Unreal Unearth: o Inferno de Hozier

Unreal Unearth: o Inferno de Hozier

Visto por alguns fãs como uma espécie de Jesus Cristo da indústria musical, o cantor e compositor irlandês Andrew Hozier Byrne lança seu terceiro álbum de estúdio, intitulado Unreal Unearth. Este álbum explora mitos, pecados, autoconhecimento, amor e sofrimento com uma profundidade e identidade que poucos artistas masculinos conseguem realizar com tamanha magnitude.

Após o grande sucesso de seus dois primeiros álbuns, Hozier (2014) e Wasteland, Baby! (2019), Hozier retorna com composições sobre memórias e histórias que nem sempre são suas, mas que definitivamente cativam e emocionam o público com criações totalmente distintas de tudo que já ouvimos na indústria musical.

“O álbum representa uma reflexão sobre a jornada dos últimos anos e tudo o que foi contado na época.”

“Eu estou brincando com os mitos — reinterpretando-os, subvertendo-os.”

— Hozier sobre Unreal Unearth no Twitter e Apple Music, respectivamente

Unreal Unearth evidencia ainda mais a genialidade e o poder da poesia de Hozier, consolidando-o como um dos melhores compositores das últimas décadas. Isso é alcançado através de sensações indescritíveis, paixões avassaladoras e referências inteligentes como nunca antes.

O álbum nos guia por uma jornada cheia de reflexões sobre o mundo cruel que nos cerca enquanto vivos, além dos tormentos que nos perseguem mesmo após a morte, mas sem perder a esperança de dias luminosos.

E Hozier não se contenta apenas com isso. Ele não se restringe aos clássicos da literatura para compor suas canções, mas também se inspira na cultura e história irlandesas, o país onde nasceu e vive.

O Inferno de Hozier

Domhnall Gleeson no videoclipe “De Selby (Part 2)” / Youtube

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Partindo das duas primeiras faixas, De Selby (Part 1) e De Selby (Part 2) , com uma transição divina entre melancolia e desespero entre elas, somos conduzidos por sentimentos completamente distintos, talvez até opostos, que se complementam para proporcionar uma experiência de abertura altamente satisfatória.

Esses são dois lados da mesma moeda, apresentados em uma poesia sobre morte, solidão, vazio e anseio por conexão com os outros e consigo mesmo. Ambas as músicas têm como base De Selby, um personagem fictício que surge nos romances do autor irlandês Flann O’Brien.

Além disso, é possível encontrar ao longo do álbum diversos trechos (ou até mesmo canções completas) inspirados na jornada de Dante pelos nove círculos do Inferno – um dos livros favoritos de Hozier – como em “Francesca“, “All Things End“, “First Light”  e outros. O livro Inferno, de Dante Alighieri, serviu de base para a composição do álbum como um todo.

“Do you think I’d give up?
That this might’ve shook the love from me
Or that I was on the brink
How could you think, darlin’, I’d scare so easily?

Now that it’s done
There’s not one thing that I would change
My life was a storm since I was born
How could I fear any hurricane?”

(Você acha que eu desistiria?
Que isso poderia ter abalado o meu amor
Ou que eu estava no limite?
Como você pôde pensar
Querida, eu me assustaria tão facilmente?

Agora que isso já passou
Não há nada que eu mudaria
Minha vida foi uma tempestade desde que nasci
Como eu poderia temer qualquer furacão?)

— Trecho da canção “Francesca”

Hozier no videoclipe "Francesca"
Hozier no videoclipe “Francesca” / Youtube

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Na quarta faixa do álbum, assim como Dante, Hozier narra a trágica história de amor entre Francesca e Paolo pelo ponto de vista da mulher falecida. No entanto, divergindo das moralidades impostas no livro, Hozier nos apresenta uma Francesca completamente apaixonada, sem arrependimentos e sem culpa, embora, no desfecho, ela tenha acabado no Inferno junto a seu amante.

Em “Eat Your Young“, a narrativa se afasta um pouco do romantismo trágico e se transforma na canção com uma das críticas sociais mais acentuadas do álbum, abordando desde uma referência ao ensaio satírico de Jonathan Swift sobre “comer os próprios filhos” durante a fome irlandesa até a pobreza tanto em épocas passadas quanto atuais. A canção também pode ser interpretada como um discurso sobre a ganância por luxúria, dinheiro e poder.

Outra faixa que carrega uma forte crítica é “Butchered Tongue“, onde Hozier retrata a violência sofrida em rebeliões e guerras ao longo da história da Irlanda, bem como a violência colonial que afetou as culturas e populações indígenas ao redor do mundo, violência essa que resultou na extinção de línguas nativas e costumes. A música representa o sétimo círculo do Inferno, conhecido como o “Círculo da Violência”.

