Joan Didion e a arte de traduzir o pessoal em universal

Joan Didion e a arte de traduzir o pessoal em universal

Somos seres constituídos de memória, um amontoado de experiências e recordações. Ao fim do dia ou da vida, o que resta de nós aos olhos do outro é a lembrança, o que é resgatado na memória, os gestos de afeto, a dor, o tempo, as ausências, o luto. É por meio dessas habilidades inerentemente humanas que a escritora Joan Didion compõe suas obras; um compilado de memórias de um tempo passado, e que de certa forma foi também um presente coletivo, a rememoração de uma época, a história de uma mulher que através de suas palavras narrou os sentimentos do mundo, o que era dela mas que era ao mesmo tempo, universal.

Fui escritora a vida inteira. A forma como escrevo é o que sou, ou o que me tornei.

Joan Didion. Califórnia, 1981.
Joan Didion. Califórnia, 1981 | Imagem: nzherald.co.nz

Sobre a vida que a motiva

Nascida em Sacramento, Califórnia, Joan Didion atravessou a sociedade com seus escritos, ensaísticos ou não, e através da sua memória narrou as mudanças de um tempo e os sentimentos mais humanos e íntimos. A escrita da autora passeia por um campo muito único e delicado, no que era denominado jornalístico. Didion criou beleza estética, o que cabiam aos jornais agora tinham a beleza e a criticidade literária. A união de tópicos como a política, mudanças sociais e sentimentos interiores dominou não só o público leitor, mas também a crítica especializada.  

Em seu livro O álbum branco publicado em 1979, a autora mescla a sua vivência na contracultura aos problemas hidráulicos da Califórnia, o boom dos shoppings a sua necessidade de libertação por meio da escrita, do compartilhamento de histórias. Assim, criava união entre temas universais e locais culminando na criação de um novo jornalismo e de um novo tipo de narrativa, esta é marcada pela memoração de um indivíduo que experiencia a dor, o amor e a solidão.

Quero que entenda que está lendo uma mulher que, já faz algum tempo, se sente radicalmente apartada da maioria das ideias que parecem interessar a outras pessoas. Está lendo uma mulher que, em algum ponto do percurso extravio a pouca fé que veio à ter no contrato social

(…)

não sou a sociedade em um microcosmo. Sou uma mulher de 34 anos com cabelo longo e liso, um biquíni velho e mal da  cabeça em uma ilha no meio do pacífico esperando por um maremoto que não vai vir.

(p.152-153)

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A escrita de Didion parece muito bem delimitada, em algum lugar quente da Califórnia, em algum ano muito específico, mas que a partir da corporeidade do papel ganha ecos e passa a ser algo mais, uma libertação de uma memória específica no leitor.

Da Califórnia de Didion criam-se ideias coletivas sobre o ser mulher, sobre estar só e sobre as mudanças que o mundo como um todo enfrenta com o passar do tempo e com as novas reconfigurações sociais. Os seus escritos são denúncias geradas em seu íntimo, assim confunde-se a personalidade da autora às reflexões filosóficas e políticas que suas narrativas trazem ao leitor.

Joan Didion | Imagem: Radical Reads

Por dentro das obras de Joan Didion

Em um de seus livros de ensaio mais famosos, Rastejando até belém, publicado em 1968, Didion retratada essa década conflituosa para os Estados Unidos. Com sua visão única, ela captura as mudanças sociais, estéticas e políticas de um tempo e, além disso, debate sobre a própria natureza da vida.

No prefácio, escrito pela mesma, existe uma declaração pessoal acerca de sua visão jornalística revolucionária em que Joan justifica ao leitor esse entrelaçar do jornalismo ao seu modo de transformar a notícia em arte. 

É claro que nem todos os textos deste livro, no que se refere à temática, têm a ver com a ruptura geral, com as coisas desmoronando; essa é uma noção ampla e um tanto presunçosa, e muitos destes ensaios são pequenos e pessoais.

