Resistência cor-de-rosa: como “Barbie” escancarou o machismo estrutural

Resistência cor-de-rosa: como “Barbie” escancarou o machismo estrutural

No vasto mundo das cores, onde cada matiz carrega consigo diferentes significados e simbolismos, o rosa permanece envolto em estereótipos de gênero. Nessa paleta de percepções, uma figura se destaca desde sua criação: a boneca Barbie. Ao longo dos anos, ela tem sido não apenas um brinquedo, mas um ícone cultural que reflete os padrões e preconceitos da sociedade.

Ao escolher o rosa para ilustrar majoritariamente o vestuário dessa famosa figura feminina, a Mattel não apenas selecionou uma cor, mas iniciou uma complexa narrativa sobre o universo feminino. Apesar de mais amplamente discutido na atualidade, o machismo estrutural ainda é um véu invisível que permeia as relações de sociedade e segue levantando barreiras e determinando padrões cada vez mais inalcançáveis para as mulheres.

Margot Robbie em cena de "Barbie" (2023)
Margot Robbie em cena de “Barbie” | Foto: Reprodução

Portanto, viver em um “mundo cor-de-rosa”, tal qual a boneca com a qual grande parte das mulheres de hoje cresceu brincando, acaba se tornando praticamente impossível, conforme ilustrado no filme em questão. O longa dirigido por Greta Gerwig encheu o público de expectativas desde o anúncio de seu lançamento.

Apesar de os trailers já mostrarem o teor feminista da produção, muitas pessoas ainda esperavam um enredo semelhante às animações protagonizadas pela boneca, voltadas ao público infantil. E, bem… Não foi isso o que aconteceu.

A polêmica do cor-de-rosa reafirmou a ideia geral do filme

Apesar de ter estreado com notas acima da média em sites de críticas, como o Rotten Tomatoes e o Metacritic, o filme e o público acabaram recebendo críticas negativas na internet na primeira semana da obra nos cinemas. Tudo isso pelo motivo mais bobo que se possa imaginar: o uso de roupas cor-de-rosa. Mas como algo tão supérfluo gerou tanto incômodo? A resposta é: não é algo supérfluo e a justificativa é mais profunda do que parece.

Público na estreia de "Barbie" em cinema do interior de São Paulo | Foto: Marcelo Rocha
Público na estreia de “Barbie” em cinema do interior de São Paulo | Foto: Marcelo Rocha

Muito além de seguir uma tendência lançada na internet, o uso de roupas rosas se tornou praticamente um ato político, principalmente quando se leva em conta a mensagem passada pelo longa. As mensagens de repúdio espalhadas pela internet escancaram o machismo enraizado na sociedade, de forma que quando algum grupo exterioriza algo considerado “feminino demais”, acaba causando desconforto a quem não faz parte de tal comunidade.

A melhor maneira de ilustrar o quão problemáticas essas críticas são é utilizar de dois pesos e duas medidas. Em abril de 2019, estreava Vingadores Ultimato, a continuação de uma franquia com público fiel, que fez tanto sucesso quanto Barbie e conquistou o posto de maior bilheteria mundial naquele ano. Na época (assim como acontecem em exibições de filmes de super-heróis ainda hoje), os espectadores usavam seus melhores cosplays de personagens icônicos da Marvel para passarem pouco mais de 3 horas dentro de uma sala de cinema.

A internet foi à loucura, choveram elogios para as caracterizações e para a paixão dos fãs pela franquia. Praticamente não houve questionamentos ou ataques relacionados ao uso de fantasias elaboradas ou de maquiagens extravagantes que imitavam ou faziam referência a determinados personagens. E isso se deve ao estereótipo de filmes de super-heróis serem majoritariamente masculinos

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Segundo o Índice de Normas Sociais de Gênero (INSG), em pesquisa divulgada em junho de 2023, 84,5% das pessoas no Brasil possuem algum tipo de preconceito contra mulheres. Esse estigma permanece inalterado há uma década. A pesquisa constatou que tanto homens quanto mulheres contribuem para essa forma de discriminação, o que pode legitimar atos de violência. A pesquisa mostra que nove em cada 10 pessoas, independentemente do gênero, têm preconceito contra as mulheres em todo o mundo.

