Medida Provisória: futuro distópico que parece não estar tão distante

Medida Provisória: futuro distópico que parece não estar tão distante

Embora o Brasil possua uma população notavelmente diversificada, a discriminação racial impera de forma absurda por aqui. De acordo com o IBGE, as pessoas pretas e pardas representam cerca de 56% da população brasileira, em um país que já supera a quantia de 213 milhões de habitantes. Ainda assim, o racismo se estabelece como um acontecimento que está entre as estruturas da sociedade. Este fato fica evidente quando observamos os abismos sociais existentes entre cidadãos negros e brancos.

Como sabemos, tudo isso é resquício dos lamentáveis 388 anos de escravidão que o Brasil abrigou. Após a libertação dessas pessoas escravizadas, que se deu através de um incompleto processo de abolição, a elas não foi dedicada qualquer intenção positiva que promovesse uma inserção social. Pelo contrário, já que a mão de obra de negros e negras não poderia mais ser explorada da forma como era antes, seria muito mais interessante que sumissem. E assim surgiu a política de branqueamento, que tinha como intenção fazer com que a raça negra desaparecesse do Brasil em algumas gerações através de miscigenações entre negros e brancos.

Obviamente tal processo de branqueamento não deu certo e, atualmente, como já foi visto, pessoas autodeclaradas negras são a maioria no país. Mas e se essa ideia de branqueamento fosse ainda um desejo vigente dos governantes e da elite brasileira? E se voltassem a idealizar tal branqueamento novamente, porém não através da miscigenação entre as gerações, mas sim “devolvendo” as pessoas negras para países da África? E ainda ousando usar como desculpa a reparação histórica e ignorando totalmente tudo o que essas pessoas construíram por aqui.

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É a partir dessa premissa que Medida Provisória (2022) tem sua narrativa construída. O filme traz Lázaro Ramos assumindo a direção de um longa pela segunda vez, mas a primeira em uma obra de ficção. Antes disso, ele já tinha dirigido, ao lado de Thiago Gomes, o documentário Bando, um Filme de: (2018), que conta a história da trajetória do Bando de Teatro Olodum.

Antônio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo) e André (Seu Jorge), elenco de Medida Provisória.
Antônio (Alfred Enoch), Capitu (Taís Araújo) e André (Seu Jorge). Imagem | Reprodução.

Medida Provisória tem seu roteiro inspirado na peça teatral Namíbia, Não!, de autoria de Aldri Anunciação, e que em 2011 também contou com a direção de Lázaro nos palcos teatrais. Em um futuro brasileiro distópico (e talvez não muito distante), o enredo nos introduz a uma cultura na qual pessoas negras passam a serem definidas como pessoas de “melanina acentuada”. Nesse universo, o governo emite uma medida provisória que determina que essas pessoas devem ser enviadas para o país de origem de seus ancestrais.

Alerta: o texto abaixo contém spoilers da obra

O que a princípio se inicia como uma proposta governamental voluntária, não leva muito tempo para se tornar obrigatória, com o surgimento de uma perseguição racial absurda. Assistimos na tela pessoas negras sendo perseguidas, maltratadas e capturadas para serem enviadas para um outro país. Tal qual um dia aconteceu com as pessoas que foram trazidas a força de países africanos para serem escravizadas aqui e pelo mundo afora.

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E nesse contexto está inserido o jovem advogado Antônio (Alfred Enochtambém conhecido como o Dino da franquia Harry Potter). Antes da medida provisória entrar em vigor, vemos ele trabalhando por modificações nas leis, procurando por reparação histórica pelo período de escravidão. Antônio é casado com a médica Capitu (Taís Araújo) e o casal divide a sua moradia com André (Seu Jorge), jornalista militante que é primo de Antônio.

