Da Magia à Sedução, filme de 1998 dirigido por Griffin Dune e estrelado por Sandra Bullock e Nicole Kidman, é uma das histórias mais encantadoras do cinema. Ela tem seu lugar de destaque no coração dos fãs de narrativas sobre magia, força feminina, irmandade e luta contra a misoginia e relacionamentos abusivos.
Na trama, adaptada do livro homônimo da autora estadunidense Alice Hoffman, acompanhamos a vida das irmãs Sally e Gillian Owens (interpretadas respectivamente por Sandra e Nicole), que convivem com uma maldição familiar lançada por Maria (Caprice Benedetti), antepassada bruxa condenada à forca no período da caça às bruxas. Ao ser abandonada por seu grande amor, ela lança uma maldição sobre as descendentes para que qualquer homem que ousasse amá-las fosse perseguido pela morte.
No mais novo livro da Saga das Owens (composta por As Regras do Amor e da Magia, Da Magia à Sedução e O Livro de Magia), Lições de Magia, lançado no Brasil em 2022, o triste passado de Maria é narrado da infância até a vida adulta, e mostra uma história transpassada pelo medo, violências e perdas, mas sobretudo pela força da união entre mulheres.
As trágicas linhas do destino que se cruzam em Lições de Magia
A vida da solitária Hannah Owens muda drasticamente quando, no inverno de 1664, encontra um lindo bebê próximo ao seu aconchegante chalé no Campo da Devoção, no Condado de Essex, Inglaterra. A bela e esperta garotinha de cabelos pretos e olhos acinzentados, acompanhada por um corvo de olhinhos atentos chamado Cadin, tem o nome “Maria” bordado com linha azul, cor da proteção, na manta que a cobre e protege da neve. Hannah repara logo que sua mais nova companhia tem muito em comum consigo, além de uma vida difícil, que no caso da bebê começou desde o parto: ambas descendem de uma linhagem de bruxas.
“Ela já sabia que o passado tinha ficado para trás. Nunca mais veria outra mulher queimar.” (p. 43)
A senhora, então, a acolhe e a cria como sua filha, passando para Maria suas sabedorias milenares, derivadas da Arte sem Nome, encantamentos e feitiços lançados através das palavras, intenções e do conhecimento de plantas e ervas medicinais. Esse conhecimento ajuda tanto Hannah e Maria quanto às mulheres da região. Por doenças, necessidades diversas e, sobretudo, por questões amorosas, as mulheres recorrem à Hannah para obterem auxílio mágico.
Não demora muito para que a garota também desperte o conhecimento adormecido em si, se tornando uma menina cada dia mais sábia e conhecedora dos processos de cura e proteção.
Certo dia, quando Maria já tinha 6 anos, uma jovem de cabelos ruivos e olhos claros surge no chalé de Hannah. Assustada e fugindo do marido opressor, Rebecca encontra naquele lar o abrigo necessário, mas consigo carrega o peso do passado e de suas ações que, no fim, se tornarão trágicas para as três.
“Mais de vinte anos antes, Matthew Hopkins, um jovem da aldeia de Manningtree, nas margens do rio Stour, no Condado de Essex, havia começado sua perversa caça às bruxas. Auxiliado pelos Condes de Warwick e Manchester, ele se tornou o maior caçador de bruxas da região e era regiamente pago para enviar mulheres para a morte. (…)
No dia em que foi enterrado, muitas mulheres do Condado de Essex comemoraram dançando ao redor de fogueiras e entornando canecas de cerveja. Quanto à Hannah, ela tomou uma xícara de chá naquele dia, feito de uma mistura preparada para lhe dar coragem durante aqueles tempos terríveis, quando uma mulher não podia andar na rua sem correr o risco de ser acusada de alguma transgressão, especialmente se um livro fosse encontrado entre os seus pertences ou se ela soubesse ler e escrever o próprio nome.” (p. 15)
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Lições de Magia é uma obra que atravessa o tempo e a memória. Narrado a partir do ponto de vista de Maria conforme cresce, os leitores acompanham as mudanças na vida da garota e nos lugares que a cercam: a colonização de novas ilhas, o contato com povos caribenhos, espanhóis e holandeses, as viagens em busca de alimentos diversificados e como esta exploração da terra e do povo do ocidente se cruza com a vida de mulheres inteligentes, livres e detentoras de poderes, sobrenaturais ou não. São mulheres lidas por uma sociedade patriarcal e misógina como errantes, demônios e bruxas.
Há no livro a mescla entre ficção e realidade fidedigna aos séculos passados, o que também instiga os leitores a não largarem as páginas até o final da leitura. Além disso, muitos eventos históricos marcantes, como a caça às bruxas e os tribunais em Salem percorrem a narrativa e são diretamente ligados à vida de Maria e das demais mulheres que ela conhece pelo caminho. Isso deixa tudo ainda mais verossímil e, por muitas vezes, cruelmente real.
