Matrix: a franquia que nos entregou uma nova forma de ver o mundo

Matrix: a franquia que nos entregou uma nova forma de ver o mundo

O ano de 1999 se classificou como um ano de referência para filmes estadunidenses, seja qual for o gênero. Afinal, foi nesse período que foram lançadas obras como: O Sexto Sentido (M. Night Shyamalan), Clube da Luta (David Fincher), A Bruxa de Blair (Eduardo Sánchez e Daniel Myrick), À Espera de um Milagre (Frank Darabont), 10 Coisas Que Eu Odeio em Você (Gil Junger), entre muitas outras. São longas que se tornaram os queridinhos de muita gente. Se vocês forem pesquisar, provavelmente vão encontrar muitos filmes que estão entre os seus favoritos. Mas além de todas essas obras, 1999 trouxe um longa que fez a cabeça de muita gente explodir: Matrix (Lilly e Lana Wachowski).

O que é a realidade? Vale a pena viver nela? Talvez estas sejam as principais perguntas que ecoam na mente do público que assistiu Matrix. O filme é considerado uma obra revolucionária que tratou do assunto da dependência tecnológica. Isso em uma época em que a internet e os smartphones ainda não dominavam o mundo. Para além disso, o longa trabalhou brilhantemente com efeitos especiais e fascinou o público com os ângulos de câmera.

A história nos apresenta ao hacker Neo (Keanu Reeves), que é convencido por Trinity (Carrie-Anne Moss) e Morpheus (Laurence Fishburne) a fazer parte de uma resistência que ele não fazia ideia que existia. O personagem começa a lutar contra um sistema que não sabia que o manipulava (pelo menos não da forma como acontece na narrativa). Em resumo, o mundo que Neo vive é uma ilusão (matrix) e alguns rebeldes se oferecem para resgatá-lo e levá-lo para a realidade.

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Trinity (Carrie-Anne Moss, Neo (Keanu Reeves) e Morpheus. Imagem | Reprodução

Assim, descobrimos com o protagonista como o mundo se transformou, após a tecnologia criada pelos humanos ter avançado o suficiente para ultrapassá-los e controlá-los. A tecnologia que foi criada para servir a humanidade passou a oprimi-la e a Terra virou um cenário caótico pós-apocalíptico. Porém, algumas pessoas ainda são capazes de manter seu intelecto e entender o que está acontecendo. Assim, tentam vencer o monstro que elas mesma criaram. É um enredo que serve de alerta para as escolhas humanas, mas que possui uma mensagem final positiva e esperançosa.

Um dos pontos altos da história, é que ela trabalha muito com questões filosóficas. Uma das análises mais interessantes é aquela que compara o filme com a alegoria da caverna de Platão. O que é algo que é costumeiramente discutido em aulas de filosofia e psicologia.

Alerta: O texto abaixo contém alguns spoilers da obra

Matrix e seus elementos cinematográficos

A forma como Matrix faz uso dos elementos audiovisuais é uma das coisas que mais chama a atenção. A maneira conforme a iluminação é trabalhada é uma delas. De acordo com isso, podemos pensar em algumas cenas iniciais do filme. Como o momento em que Neo é visto pela primeira vez no escritório no qual trabalha. Podemos observar uma iluminação mais suave, um tanto fraca, que combina com a função pacata que Neo exerce. Contudo, esta cena é muito mais clara do que qualquer lugar que tenha sido mostrado antes.

Assim, isso acaba por nos mostrar o contraste que é a vida do protagonista. Quando Neo está vivendo sua vida secreta de hacker, temos sempre uma iluminação mais escura com muitas sombras. O que remete a um clima mais misterioso, ilustrando a forma sigilosa como ele vive.