O trio protagonista do filme "Medida Provisória", de Lázaro Ramos.
O trio protagonista andando pelas ruas do Rio de Janeiro antes de a medida provisória ser implementada. Imagem | Reprodução

A partir do momento em que a medida provisória é aprovada, Antônio e André ficam restritos ao apartamento no qual vivem. Amparados por uma lei que não permite que moradias sejam invadidas, eles têm no confinamento dentro de casa, a única forma de não serem capturados. Enquanto isso, Capitu consegue se abrigar em um afro-bunker, local que faz referência aos quilombos, pois é um esconderijo que funciona para acolher as pessoas negras que conseguiram escapar de serem presas.

Medida Provisória e as referências históricas trazidas à trama

A responsável por comandar a operação “regresso à África”, na região na qual vivem os protagonistas, é uma inflexível funcionária do governo chamada Isabel (Adriana Esteves). Apesar de ser representada de uma forma um tanto caricata e às vezes exagerada, a personagem consegue caracterizar em si toda a hostilidade que uma sociedade racista tem para com a população afro-brasileira. Uma hostilidade velada, que aos poucos começa a se mostrar mais e mais agressiva através de discursos oficiais. O que podemos observar claramente em uma das falas de Isabel: “Racista jamais, eu só estou fazendo meu trabalho”.

Lázaro Ramos, Adriana Esteves e Pablo Sanabio no set de Medida Provisória.
Lázaro Ramos, Adriana Esteves e Pablo Sanabio no set de Medida Provisória. Imagem: Instagram @medidaprovisoriaofilme
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Outro fato interessante que é válido notar na personagem de Adriana Esteves, é que ela possui o mesmo nome da princesa que assinou a Lei Áurea. Como sabemos, a benevolência para com os escravizados não foi o principal motivo que levou a princesa Isabel a assinar a lei. Na real, entre as principais razões para tal assinatura temos: o Brasil ser muito pressionado, tanto de forma interna quanto externa; e o regime escravagista começar a se tornar inviável economicamente, ou seja, a abolição foi uma medida de protecionismo econômico.

Os trâmites para que a Lei Áurea fosse assinada não giravam em torno de motivações humanas, mas sim econômicas. A libertação dos escravizados foi sim um marco e é indiscutível seu valor, porém não se pode deixar de lado que a falta de planejamento e importância dada por parte dos governantes (incluindo a princesa Isabel) resultou em muita dor, sofrimento e na perpetuação do racismo.

Colocadas às margens da sociedade, as pessoas negras que agora estavam livres, continuavam sendo maltratadas por um governo que as rejeitava. Assim como acontece atualmente na nossa realidade e como o filme nos mostra, a população afro-brasileira ainda é rejeitada pelo governo. E na obra fílmica temos como uma das principais pessoas preocupadas em implementar a medida provisória 1888 uma mulher que, ironicamente, se chama Isabel.

Direitos básicos negados à população negra

Por denúncia de dona Izildinha (Renata Sorrah), vizinha de Antônio e André e típica “cidadã de bem, que não é racista pois tem até amigos negros”, Isabel descobre que os primos estão confinados no apartamento. É engraçado observar que Isabel e Izildinha são interpretadas por atrizes que ficaram famosas por darem vida a duas das maiores e mais lembradas vilãs da teledramaturgia brasileira: Carminha (Avenida Brasil – 2012) e Nazaré Tedesco (Senhora do Destino – 2004). As duas tentam convencer o advogado e o jornalista a saírem de casa e aceitarem irem para a África, mas eles se mantêm resistentes em querer continuar no Brasil.

Dona Izildinha (Renata Sorrah) e Isabel (Adriana Esteves) no filme de Lázaro Ramos.
Dona Izildinha (Renata Sorrah) e Isabel (Adriana Esteves), também conhecidas como Nazaré e Carminha. Imagem | Reprodução

Dessa forma, Isabel faz com que o fornecimento de água e energia elétrica sejam suspensos do apartamento dos dois. Além disso, ela impede que outras pessoas se aproximem da residência para levar mantimentos e deixa um guarda tomando conta caso eles saiam em algum momento. Assim como é proibido que qualquer pessoa negra consiga se comunicar através da tecnologia, cortando o sinal de telefone e internet da população com “melanina acentuada”.