Lições de Magia é salpicada por um punhado de magia e afeto
Para além da dor e do sofrimento apresentados em Lições de Magia, o afeto e a irmandade estão sempre presentes nas linhas enfeitiçadas por Alice Hoffman. Assim como no filme, os espectadores puderam acompanhar o poder da força do amor, da amizade e dos laços entre entes queridos. Nesta obra ainda há muito espaço para os sonhos compartilhados que só se tornam concretos com a ajuda dos pares que fazem parte, sobretudo, da vida de Maria.
“Maria entendeu que uma mulher com suas próprias crenças e que se recusava a se curvar àqueles que ela acredita estarem errados pode ser considerada perigosa. No condado onde ela tinha crescido, na Inglaterra, elas a chamariam de bruxa, diriam que ela tinha um rabo e falava com Satanás, mas na Espanha e em Portugal eles diziam que os judeus tinham poderes das trevas, que podiam controlar os mares e as estrelas, que podiam fazer magia para amaldiçoar as pessoas ou mantê-las vivas.” (p. 121)
Sendo uma história narrada sobre bruxas e a luta das mulheres por protagonismo na sociedade, Lições de Magia traz mulheres diversas e bem construídas. São conhecidas ou amigas inseparáveis, empregadoras, donas de negócios, donas de casa, mães ou filhas. Cada uma delas carregando em si um pouco das mulheres que conhecemos em nossas vidas, pessoas reais que, apesar de existirem sob o peso das injustas e violentas relações de gênero desde tempos longínquos, sobrevivem com graça, força e esperança nos dias melhores que virão.
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Pouquíssimos são os homens mencionados na obra. Um deles é John Hawthorne, que inclusive foi dos magistrados e inquisidores das bruxas de Salem na vida real, e que aparece como personagem e peça importante do destino de Maria. John é um homem vil, ganancioso e orgulhoso que encontrará em Maria o embate entre tudo aquilo que é e o que ele próprio e o fundamentalismo religioso de Salem abominavam: uma mulher livre e capaz de encarar toda a misoginia da época de frente e com a cabeça erguida.
Mas em Lições de Magia também há espaço para homens detentores de uma masculinidade não tóxica, que inclusive servem de aliados para que Maria atravesse os oceanos literais e de suas emoções. Um deles é Samuel Dias, filho de Abraham Dias, capitão do navio responsável por levar Maria, já com 16 anos, de Curaçao (o local para o qual precisou embarcar ainda pequena) para Boston. Ele é um dos personagens mais engraçados, iluminados e gentis da história, assim como Finney, personagem que ajuda Maria em diversos momentos decisivos, e que une-se à história dela por também carregar nos ombros o peso de seus próprios fantasmas.
Maria Owens não quer ver nenhuma mulher queimar
Acompanhar a evolução de Maria desde bebê até a vida adulta nos permite traçar paralelos entre a vida da personagem e a nossa. Desde muito pequena, a garota teve de conviver com as incertezas sobre a sua própria natureza e os olhares estranhos que a sociedade distribuía para ela e para os seus dons. Ela conviveu com a ausência da mãe biológica, a incógnita sobre o passado, além das perdas terríveis que dilaceraram o seu coração e que quase conseguiram tirar seu brilho e vivacidade por completo.
“Há segredos que devem ser guardados e a maioria deles tem relação com as angústias do coração humano, pois a tristeza expressada em voz alta é uma tristeza vivida duas vezes”. (p. 28)
Assim como muitas de nós, a jovem tem sua narrativa atravessada por desilusões amorosas devastadoras, cujas cicatrizes e consequências tendem, na maioria das vezes, a pender para um lado em particular da relação: o das mulheres. É em Curaçao, ilha holandesa situada no Caribe, que Maria, ainda adolescente, é seduzida por um homem. E através de suas falsas promessas, Maria é abandonada e se vê grávida dele. Dessa forma, a personagem tem a juventude roubada, estopim para que as linhas de seu destino sejam reviradas tantas e tantas vezes.
Da relação problemática com o homem em questão, muitos anos mais velho do que ela, nasce Faith, a fé e a esperança que mantém a protagonista de Lições de Magia motivada a seguir em frente e a buscar por respostas daquele que deveria cumprir com o papel de pai presente.
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Apesar de ter de administrar a própria vida como mãe solo desde muito cedo, Maria Owens não deixa de se priorizar enquanto também passa para Faith os ensinamentos recebidos por Hannah. No entanto, o grande entrave de sua vida é aprender a amar de novo e a confiar nos homens, sendo que seus exemplos de masculinidade são aterradores.
É daí que vem de Maria a necessidade de jogar um feitiço, que acaba se tornando uma maldição, em suas descendentes. As demais mulheres da família Owens, ao descobrirem seu verdadeiro amor, deveriam lidar com a dor da morte do parceiro para que a dor das violências físicas e psicológicas não as atormentasse. No entanto, tudo mudar quando os sentimentos dela por Samuel começam a se intensificar, mas era tarde demais — a maldição já estava lançada.
