Clima sinistro, uma estética com um certo toque noir e muita inspiração em algumas obras de David Fincher estão entre as principais características que chamam a atenção de quem assiste ao longa O Estrangulador de Boston (2023), de Matt Ruskin.
No entanto, é a sua narrativa true crime, centrada em uma série de assassinatos contra mulheres ocorridos na cidade de Boston nos anos 1960, que é a verdadeira responsável pela atmosfera sombria da obra.
A história já foi adaptada várias vezes para o audiovisual. Uma das reproduções mais famosas é a do filme O Homem que Odiava as Mulheres (1968), de Richard Fleischer. Estrelado por Henry Fonda e Tony Curtis, o filme foca em um grupo de detetives que tentam desvendar quem está por trás dos crimes. As personagens femininas mal ganham destaque, exceto caso seja para mostrar o momento em que são as vítimas do assassino.
No entanto, O Estrangulador de Boston nos apresenta uma nova perspectiva desse caso. Inspirado em eventos reais, agora, em vez das investigações pertencerem exclusivamente aos homens, o filme abre espaço para falar sobre duas jornalistas: Loretta (Keira Knightley) e Jean (Carrie Coon). Loretta descobre uma conexão entre os assassinatos e, junto com Jean, são as primeiras a divulgar tal notícia através do jornal em que trabalham.
O Estrangulador de Boston e a jornalista determinada por trás da história
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Filmado na região de Boston, O Estrangulador de Boston está disponível na Star+. É um filme discreto, mas é contundente. Sua paleta de cores dessaturada e a trilha sonora incômoda transportam a angústia de uma cidade que se manteve refém do medo por cerca de um ano e meio, devido a esse caso.
É entre as ruas acinzentadas dessa cidade e uma redação jornalística monótona que conhecemos Loretta McLaughlin, uma jornalista responsável pela coluna “estilo de vida” no jornal Record American, em 1962.
Frustrada com as tarefas que lhe designam no trabalho, Loretta começa a acompanhar as reportagens criminais de outros jornais da cidade. Até que ela identifica um padrão que conecta alguns assassinatos recentes. Contudo, Jack (Chris Cooper), o editor-chefe do jornal, fica relutante em deixá-la investigar e eles fecham um acordo de que ela só fará isso em seu tempo “livre”.
Um sistema que falha com as mulheres
Após a matéria ser publicada, o jornal atrai a ira da polícia de Boston e o interesse do público pelo caso. O comissário da polícia menospreza a matéria de Loretta e reprova a atitude do jornal por enviar uma mulher para coletar informações com policiais, acusando-a injustamente de dar em cima deles.
Entendendo que estão no caminho certo, a redação atribui a Loretta uma parceira mais experiente para ajudá-la. Assim, Jean, uma das raras jornalistas femininas que possui alguma relevância na redação, se junta à Loretta nas investigações.
Elas ousam e buscam por respostas em locais dominados por homens e entram em lugares nos quais as mulheres não são bem-vindas: o departamento investigativo do jornal, a delegacia de polícia, o bar da região.
À medida que Loretta vai ganhando mais habilidade e aprendendo com Jean algumas estratégias, ela começa a fazer política com a polícia e se aproxima de um detetive que a auxilia em alguns pontos.
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Loretta McLaughlin e o marido: conflitos de ego e relevância
Enquanto isso, o número de assassinatos aumenta e as falhas e equívocos policiais começam a vir à tona. O trabalho começa a se mostrar mais estressante e ameaçador, fazendo com que a vida pessoal de Loretta entre em crise.
Seu esposo, James (Morgan Specctor), que apoiava sua carreira, depois de um certo ponto, não o faz mais. Parece que a partir do momento em que percebe que a esposa está fazendo parte de algo grande e ganhando notoriedade, ele começa a ver problemas. Não é pelo risco que ela corre ao se envolver em um caso perigoso, mas pelo fato de seu trabalho ter uma relevância maior que o dele.
Mas, mesmo que o filme mostre um pouco das complicações que Jean e Loretta enfrentam entre a vida profissional e a pessoal, o foco está em mostrar como essas duas mulheres foram responsáveis por revelar para uma cidade que os assassinatos eram ações de um (ou mais) serial killer (vamos usar este termo, mas ele só seria cunhado nos anos 1970).