Direitos básicos são negados a eles, assim como acontece no nosso cotidiano. Pessoas negras são a parcela da população brasileira que mais é afetada pela violência e a mais sujeita a violação de direitos. Assim, no longa, Antônio e André buscam resistir a fome e a sede para poderem usufruir de seu direito de ser brasileiro.

As adversidades sofridas pela mulher negra

Enquanto isso acompanhamos Capitu no afro-banker. Que é um local que além de abrigar as pessoas afro-brasileiras, busca prestar assistência e dar força para que essas pessoas continuem resistindo, mas que ao mesmo tempo mostra que isso não é tarefa fácil. Um desses momentos é quando Capitu desabafa em uma reunião. Em uma de suas falas mais potentes ela diz que “a mulher preta é a mula do mundo”. Segundo a própria Taís Araújo, o texto de sua personagem, que é proferido naquele momento, talvez seja o que melhor descreva a situação da mulher negra no mundo.

Capitu sendo recepcionada no afro-bunker por Berto (Emicida) em Medida Provisória.
Capitu sendo recepcionada no afro-bunker por Berto (Emicida). Imagem| Reprodução.

A mulher preta, assim como tantas outras, carrega as dores do mundo nas costas. Porém, as dores que vêm em cima da mulher preta carregam o plus do preconceito racial. Isso faz com que tudo seja muito mais difícil para ela. O termo “mula do mundo”, também já foi utilizado por Zora Neale Hurston em seu livro Seus olhos viam Deus (1937). Em um trecho da história, Nanny, a avó da protagonista Janie, fala algo como “a mulher negra é a mula do mundo, até onde consigo ver. E estive rezando para que isso seja diferente com você”. A avó ao mesmo tempo em que lamenta o destino das mulheres negras, também estima um destino diferente para a neta.

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O discurso de Nanny é semelhante ao de Capitu, que se mostra cansada de carregar o mundo nas costas e de sempre ter que se mostrar forte. Ninguém consegue ser forte o tempo todo, mas isso não quer dizer que ela vá desistir de lutar. Aliás, esse momento do discurso traz uma crescente no desenvolvimento da personagem de Taís Araújo. A bravura de uma mulher preta que está cansada de tanta discriminação e de carregar tanto peso nas costas. Mas quando achamos que a personagem vai nos entregar um pouco mais de si nas cenas seguinte, isso não mais acontece. Capitu é uma personagem fascinante e com um incrível potencial que poderia ser ainda melhor explorado.

Taís Araújo como Capitu.
Taís Araújo como Capitu. Imagem | Reprodução.

Equipe e elenco militantes

Ainda no afro-banker entre as pessoas que estão abrigadas, temos um velho conhecido que milita muito em suas músicas e na vida, Emicida, que interpreta Berto. Temos também Hilton Cobra, que interpreta Gaspar. Hilton fundou no Rio de Janeiro a Cia dos Comuns, que tem como objetivo expandir a presença de artistas negros e negras na cena contemporânea do teatro brasileiro.

Contamos ainda com a presença de Aldri Anunciação, artista que também está sempre engajado em causas relacionadas aos direitos das pessoas negras e que dá vida a Ivan. Aldri, além de ser o autor da peça que deu origem ao filme, também colaborou com o roteiro. Porém, infelizmente nenhum desses personagens é desenvolvido de uma maneira mais acentuada e a gente acaba não conseguindo se apegar a nenhum deles.

Contudo, ainda assim é um elenco de peso e que milita dentro e fora das telas. Medida Provisória é o longa-metragem brasileiro com a maior quantidade de pessoas negras inseridas, tanto no elenco quanto na equipe técnica. Segundo Lázaro Ramos, ele não sabe se isso é algo a se comemorar, já que aconteceu só agora. Mas é válido pensar que como sempre caminhamos a passos muito lentos, é significativo considerar que isso é sim algo a ser comemorado. O importante é que a partir de agora isso cresça cada vez mais.

A obra conta ainda com ester eggs e referências à várias importantes figuras negras conhecidas do meio artístico, histórico e político, como: Marielle Franco, Machado de Assis, Ruth Souza, Luiz Gama, Conceição Evaristo, entre outras.

