O oceano no fim do caminho: quando compreendemos os monstros da infância

O oceano no fim do caminho: quando compreendemos os monstros da infância

I remember my own childhood vividly… I knew terrible things. But I knew I mustn’t let adults know I knew. It would scare them.

Maurice Sendak, in Conversation with Art Spiegelman, The New Yorker, 27 de Setembro de 1993. 

Neil Gaiman nos ensina a ver!

O oceano no fim do caminho (“The ocean at the end of the lane” no título original) é um romance de realismo fantástico do escritor inglês, Neil Gaiman, lançado pela primeira vez em 2013. A obra, que não passa de 200 páginas dependendo da edição, foi inicialmente concebida como um conto, mas ganhou tanta vida que Gaiman decidiu continuar a escrever até onde a história o levasse.

Este texto começa com a mesma epígrafe que o autor escolheu para o livro. A frase de Art Spiegelman (autor e ilustrador da graphic novel, Maus), resume de maneira quase perfeita todo o sentimento que a história de Gaiman carrega: de que as crianças sabem tanto quanto os adultos e, por vezes, enxergam até mais que eles.

Caso nunca tenha ouvido falar de Neil Gaiman, uma breve introdução seria que ele é um famoso escritor de língua inglesa, conhecido por obras aclamadas por seus fãs ao redor do mundo, como Sandman, O Livro do Cemitério, Deuses Americanos, Stardust, entre muitos outros.

Suas obras também renderam adaptações queridas pelo público, como Good Omens e Coraline. Além disso, ele é conhecido por sua preferência por trajes pretos.

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Neil Gaiman | Imagem: Variety

Em suas obras, Gaiman costuma misturar fantasia e cotidiano para explorar os assuntos mais variados e profundos que que permeiam a experiência humana. Ler uma de suas histórias é embarcar em aventuras junto com seus personagens, ao mesmo tempo em que compartilhamos seus sofrimentos. É uma experiência que nos coloca no centro das emoções, identificando-nos com dúvidas e medos cotidianos, mesmo em cenários fantásticos.

O oceano no fim do caminho

O oceano no fim do caminho não é diferente. Neste livro acompanhamos um narrador sem nome, mas que conta a história a partir de sua perspectiva, em primeira pessoa. Um homem que está voltando para a cidade onde cresceu, para um funeral.

“O Oceano no Fim do Caminho” não foge a essa fórmula. O livro narra a história de um protagonista sem nome, que compartilha sua jornada em primeira pessoa. Um homem que retorna à cidade onde cresceu para um funeral.

Ao fazer esse retorno, ele tenta evitar situações embaraçosas com parentes distantes e as intermináveis perguntas incessantes, optando por percorrer a cidade e relembrar os locais de sua infância.

Durante esse percurso, ele depara com a fazenda da família Hempstock, localizada no final da rua onde viveu sua infância. O narrador, então, começa a recordar o período em que foi amigo de Lettie Hempstock, a menina que vivia com sua mãe e avó na fazenda. Ele descobre que há um oceano no quintal da propriedade e que as mulheres da família Hempstock possuem a habilidade de enxergar a magia no mundo.

Sua história com Lettie é repleta de aventuras sobrenaturais, lutando contra seres malignos que tem como objetivo apenas bagunçar a vida dos mortais e causar sofrimento.

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Capa da edição inglesa de “O oceano no fim do caminho” | Imagem: Reprodução

Essa seção pode conter spoilers!

Após um homem que estava hospedado em sua casa cometer suicídio dentro do carro de seu pai, uma passagem para que esses seres atravessem para o nosso mundo se abre, e eles têm como alvo o menino e sua família. Nesse contexto, ele procura a ajuda de Lettie, mas as coisas acabam saindo do controle, permitindo que algo ainda pior atravesse e entre na vida do menino.

Disfarçada como a nova babá encarregada de cuidar dele e de sua irmã mais nova, Úrsula manipula a família do menino. A família passa a se ressentir dele devido ao que parece ser uma perseguição sem sentido, já que ninguém acredita em sua história de que Úrsula possa ser um ser maligno.

À medida que ele se isola mais de sua própria família, Úrsula se fortalece, com o objetivo de encontrar uma maneira de entrar na terra guardada pela família Hempstock.

No desfecho do livro, há a intervenção de outros seres mágicos, perseguições e sacrifícios que nos levam de volta ao narrador adulto, ainda na fazenda, percebendo que havia esquecido de tudo aquilo de que agora se lembrava. No entanto, enquanto ele conversa com a Sra. Hempstock, começa a se esquecer novamente da verdade da aventura que viveu. Ele nunca mais se recuperaria.

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Os personagens em O oceano no fim do caminho

Nessa obra de Gaiman, percebemos como cada elemento que serve para mover a história pode funcionar também como alegorias para os temas mais complexos que ele trabalha ao longo da narrativa. Exemplos disso são a presença e a ação das personagens e os espaços descritos no livro.