Imagine ser amada por Andrew Hozier Byrne

Hozier e Ivanna Sakhno no videoclipe "Eat Your Young"
Hozier e Ivanna Sakhno no videoclipe “Eat Your Young” / YouTube

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Além da forte crítica social, Hozier também utiliza a influência da história de Dante Alighieri para inserir um pouco de si e suas próprias experiências no álbum, refletindo isso em algumas faixas.

Conforme revelado pelo próprio Hozier à Apple Music, a música “All Things End” trata da aceitação de um relacionamento amoroso que está se desfazendo e escapando de seu controle. No entanto, a essência da música não é melancólica; na verdade, ela possui um charme de renovação que pode ser extremamente gratificante e esperançoso para quem a escuta e se identifica com sua letra.

Da mesma forma, “Abstract (Psychopomp)” se baseia em experiências que Hozier vivenciou quando criança, testemunhando um animal ser atropelado por um carro em Greystones. A faixa também explora as memórias de um amor do passado que ainda o acompanha no presente, permanecendo dentro de seus pensamentos e coração.

“Do you know I could break beneath the weight?
Of the goodness, love, I still carry for you
That I’d walk so far just to take
The injury of finally knowin’ you”

(Você sabe, que eu poderia quebrar com o peso?
Da bondade, do amor, que eu ainda carrego por você
Que eu andaria tão longe só para receber
A ferida de finalmente te conhecer)

— Trecho da canção “Unknown / Nth

A faixa “Unknown / Nth” se inspira no “Círculo da Traição” descrito no livro de Dante e marca o fechamento dos nove círculos do Inferno com uma composição sobre distância, traição e a sensação de ser desconhecido ou incompreendido em um relacionamento. De acordo com o próprio artista, essa música reflete a dor de ter o coração partido por alguém em quem se confiava e ainda se ama.

Por outro lado, “First Light” foi selecionada por Hozier para encerrar o álbum, uma vez que essa música representa o desfecho da jornada de Dante pelo Inferno. A faixa transmite um imenso alívio ao vislumbrar o céu novamente, um sentimento tão intenso que se assemelha a uma primeira vez, especialmente após enfrentar tanto sofrimento e momentos de escuridão, tanto no sentido literal quanto figurado da palavra.

Essa canção pode ser interpretada como a saída de um relacionamento complicado em direção a um relacionamento mais leve e alegre, ou mesmo a um momento que traz luz e felicidade. Independentemente da interpretação, o encerramento do álbum representa uma luz no fim do túnel, simbolizando o encerramento da nossa jornada com sentimentos positivos de alegria e gratidão, após vivenciar desgostos e traumas nas faixas anteriores.

Os sentimentos causados por Unreal Unearth

Hozier no videoclipe de "All Things End"
Hozier no videoclipe de “All Things End” / YouTube

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As músicas de Hozier estão repletas de referências literárias, históricas, mitológicas e até bíblicas, que podem escapar à compreensão de alguns ouvintes. No entanto, essa falta de entendimento não impede a apreciação e o encantamento por suas composições. Na arte, seja na música, no cinema, na TV ou em outros meios, o que prevalece é a conexão emocional que estabelecemos com as obras, em vez do nosso conhecimento intelectual sobre elas.

Ao ouvir o álbum, algumas pessoas podem associar as canções não às referências de Hozier, mas sim aos personagens Aziraphale e Crowley, de Belas Maldições, por exemplo. Isso ocorre devido às alusões divinas a anjos e a um amor atemporal presentes nas canções. Outros ouvintes podem relacionar as faixas às suas próprias vivências, desejos, medos e alegrias, ou até imaginar cenários mágicos, como correr pela floresta à noite com total liberdade.

Talvez inconscientemente, a experiência de ouvir Unreal Unearth possa ser comparada à jornada pelos nove círculos do Inferno de Dante. No entanto, essa jornada está disfarçada em dezesseis músicas, como se fosse um Inferno (Hozier’s Version) ou uma espécie de fanfic medieval que ele compôs enquanto refletia sobre o livro, o mundo e seus próprios sentimentos.

Se a intenção de Hozier era nos impressionar e envolver com sua poesia e perspectiva de mundo, ele certamente alcançou sucesso. Unreal Unearth definitivamente se estabelecerá como o álbum que estaremos ouvindo, discutindo e refletindo nos próximos anos.

Crédito: colagem em destaque feita por Sharline Freire para o Delirium Nerd.

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Escritora, estudante de jornalismo e leitora voraz de fanfics. Assiste filmes, séries e shippa casais gays mais do que deveria. Parece fria e séria, mas já chorou escrevendo sobre Sherlock Holmes e John Watson na internet.
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