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O retrato de Ruth Souza desenhado em uma das paredes do afro-bunker.
O retrato de Ruth Souza desenhado em uma das paredes do afro-bunker. Imagem: Instagram @medidaprovisoriaofilme.

Medida Provisória, apesar de tratar de um assunto muito sério, trabalha um tanto com o humor para retratar a situação do cenário político brasileiro contemporâneo. Como acontece com a questão das fake news. Isabel possui um perfil falso nas redes sociais, que utiliza para divulgar notícias falsas. E durante as eleições de 2018, sabemos que essa foi uma ferramenta muito aplicada para enganar o povo.

Também é trazido de forma cômica a votação da medida provisória. De forma semelhante a maneira como foi o processo de impeachment/golpe sofrido por Dilma Rousseff.  Vemos políticos proferindo discursos em nome de Deus e da família enquanto votam a favor de que os afro-brasileiros “voltem” para a África.

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Em relação aos meios técnicos é interessante observar a forma como a iluminação é trabalhada. A fotografia através da iluminação buscar ressaltar a pele negra, mostrar a beleza e a variação de tons de uma pessoa negra para outra. Além disso, a iluminação usada é mais forte, dando uma sensação maior de vida, até o momento em que as pessoas negras começam a ser capturadas e expulsas do país. A partir dessa situação a iluminação fica mais cinza e a fotografia mais opaca. Dando a entender que o Brasil está perdendo parte de sua diversidade, ficando menos colorido, menos vivo, menos potente.

Equipe e elenco do filme Medida Provisória majoritariamente formados por pessoas negras.
Equipe e elenco majoritariamente formados por pessoas negras. Imagem: Instagram @medidaprovisoriaofilme.

Pensando em cenário e locações foi uma boa ideia terem usado locais menos populares do Rio para dar mais um ar distópico para a narrativa. Já os enquadramentos apressados e os cortes ágeis às vezes incomodam um pouco. Assim como acontece com o uso excessivo de planos detalhes e zooms em determinados momentos. A obra também tem um pequeno problema com o ritmo e, por conta disso, em alguns momentos não consegue nos guiar muito bem pelo fio condutor do enredo. O roteiro, por exemplo, se perde em alguns pontos e traz algumas situações que acabam não fazendo muito sentido.

Além de tudo, Medida Provisória faz uso de muitas frases feitas, o que acaba dando um tom maniqueísta em excesso para a narrativa. Em especial, as cenas relacionadas a Isabel às vezes são tão maniqueístas que não nos passa veracidade.

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Capitu e Antônio, o casal de Medida Provisória.
Capitu e Antônio, o casal que a gente torce para que volte a se reencontrar. Imagem | Reprodução.

Ainda assim, Medida Provisória é um filme que vale a pena ser visto. É uma obra que contém alguns altos e baixos, mas é pautada dentro de um discurso político/social brasileiro que ainda precisa melhorar e muito. Pois o Brasil é, de fato, uma nação muito racista e finge que não é. Basta fazermos uma breve pesquisa na internet, que encontraremos inúmeras notícias relatando atos racistas que acontecem todos os dias.

E em época de um (des)governo que vive boicotando a cena cultural (Medida Provisória levou mais de uma ano para receber a autorização da Ancine que permitia a sua estreia no circuito nacional de cinemas), prestigiar o nosso cinema com um filme que coloca o racismo em pauta, com certeza é um ato de resistência. Principalmente quando se trata de uma obra que retrata o Brasil como o país racista que é e sempre foi, e que consegue apontar muitas questões para serem discutidas e pensadas depois que terminamos de assisti-lo.

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Denise é bacharela em cinema e tem amor incondicional por tal arte. Pesquisa e escreve sobre feminismo e a representação das mulheres na área do audiovisual. É colecionadora de DVDs, fã da Audrey Hepburn, apaixonada por Rock n' Roll e cultura pop. Adora os agitos dos shows de rock, mas tem nas salas de cinema seu local de refúgio e aconchego.
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