Enquanto a Barbie pensava que havia resolvido os problemas de todas as mulheres ao ser a representação de tudo o que poderíamos ser, o mundo real estava ocupado demais julgando e menosprezando todas as ações e escolhas femininas para poder avançar nesse quesito. Essa foi a razão pela qual se sentiu tão desconfortável quando colocou seus pezinhos de boneca na realidade, e foi esse mesmo motivo que fez o Ken sentir-se tão à vontade por aqui. 

Numa sociedade moldada para favorecer os homens, qualquer conquista de manifestações femininas é recebida com desprezo e hostilidade na internet, onde as opiniões são livremente expressadas e amplamente difundidas. Essa reação negativa e muitas vezes ofensiva reflete como persistem estereótipos de gênero enraizados, que tendem a diminuir ou ridicularizar tudo o que é associado ao feminino.

Margot Robbie e Ryan Gosling em cena de "Barbie" (2023)
Margot Robbie e Ryan Gosling em cena de “Barbie” | Foto: Reprodução

O cor-de-rosa é símbolo de pertencimento

A sociedade muitas vezes perpetua estereótipos de gênero que impactam diretamente a sensação de pertencimento das mulheres. Enquanto os homens geralmente têm mais liberdade para se identificarem com diversos grupos e interesses socialmente aceitos, nós frequentemente nos deparamos com situações onde somos julgadas como exageradas ou fora de moda quando somos associadas a símbolos ou situações “femininas demais”.

Essa diferenciação é clara quando se analisa como as pessoas reagem ao uso do rosa em diferentes gêneros. Homens que escolhem vestir rosa em público, especialmente para assistirem filmes como esse, muitas vezes são elogiados e vistos como “desconstruídos” e “modernos”.

Essa afirmação pode ser confirmada com vídeo viral de um grupo de homens que resolveu vestir ternos rosa para prestigiar a estreia do longa. As pessoas ao redor apenas sorriem, tiram fotos e filmam, mas não expressam os olhares de julgamento que a maioria das mulheres precisou enfrentar na fila do cinema.

O uso do rosa nesse contexto adquire um significado mais profundo ao alinhar-se com a ideia que a boneca tentou transmitir desde seu surgimento: a mulher pode ser o que ela quiser. O rosa tem sido muitas vezes estigmatizado e usado para reforçar estereótipos de gênero restritivos, sugerindo que apenas as mulheres devem se identificar com essa cor.

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No entanto, Greta Gerwig desafia essas convenções sociais ao empoderar as mulheres e encorajá-las a se expressarem livremente, independentemente de normas de gênero. A cor rosa se torna, então, uma representação simbólica da força feminina e da busca por igualdade de oportunidades.

Em conclusão, o motivo do incômodo com a cor rosa é o mesmo pelo qual muitos homens se sentiram desconfortáveis ao assistir ao filme: é difícil ver o feminino ganhar destaque em um mundo feito para os homens. Mais difícil ainda é ver uma simbologia estereotipada sendo usada para gerar o efeito contrário do esperado.

Assim, o uso do rosa no filme da Barbie não é apenas uma escolha estética, mas um ato de resistência contra a imposição de limites às possibilidades e expressões femininas. É mais uma das milhares de afirmações de que nós temos o direito de ser quem desejamos ser, independentemente da aprovação ou não de outras pessoas. 

Cena de "Barbie" representando a presidência e o parlamento da Barbielândia
Cena de “Barbie” representando a presidência e o parlamento da Barbielândia | GIF: Reprodução

Sabemos que, ao contrário do que as Barbies acreditavam no início do filme, os problemas do feminismo não foram resolvidos com a criação da boneca. Principalmente se levarmos em conta os estereótipos corporais atribuídos a ela ao longo das décadas.

Mas precisamos admitir que, graças a ela, em 2023, usar rosa ganhou outro significado.

Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.

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Uma jornalista apaixonada por música, literatura e cinema. Seus maiores hobbies incluem criar playlists para personagens fictícios e falar sobre Taylor Swift nas redes sociais.
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