Our Wives Under the Sea: o inesquecível horror cósmico sáfico de Julia Armfield

Our Wives Under the Sea: o inesquecível horror cósmico sáfico de Julia Armfield

O fundo do mar é vasto e esconde muitos mistérios, assim como a natureza humana. Essa paisagem, que à primeira vista pode evocar calmaria e conforto, sempre serviu de inspiração para artistas das mais diversas vertentes criarem obras sobre o que as águas carregam de melhor. No entanto, também é o berço dos mais impensáveis horrores.

Em seu romance de estreia, intitulado Our Wives Under the Sea, a autora inglesa Julia Armfield utiliza a obscuridade e o silêncio dos oceanos para contar uma linda e trágica história de amor gótica e contemporânea entre o casal de lésbicas Miri e Leah, envolta pela melhor atmosfera de horror cósmico.

Capa do livro "Our Wives Under the Sea", romance de Julia Armfield
Capa de Our Wives Under the Sea | Imagem: Laís Fernandes

Our Wives Under the Sea: o amor e o horror navegam de mãos dadas

Após ver a esposa, uma bióloga marinha, partir em mais uma expedição a bordo de um submarino, a fim de investigar novas espécies no fundo do mar, Miri não imaginava os horrores pelos quais Leah passaria junto aos dois companheiros de viagem. Algo muito errado acontece, e o que deveria ser uma aventura de apenas três semanas se torna um pesadelo de seis meses em águas profundas.

O fundo do mar é uma casa mal-assombrada: um lugar onde coisas que não deveriam existir se movem na escuridão. Inquieto é a palavra. (p. 3, tradução minha)

Quando Leah retorna para casa, após o longo período incomunicável, carrega consigo uma parte estranha e desconhecida do oceano. As horas de conversa com Miri sobre filmes são trocadas por poucas palavras desconexas e mensagens indecifráveis acerca do que jaz incompreensível e aterrador no fundo do mar.

Leah também passa a acordar todos os dias às seis da manhã, sangrando por várias partes do corpo, e seu único passatempo agora é deitar-se na banheira cheia de água salgada ouvindo os ruídos produzidos por uma caixa que recebeu da companhia para a qual trabalhava.

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Quarta capa de "Our Wives Under the Sea", romance de Julia Armfield
Quarta capa de Our Wives Under the Sea | Imagem: Laís Fernandes

Miri tenta, a qualquer custo, compreender a nova realidade pela qual seu relacionamento está passando. No entanto, ela vai percebendo aos poucos que o que Leah foi um dia talvez nunca mais retorne. Será o amor das duas forte o suficiente para que Miri consiga salvar Leah de si mesma e reacender o amor incondicional que compartilham?

Julia Armfield cria uma narrativa memorável sobre pesadelos aquáticos

A escrita de Julia Armfield, elogiada por Florence Welch – uma grande admiradora do primeiro livro de contos da autora, Salt Slow – é poética, fluida e apresenta o horror cósmico de forma sutil, mas extremamente assustadora.

Julia Armfield é uma das minhas escritoras favoritas. Our Wives Under The Sea transita com fluidez entre história de terror e história de amor, o lindo e o grotesco. Um conto de fadas gótico contemporâneo, sublime em sua estranheza. (Florence Welch para a Pan Macmillan)

Alternando cada capítulo entre a perspectiva de Miri após o retorno de Leah e a visão de Leah dos acontecimentos durante sua estadia no submarino, Julia cria uma atmosfera dúbia, incômoda, perfeita e aterrorizante nos mínimos detalhes.

‘O que você tem que entender’, diz ela, ‘é que algumas coisas conseguem sobreviver em condições inimagináveis. Tudo de que precisam é do tipo certo de pele’. (p. 3, tradução minha)

O medo do desconhecido é o que frequentemente inspira autores de terror a escreverem suas histórias, especialmente quando o objeto de interesse é o fundo do mar e as áreas pouco exploradas dos oceanos. Não se sabe ao certo quais criaturas aguardam, adormecidas ou não, nas águas geladas e escuras. Julia Armfield explora as mais diversas possibilidades de existências monstruosas em Our Wives Under the Sea.

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Uma das passagens que demonstram o poder do storytelling de horror da autora ocorre quando o submarino perde a direção, afunda e fica estagnado em um ponto muito mais profundo do que o esperado pelos tripulantes. Nesse momento, tanto Leah quanto Jelka e Matteo começam a sentir constantemente e de forma repentina um cheiro de carne assada.