“— Nem sempre temos controle sobre o amor — disse ela à filha.
— Eu sempre terei. — respondeu Maria, já calçando as botas vermelhas. Embora ela tivesse adorado o presente, iria evitar seguir os passos da mãe a todo custo. E jurou para si mesma que nunca deixaria o amor comandar a vida dela”. (p. 68)
Há um bom romance e drama em Lições de Magia sem que tenhamos uma protagonista subserviente ao seu par romântico. Para além da maldição lançada em si e nas demais mulheres da família, Maria é uma mulher que quer ter independência dentro do próprio relacionamento. Ou seja, ele Samuel são livres para irem e voltarem quando bem entendem, sem que o amor dos dois resulte em co-dependência e caia nas tão alarmantes problemáticas enfrentadas por diversos casais.
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Conforme amadurece, Maria assume para si o papel da Deusa Tríplice, sendo Donzela, Mãe e, em termos, Anciã. Por ser detentora do saber de Hannah e daquele que ela mesma, a duras penas, a protagonista aprende ao longo do caminho e molda a mulher madura que ela se torna. Maria, portanto, é real porque erra muitas vezes tentando acertar, não medindo as consequências para que se faça vista e ouvida.
“Uma mulher sozinha que sabia ler e escrever sempre era vista com suspeita. As palavras eram mágicas. Os livros não eram confiáveis. O que os homens não conseguiam entender, eles queriam destruir”. (p. 208)
Leitora e escritora voraz, algo considerado transgressor no contexto em que vivia, ela repassa à Faith seu amor pelas letras, fazendo com que a menina cresça com voz e disposta a também desafiar as condições impostas pela sociedade. A relação de amor e amizade entre mãe e filha é emocionante. Maria oferece à filha aquilo que em momentos decisivos de sua meninice lhe faltou: a coragem para desafiar o mundo sem ser machucada no processo e a sabedoria para dizer “não” quando necessário.
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Tanta sabedoria é utilizada por Maria para ajudar as mulheres ao seu redor, e é em Salem que a personagem se depara com a expressão máxima da união feminina: vendo meninas e mulheres inocentes sendo presas e mortas sob acusações absurdas de bruxaria, ela faz uma promessa para si e para todas as outras: tentará o possível para que, a partir de sua existência naquele local, mais nenhuma mulher seja queimada.
Uma trama plural, encantadora e de tirar o fôlego
Para além de Maria, que sozinha já torna Lições de Magia um livro memorável, outros aspectos da obra certamente encantarão os leitores: a chamada Arte sem Nome praticada por Hannah, Maria e Faith, cujo lema é “faça o que quiser, mas não prejudique ninguém. O que você oferece lhe é devolvido multiplicado por três”. Isso tem um grande espaço na obra e se assemelha muito à bruxaria natural.
Em diversas passagens do livro somos apresentadas às páginas dos grimórios de Hannah e Maria, que comportam não somente dicas de feitiços e manipulações de ervas, plantas e frutas, como também receitas de chás e doces. Afinal, a gastronomia também é um tipo de magia (duvido que você termine a leitura sem ter vontade de experimentar as receitas do Chá da Coragem e a do famoso Bolo Embriagado, receitas passadas de geração para geração).
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Há espaço também para menções de personagens históricos, como Tituba, mulher negra de Barbados escravizada em Salem, que teve de confessar suspeitas de bruxaria para que se visse livre e pudesse contar sua própria história. Ela é lindamente narrada no romance ficcional Eu, Tituba, Bruxa Negra de Salem, da autora negra guadalupense Maryse Condé.
Outro destaque em Lições de Magia são os animaizinhos familiares das mulheres Owens: Cadin, o corvo, e Guardião, o lobo adotado por Maria e Faith ainda filhote, funcionam como extensão do corpo e do espírito das duas, oferecendo proteção, carinho e momentos emocionantes ao longo do livro.
A escrita de Alice Hoffman é fluída, poética, envolvente e, como um bom feitiço e uma xícara de chá, é capaz de aquecer o coração enquanto nos recuperamos das tristes passagens que também comovem e nos fazem refletir. A edição da Editora Jangada apresenta alguns erros de revisão e tradução, mas que não comprometem a apreciação da leitura.
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“Essas são as lições que é preciso aprender. Beba chá de camomila para acalmar o espírito. Se tiver uma gripe, se alimente direito. (…) Leia quantos livros puder. Sempre escolha a coragem. Nunca assista outra mulher queimar. Saiba que o amor é a única saída”. (p. 428)
Lições de Magia é um daqueles livros que possuem um ritmo e um fôlego impossíveis de largar até o desfecho. A história de Maria enfeitiça, comove e reitera, sobretudo para nós, mulheres: o nosso lugar é onde bem entendermos. Não mais queimaremos.
Lições de Magia
Alice Hoffman
432 páginas
Editora Jangada
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