Já os efeitos especiais desempenham um papel importantíssimo na narrativa. Em um momento do longa, quando Neo encontra Morpheus pela primeira vez, avistamos o até então desconhecido personagem de costas, olhando para a janela. Quando ele mostra o rosto ao virar-se, podemos ouvir o som de um trovão, e vemos um relâmpago. Isso expõe a intimidação que Neo sente ao conhecer Morpheus. Podemos observar depois outro efeito semelhante enquanto o protagonista toma a pílula vermelha e depois quando ele sai daquele “casulo gosmento”.

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Mas com certeza o efeito mais famoso utilizado em Matrix é o Bullet Time. Foi uma das técnicas mais populares utilizadas no longa, que também está presente nos outros filmes da franquia. As câmeras foram colocadas em um círculo de 360 graus em torno da ação, em seguida, o conjunto de imagens é unido e reproduzido em câmera lenta.

Efeito Bullet Time
Efeito Bullet Time. Gif | Reprodução

Os movimentos de câmera e enquadramentos também são bem expressivos em Matrix. Quando Morpheus oferece as pílulas para Neo, é exibido um close-up dos seus óculos. Através das lentes podemos ver suas mãos estendidas. Em uma das lentes aparece a mão com a pílula vermelha, e na outra lente aparece a mão que está com a pílula azul.  E o reflexo de Neo aparece em ambas as lentes. Um pequeno plano e várias informações. Este enquadramento ilustra o peso da escolha que é dada a Neo. Ele pode encarar a verdade, ou voltar para a vida ilusória na matrix.

É interessante observar o reflexo de Neo nas lentes, enquanto decide qual pílula tomar, porque logo em seguida entendemos que ali ele não é real. Naquele momento ele ainda era uma projeção em um mundo computadorizado, ou seja, não passava de um reflexo. É um plano que transmite muito do que deve estar passando na cabeça de Neo naquele instante. Portanto, é relevante analisar como a história é contada através de tais elementos.

Morpheus oferecendo as pílulas para Neo em Matrix
Morpheus oferecendo as pílulas para Neo. Imagem | Reprodução

A Síndrome de Trinity

Não há como negar que Matrix é um filme incrível e que revolucionou a indústria cinematográfica. Contudo, há nele pontos para se problematizar, e a personagem Trinity é o principal deles. Trinity é maravilhosa: inteligente, forte, corajosa, decidida, toma a frente de várias lutas. O problema é que em determinado ponto ela passa a ser vista como uma mulher que não importa o quão incrível seja, é sempre representada como alguém que nunca será capaz de alcançar mais do que um homem.

E devido a isso surgiu o termo “Síndrome de Trinity”, criado pela crítica Tasha Robinson. O termo serve para classificar as personagens femininas que são capacitadas para fazerem qualquer coisa, inclusive melhor do que os homens, mas com o passar da narrativa vão sendo deixadas de lado. Essas personagens vão sendo apagadas e não mais voltam a ser tão independentes e livres como aparecem na primeira cena. De acordo com Tasha, essas estruturas cinematográficas incluem mulheres na narrativa para reafirmar a presença feminina. Contudo, no fim, a obra não se preocupa em promover um real espaço para tais personagens.

Trinity em Matrix
Trinity é uma personagem incrível que merecia mais espaço na narrativa. Imagem | Reprodução
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Trinity é construída para ser uma espécie de suporte para Neo. É alguém com um potencial enorme, mas não faz nada além de auxiliar o protagonista a alcançar seus objetivos. Em um momento da narrativa, Trinity chega a levar um tiro e morre, e isso ocorre simplesmente para fortalecer o lado heroico do protagonista, que consegue trazê-la de volta a vida. Nas sequências do filme, ela mantém a devoção por Neo e não faz nada muito além de ser apaixonada por ele. Ela vive e morre por ele.

A “Síndrome de Trinity”, portanto, consiste nesse hábito de trazerem mulheres como personagens fortes, mas elas pouco contribuem com a narrativa a qual estão inseridas. Ou que acabam por não fazerem muito em cena além de se machucarem ou morrerem pelo protagonista. E é justamente esse o final que Trinity recebe.