O mesmo fenômeno ocorre quando a figura improvisada de um santo, criada por Jelka durante seus momentos de oração, aparece em lugares diferentes da embarcação, sem que ninguém a tenha movido. Além disso, os três começam a avistar formas escuras e indistintas passando em frente ao vidro do submarino.

No entanto, o terror também se manifesta por meio das descrições de body horror, momentos em que a autora faz referência a grandes obras do gênero, como os filmes de David Cronenberg. Calafrios (1975) e A Mosca (1987) são citados na obra, pois são dois dos filmes favoritos de Miri e Leah, assim como Tubarão (1975).

Acima de tudo, Our Wives Under the Sea é uma história sobre luto e medos reais

A autora nomeia cada parte do livro com os nomes das divisões do oceano que categorizam a profundidade em que a luz consegue alcançar as mais diversas espécies de animais e plantas, bem como onde elas podem sobreviver. Essas zonas são a Zona Epipelágica (0-200m), Zona Mesopelágica (200-1000m), Zona Batipelágica (1000-4000m), Zona Abissopelágica (4000-6000m) e Zona Hadopelágica (> 6000m).

‘Fantasmas não falam’, ela me disse. ‘As pessoas não compreendem isso. Pensam que quando você é assombrado, escuta alguém falando, mas você não ouve. Pelo menos, não com frequência. Na maioria das vezes, se você escuta alguma coisa falando, não é um fantasma — é algo pior’. (p. 156, tradução minha)

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Além de demonstrar a profundidade alcançada pelo submarino e os perigos ocultos em lugares inóspitos, Julia utiliza a metáfora das profundezas para explorar a psique de Miri e Leah gradualmente, revelando que os terrores pelos quais elas passam são velhos conhecidos.

Começando por Leah, que sempre foi assombrada por espectros fantasmagóricos desde a infância e, ao crescer, sofreu uma perda muito significativa. Estar reclusa no fundo do mar, sem comunicação com seu amor e melhor amiga, significa enfrentar seus fantasmas mais perigosos sem ter para onde escapar. É triste para o espectador da sua tragédia pessoal ver sua personalidade carismática, falante, cheia de vida e apaixonada pelo mar e pelo seu trabalho se esvair com o tempo.

Na outra ponta do relacionamento, Miri, além de ver seu casamento e convivência com Leah mudando drasticamente, relembra os anos em que lidou com a doença degenerativa da mãe, um processo longo, lento e doloroso.

Ter de reviver o luto e o medo de herdar a enfermidade da mãe, que mesmo não sendo nomeada na obra, acredita-se ser algo hereditário, faz com que a personagem mergulhe em uma espiral de horror pessoal e palpável, muito mais assustadora do que as mudanças de comportamento de Leah.

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Julia Armfield trabalha como ninguém os sentimentos de perda, isolamento, invisibilidade, silêncio e abandono, envolvendo-os com uma prosa rica e encantadora que nos envolve do início ao fim da leitura. Além disso, há uma bela reflexão sobre a sexualidade das protagonistas, que mergulham profundamente em seu “eu” ao se reconhecerem em outra pessoa.

Detalhes do livro Our Wives Under the Sea:

Lombada do livro "Our Wives Under the Sea"
Lombada do livro Our Wives Under the Sea
Página do livro "Our Wives Under the Sea"
Página de Our Wives Under the Sea
Uma das transições de "Our Wives Under the Sea"
Uma das transições de Our Wives Under the Sea
Livro de horror cósmico sáfico
Detalhe de Our Wives Under the Sea
horror cósmico sáfico
Citação de Our Wives Under the Sea
Julia Armfield
Julia Armfield | Imagens: Laís Fernandes

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O romance, portanto, é um prato cheio para fãs de livros como A menina submersa (Caitlín R. Kiernan, DarkSide Books), As águas-vivas não sabem de si (Aline Valek, Rocco), da série A Maldição da Mansão Bly (Mike Flanagan, 2020) e do filme Retrato de uma Jovem em Chamas (Céline Sciamma, 2019).

Por fim, Our Wives Under the Sea traz consigo a poética do fim: o fim da vida, dos relacionamentos, do amor e do que outrora era confortável, promissor e certo. Julia nos mostra que nada é definitivo, assim como as marés que vêm e que vão.

Colagem em destaque: Laís Fernandes para o Delirium Nerd.

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Formada em Letras, pós-graduada em Produção Editorial, tradutora, revisora textual e fã incondicional de Neil Gaiman – e, parafraseando o que o próprio autor escreveu em O Oceano no Fim do Caminho, “vive nos livros mais do que em qualquer outro lugar”.
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