em diversos momentos).

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Assim que o plano deles é concretizado, fogem para outras cidadezinhas, a fim de recomeçarem a vida e matarem mais pessoas. É em uma destas fugas que a passagem “A Coletiva de Imprensa do Diabo” começa. Ao serem descobertos como autores dos crimes e terem o paradeiro revelado, ambos resolvem se manifestar publicamente, utilizando emissoras de televisão e a internet – porém, mal sabiam todos o desenrolar terrível que se seguiria. A história encerra o mangá em um desfecho catártico e assustador, mas que Junji Ito fez questão de deixar em aberto para os leitores se divertirem imaginando o que pode ter se desenrolado após o terrível episódio.

A Sala de Aula que Derreteu é uma das obras mais inquietantes de Junji Ito, que, ao utilizar elementos sobrenaturais e imagens extremamente gráficas em seu enredo, mostra quem, na realidade, é capaz de cometer barbaridades inimagináveis para com os outros: o próprio ser humano. Um exemplo brilhante de como o horror e o terror podem abarcar temas do cotidiano, elevá-los à máxima potência e utilizá-los como ponto de partida para discussões pertinentes acerca da solidão, sentimento de culpa e toda a perversão que alguém é capaz de infligir aos seus pares.

Trecho da história "Reencontro", presente no mangá de Junji Ito.
Trecho da história “Reencontro”, presente em “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito.

No posfácio escrito por Junji Ito, com exclusividade para a edição brasileira do mangá, o autor explica de onde veio a inspiração para a personalidade de Yuma:

Eu criei esta história chamada “A Sala de Aula que Derreteu” num momento da minha vida em que, sem querer, vivia importunando as pessoas e me metia em pequenos problemas do cotidiano, o que me colocava em situações nas quais precisava pedir desculpas para os outros a toda hora.

O mangá conta ainda com duas histórias extras de Junji Ito, ambas publicadas na revista Motto! em 2013: “Reencontro” e “Filhos da Terra”. Na primeira, um jovem casal é separado pela morte e o homem, desde o dia do falecimento de sua esposa, passa a sentir que em breve ela retornará (talvez não do jeito que ele esperava). Uma história curta, porém tocante sobre luto e reencarnação, uma surpresa para os leitores do autor.

Já na segunda, famílias se desesperam com o sumiço de suas crianças, e ao reencontrá-las em uma situação inusitada, nada será como antes.

Mangá de Junji Ito
Trecho de “Filhos da Terra”, de Junji Ito.

A edição primorosa de A Sala de Aula que Derreteu

A edição de A Sala de Aula que Derreteu, lançada em dezembro de 2021 pela Pipoca e Nanquim, apresenta um projeto gráfico um pouco diferente das demais: a jacket (sobreposição em papel) que envolve o mangá, quando aberta, mostra uma cena panorâmica da sala de aula devastada por Yama e Chizumi, que funciona muito bem como um pôster do mangá. Já na parte da brochura, a capa lembra a de um livro antigo de ocultismo, fazendo jus ao tema abordado na história.

A edição também tem sentido oriental de leitura, papel firme e agradável ao toque e vem com um marcador de páginas de brinde, estampando o olhar maléfico de Chizumi.

A Sala de Aula que Derreteu | Resenha: a nova faceta do terror de Junji Ito

Edição da Pipoca e Nanquim do mangá "A Sala de Aula que Derreteu"

Chizumi assusta Keiko em "A Sala de Aula que Derreteu", de Junji Ito
Chizumi assusta Keiko em “A Sala de Aula que Derreteu”, de Junji Ito

A Sala de Aula que Derreteu | Resenha: a nova faceta do terror de Junji Ito

A editora anunciou que os fãs de Junji Ito continuarão com as estantes abastecidas por muito mais tempo: SensorShiver e Smashed, outros mangás renomados do autor, já estão em produção e prometem ainda mais horrores para novos e antigos leitores (obs.: É sempre válido lembrar que os temas, descrições e imagens das obras de Junji Ito são gráficos e pesados e podem ser desconfortáveis para certas pessoas).

Crédito: Fotos por Laís Fernandes.


Mangá "A Sala de Aula que Derreteu" A Sala de Aula que Derreteu

Autor: Junji Ito

188 páginas

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Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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