As sequências de Matrix

Matrix Reloaded e Matrix Revolutions, ambos dirigidos pelas irmãs Wachowski, foram lançados com seis meses de diferença em 2003. A princípio, a recepção do público e crítica foi meio morna, mas depois os longas ficaram conhecidos como uma decepção. Em alguns aspectos os filmes deixam sim a desejar, mas no departamento de ação e efeitos especiais, eles ainda conseguem se manter muito bons. A narrativa de Neo como “o escolhido” vai sendo melhor compreendida e abraçamos também uma maior compreensão tanto da matrix, quanto do mundo real.

Porém, uma das maiores reclamações da crítica e do público é que a essência filosófica da narrativa vai sendo mais deixada de lado, principalmente em Matrix Revolutions. O terceiro filme da franquia opta por seguir mais o caminho da ação e se afasta um tanto das abordagens reflexivas. Sendo assim, a perspectiva mais intimista que a narrativa costumava pregar vai se perdendo. E o filme acaba se assemelhando a premissa de qualquer outro filme de ação.

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Neo e os clones do agente Smith (Hugo Weaving) em Matrix Reloaded.
Neo e os clones do agente Smith (Hugo Weaving) em Matrix Reloaded. Imagem | Reprodução

Quanto ao próximo lançamento da franquia, Matrix Resurrections, que conta com o retorno de Lana Wachowski na direção e como co-roteirista, não se sabe ao certo o que está por vir, porém há algumas pistas no trailer. De alguma forma, Trinity e Neo estão de volta. Há um momento que mostra Neo aparentemente sendo curado por máquinas, então há especulações de que eles foram colocados de volta na matrix e esqueceram tudo o que já viveram.

O trailer também conta com a participação de um Morpheus mais jovem. Agora, interpretado por Yahya Abdul-Mateen II, (ator que vem recebendo recentemente muitos elogios por protagonizar o filme A Lenda de Candyman). E uma outra atriz nova nesse univero é a Jessica Yu Li Henwick. Ela interpretou Nymeria, uma das serpentes da areia e filha do príncipe Oberyn Martell (Pedro Pascal), em Game of Thrones. Levantando a possibilidade de que deve ter sido criada uma nova matrix e o questionamento de que Neo ainda é ou não o “escolhido”.

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Carrie-Anne Moss e Keanu Reeves no set de Matrix Resurrections
Carrie-Anne Moss e Keanu Reeves no set de Matrix Resurrections. Imagem | Reprodução

Por fim, a até então trilogia de Matrix levanta a complicada questão do quanto os seres humanos e a máquina são dependentes um do outro. Assim como a tecnologia se torna uma ameaça para a raça humana, tais humanos recorrem a tecnologia para resolver seus problemas. Quando Morpheus oferece a Neo para que escolha entre a pílula vermelha ou a azul, ele, de certa forma, oferece a escolha entre livre arbítrio e destino.

O destino é o que impera na matrix, já que os acontecimentos do mundo estão preestabelecidos e as ações predeterminadas. Qualquer escolha que se faça é simplesmente a ilusão de tal escolha. Enquanto que no mundo real as pessoas têm autonomia sobre seus atos, podem agir individualmente e fazer suas escolhas acertadamente, elas também cometem erros. Neo opta pela pílula vermelha, o mundo real, e nos mostra que o livre arbítrio pode não ser assim tão bonito quanto acreditamos que seja.

O mundo verdadeiro é perigoso, ameaçador e miserável. O prazer existe praticamente só dentro da matrix, o que, na verdade, é apenas uma projeção. Ainda assim, pessoas como Trinity, Morpheus e Neo preferem viver o livre arbítrio, não importa o quão difícil possa ser. Dessa forma, a franquia Matrix nos sugere que a responsabilidade de escolher entre um mundo verdadeiro e um falso é nossa. Assim como nos faz pensar como a humanidade reagiria a um possível embate contra a tecnologia. E você, já parou para pensar se tomaria a pílula vermelha ou a azul?

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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