  1. O narrador, conhecido como “o menino”, permanece sem nome ou descrição, permitindo ao leitor imaginar o protagonista da maneira que preferir, até mesmo introduzir a si próprio na história, se desejar. Além disso, ele representa a própria instituição da infância, não no sentido estatal (até os 12 anos), mas como o período subjetivo em que formamos as referências que nos moldarão. É um período frágil, no qual o pleno desenvolvimento pode ser ameaçado pelo medo e pelas ações indiscriminadas dos adultos.
  2. Lettie pode nos remeter a dois pilares importantes da infância. Primeiramente, à coragem inerente das crianças que ainda não foram moldadas pelas normas sociais. Em segundo lugar, à amizade, representando a companhia daqueles que veem o mundo da mesma forma que você, servindo como porto seguro e apoio para enfrentar os problemas que estão fora de nosso alcance.
  3. Úrsula nos faz lembrar dos traumas, das situações que preferiríamos não ter visto, mas que deixaram uma marca profunda, moldando parte do que cada indivíduo se torna. Seja testemunhar o corpo de um homem morto ou sofrer violência por parte de quem deveria representar proteção, como acontece com o menino.
  4. Os pais representam a ignorância que subestima os sentimentos de uma criança. Manipulados por Úrsula, ambos escolhem ignorar o filho e até atacá-lo, sempre amparados pelo argumento de que suas ações são motivadas pelo zelo. 
Ilustração com os personagens do livro | Imagem: Reprodução

Imaginação, a magia do mundo real!

Há também a ideia de que a fazenda Hempstock e as mulheres que lá viviam representam o mundo da imaginação, servindo como um meio de lidar com os monstros que não compreendemos, mas que nos seguem ao longo da vida.

Assim como Lettie, sua mãe e sua avó salvaram o narrador quando criança, esses mundos de fantasia, criados por nós mesmos ou por outros, são como escudos, proporcionando escapes momentâneos do que nos amedronta.

Em meus sonhos eu usei esse idioma para curar o doente e para voar; uma vez sonhei que mantinha uma pequena pousada perfeita na costa, e para todos que vinham ficar comigo eu dizia, naquela língua,

‘Seja inteiro’, e eles se tornariam inteiros, não pessoas quebradas, não mais, porque eu falei no idioma da criação” (tradução livre)

A noção de que os sonhos são um local de cura e verdade perpassa toda a carreira de Neil Gaiman. No espaço dedicado aos agradecimentos no livro, Gaiman afirma: “As palavras salvam vidas, algumas vezes.”

Em agosto de 2023, o autor postou uma resposta em seu perfil no Instagram a uma pergunta que lhe foi feita no Tumblr sobre se ele acreditava verdadeiramente em magia. Sua resposta foi:

“Eu posso escrever algumas palavras e fazer pessoas a milhares de milhas de distância, que eu nunca conheci e nunca conhecerei, rir lágrimas de alegria e chorar lágrimas de pesar real por pessoas que não existem e nunca existiram e nunca vão existir. Se isso não é mágica de verdade eu não sei o que é.”

“Você não passa, ou reprova em ser uma pessoa, querido”

Quando o narrador retorna aos lugares de sua infância e relembra não apenas os medos e traumas, mas também os elementos fantásticos que o ajudaram a sobreviver àquele período, somos levados a projetar a crença de que a infância guarda um modo singular de ver o mundo, quase mágico, que a vida adulta repele.

Gaiman já havia explorado esse tema em O Livro do Cemitério, mas em O Oceano no Fim do Caminho, temos um personagem mais velho fazendo a mesma realização.

Logo antes de começar a esquecer mais uma vez o que aconteceu com ele e Lettie, o narrador pergunta à Sra. Hempstock:

“Eu passei?” Ao que ela responde: “Você não passa, ou reprova em ser uma pessoa, querido.” (tradução livre)

Esse pensamento utilitarista e prático, centrado em sucessos e derrotas, está ligado à vida adulta, à necessidade de ser produtivo e atender às expectativas. Lembrando uma frase de Allison em Clube dos Cinco: “Quando você cresce, seu coração morre“.

Clube dos Cinco, 1985. Dir. John Hughes | Imagem: Reprodução

Os medos que eram representados por monstros na infância se tornam concretos, mas as soluções se revelam menos fantásticas. O ato de retornar ao momento da infância, portanto, causa ao narrador uma redescoberta de si mesmo, de quem ele foi e de quem gostaria de ter sido.

Mesmo que em momentos ele se esqueça, de alguma forma, essas memórias sempre o acompanharão. Lettie estará sempre com ele, e por isso, ele volta frequentemente à fazenda Hempstock para lembrar.

Neil Gaiman se coloca na história e nos desafia a fazer o mesmo

O livro O oceano no fim do caminho ocupou o primeiro lugar entre as “fantasias de capa dura” na lista do jornal norte-americano The New York Times. Também recebeu o prêmio de “Livro do Ano” em 2013 do National Book Awards britânico. Em 2019, foi adaptado para os palcos do National Theatre em Londres, e em 2023 a peça retornou para uma curta temporada de sete semanas.

Imagem promocional da adaptação do livro para o teatro | Imagem: Theatre Weekly

Em seus agradecimentos, Gaiman esclarece que essa história não é sobre a sua própria família, mas esclarece que utilizou elementos de sua própria infância, como a cidade e a casa onde viveu.

Além disso, o narrador revela que ele é um artista, divorciado e com filhos já adultos, características compartilhadas com o autor. A dedicatória à sua ex-esposa, Amanda Palmer, com a frase “Para Amanda, que queria saber“, também sugere elementos semi-autobiográficos na obra.

Ainda nos agradecimentos, Gaiman menciona o mestre do terror, Stephen King. Os paralelos entre “O Oceano” e a obra de King, IT: A coisa, não passam despercebidos.

Assim como o narrador, as crianças de Derry apenas lembram de sua aventura contra Pennywise ao retornarem para a cidade anos depois, e também voltam a esquecer tudo ao partirem de lá. Isso reforça, por fim, que os limites entre a infância e a vida adulta são mais profundos do que podemos perceber.

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Historiadora e mestranda em Cinema e Audiovisual, com pesquisas voltadas para as relações entre os lugares ocupados por mulheres no cinema brasileiro. Apaixonada por arte, cinema e educação.
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