O Estrangulador de Boston e seus elementos cinematográficos
O Estrangulador de Boston demonstra uma forte perspicácia visual. Ele usa estrategicamente o enquadramento de uma forma que consegue localizar as motivações e o emocional de suas protagonistas.
Este procedimento é singularmente notável nas duas ocasiões nas quais Loretta vai conversar com a mãe de uma das vítimas. No primeiro momento, demonstrando convicção e controle, as imagens se concentram ao centro do quadro.
Já no segundo encontro, quando o caso vai ficando mais enigmático e sombrio, é perceptível enquadramentos que dão um tom mais obscuro. Começamos a observar a cena por meio de um reflexo no espelho; em seguida, nos planos seguintes, os rostos das personagens não aparecem mais de forma central.
Elas aparecem de perfil ou em planos nos quais uma acaba escondendo uma parte do rosto da outra. Nos entregando uma imagem pouco clara, dando um ar confuso, tal qual o apuramento do caso naquelas circunstâncias.
A montagem também é outro elemento que chama a atenção. Em sincronia com a busca por pistas de Jean e Loretta, a edição abraça um ritmo que acompanha a urgência e os abismos sombrios de um acontecimento, que trata substancialmente dos horrores da agressão contra mulher.
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As sequências do assassinato, por exemplo, recebem um corte antes das agressões ocorrerem de forma explícita. A violência e brutalidade em si são efetuadas fora de quadro, sendo transmitidas à audiência através dos sons angustiantes. Utilizando o preceito do horror psicológico, o que se escuta e não se vê tem um efeito aflitivo.
Amizade feminina e uma personagem com potencial inexplorado
Contudo, o longa apresenta alguns pontos fracos. Um deles é como exibe a relação entre Jean e Loretta. Inicialmente, apreciamos uma ligação admirável entre as duas, mas ao longo do filme, a força da amizade delas fica um tanto apagada.
O papel de Carie Coon poderia receber um pouco mais de destaque; em vários momentos, ela fica esquecida, poderiam aproveitar um pouco mais da experiência profissional da personagem e colocá-las mais em destaque.
A obra também sofre um pouco com a perda de ritmo. Ela fica um pouco confusa com a questão da passagem do tempo, e em alguns momentos, não fica muito claro se passou muito tempo entre uma situação e outra.
Quando mulheres salvam outras mulheres
“Estas não são ninguém”, é um dos comentários de Jack sobre as vítimas. É muito revoltante observar a falta de atenção que inicialmente dão para o caso. Assim como a falta de consideração que os personagens masculinos têm para com as vítimas e com as mulheres em geral.
A atitude de Loretta e Jean em divulgar que há um serial killer cometendo crimes contra mulheres em Boston foi responsável por alertar as mulheres da região e impulsionar o trabalho policial.
É através das matérias delas que a informação de que o assassino, ao chegar no apartamento das vítimas, se apresenta como alguém responsável por fazer a manutenção do prédio e foi enviado pelo zelador. Isso faz com que outras mulheres fiquem atentas e possam se prevenir. Não se trata apenas de crescer na profissão, ao mesmo tempo, funciona como uma forma de companheirismo com outras mulheres.
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O impacto nas vidas das mulheres
O filme é significativo por reconhecer mulheres que lutam para existir e serem reconhecidas em uma sociedade e um sistema sexista que as diminui e falha constantemente com elas. Isso ainda é muito atual.
Uma pesquisa feita no Brasil, que iniciou em 2018, aponta falhas no atendimento às mulheres vítimas de violência. Há relatos de reclamações a respeito da falta de atenção, de amparo e de uma resposta efetiva do Estado, além da demora da justiça, indicando a precariedade do sistema para impedir esse ciclo de agressões e mortes.
Uma das cenas mais tocantes de O Estrangulador de Boston acontece quando Loretta e Jean recebem pilhas de cartas de leitoras em resposta às suas publicações sobre o caso. Expondo o perigo, elas colaboraram, alertaram e salvaram a vida de várias mulheres. Aquelas que foram chamadas de “ninguém” pelo editor chefe do jornal sentiram-se acolhidas. Alguém se preocupava com elas.
Colagem em destaque: Isabelle Simões para o Delirium Nerd.