Mas como não tenho memória fotográfica nem sou dada a escrever ensaios que não me interessam, tudo o que escrevo reflete, às vezes gratuitamente, como me sinto. (p.12)

Nesse misto entre a tradução da realidade e a própria vida da autora, a escrita exigiu tudo. Ao mesmo tempo em que “contamos histórias para poder viver”, como a autora relata, as histórias, mesmo as mais dolorosas e particulares, precisam existir além da vida, para além das memórias da escritora. Esse é o caso de duas de suas publicações mais expressivas e delicadas, O ano do pensamento mágico, publicado em 2005, e Blue Nights, publicado em 2011. No ato de compartilhar memórias, as mais dolorosas são as menos faladas socialmente, como é o caso do luto; tema que protagoniza ambos os livros. 

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Joan Didion e sua filha, Quintana.
Joan Didion e sua filha, Quintana | Imagem: Los Angeles Times.

Em O ano do pensamento mágico, o leitor participa de um relato que soa como uma confissão, como se não devêssemos estar ali participando dessa narrativa, mas em que ao mesmo tempo não conseguimos parar de espiar. Afinal, queremos entender o sentimento proibido, tentar lidar com a dor que perpassa toda a jornada humana; a morte daqueles que amamos. 

Nesse livro de memórias de Didion, experienciamos a sua dor, a solidão, e como leitores tentamos tirar de um compartilhar tão íntimo os significados do amor, do tempo, do luto e da vida.

Joan chega em casa com seu marido para jantar após uma visita ao hospital. Quintana, sua filha, estava internada inconsciente por conta de uma pneumonia que se agravou. Durante o jantar com seu companheiro de anos, a sua vida muda em minutos diante de seus olhos. John Greggory Dunne, seu primeiro leitor, o homem que sempre esteve presente em seu processo de escrita, é acometido por ataque cardíaco fulminante. Assim, “A vida muda rapidamente. A vida muda em um instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina.”.

Enquanto tentava entender a ausência do que parecia tão constante em sua vida, Didion, entre idas e vindas à hospitais acompanhando sua filha, choca-se com a perda desta, de uma forma lenta e dolorosa. Quintana, uma mulher jovem, recém-casada e brilhante, falece.

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Joan Didion e seu marido, John Gregory Dunne.
Joan Didion e seu marido, John Gregory Dunne | Imagem: Reprodução   

Por meio de palavras, como se fosse em um diário, Joan divide o seu processo com o leitor, talvez como uma forma de expurgar o sentimento da perda e da solidão. Mas a sua partilha sobre um destino comum e pouco explorado na literatura, ilumina o leitor e transporta um sentimento que se demonstra tão particular ao outro, ao coletivo.

Diante dessas considerações, a melhor forma de entender uma das mentes mais brilhantes da contemporaneidade, entender o seu processo de narração através da memória, é uma forma singular de compreender o mundo, a realidade e a nossa própria memória. 

Essa é minha tentativa de entender o período que se seguiu, as semanas e então os meses que levaram com eles qualquer ideia fixa que eu pudesse ter sobre a morte, sobre a doença, sobre a probabilidade e sorte, sobre boa e má fortuna, sobre casamento, filhos e memória, sobre a dor, sobre a maneira como as pessoas lidam ou não com o fato de que a vida acaba, sobre como a sanidade é frágil, sobre a própria vida.” (p.11)

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Didion e sua família.
Joan Didion e sua família | Imagem: New York Times

Referências:

  • Joan Didion. O ano do pensamento mágico. Rio de Janeiro, 2022.
  • Joan Didion. O álbum branco. Rio de Janeiro, 2021.
  • Joan Didion. Rastejando até Belém. São Paulo, 2021. 

Crédito: colagem em destaque feita por Angélica Cigoli para o Delirium Nerd.

Escrito por:

3 Textos

Formada em Letras e viciada em pesquisar Lygia Fagundes Telles. Nas horas vagas é uma grande leitora de ficção científica e de mulheres a beira de uma crise de nervos. Escolheu a escrita como forma de aliviar a ansiedade. O maior hobby é iniciar séries e nunca terminá-las e, também, ouvir Lana Del Rey no repeat.
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