Nos últimos tempos, felizmente, houve uma demanda e circulação maior de obras literárias dos mais diversos gêneros. A escrita feminina não é mais restrita e reconhecida apenas a seus romances, mas adentrou novos polos, desde Mary Shelley, passando por J.K. Rowling e chegando à Chimamanda. A ficção científica, por sorte, não ficou de fora desse fenômeno, como é o caso desta nova obra da Editora Morro Branco, “Os Eternos”, de Amie Kaufman e Meagan Spooner.
A história de um casal de adolescentes, subestimados pelos adultos, lutando contra forças além de seu poder inicial e descobrindo uma forma de salvar a humanidade – ou qual seja a sua espécie – não é algo exatamente novo, já tendo sido tratada e retratada de diversas formas. Aqui, Jules e Amelia, os dois protagonistas da vez, são levados à descoberta de uma sabedoria que pode tanto elevar quanto destruir a humanidade – tanto seu presente quanto seu futuro. Aparentemente simples, entretanto, a obra traz pontos interessantes à leitora – especialmente àquela ainda estranha as trivialidades do universo infanto-juvenil – inclusive em relação às personagens marginalizadas.
De início, pensamos se tratar de mais um repetitivo infanto-juvenil. O futuro distópico, através de obras do mesmo gênero, como “Divergente” e “Jogos Vorazes“, não tornou-se exatamente surpreendente, sendo certo, ainda, que as provisões sobre o futuro também nos indicam uma (mais) difícil realidade pela frente.
A queda e a elevação humana em “Os Eternos”
Na Terra de “Os Eternos”, a humanidade não é mais capaz de produzir energia por si só. Ademais, a água é extremamente escassa e o ar também não é dos melhores. Mais do que nunca, a distância social causada pela má distribuição de riquezas – sim, o capitalismo segue firme e forte – obriga a maioria da população a se abrigar em empregos de qualidade humana (no mínimo) duvidosa ou a viver na ilegalidade. Quando uma mensagem codificada, então, chega e tem sua primeira camada decodificada por cientistas, então a possibilidade de uma existência nova no planeta Gaia é apresentada. E, então, começam as complicações.
Humanos são, afinal de contas, humanos e, mesmo em uma obra de ficção, as características de ganância, egoísmo e individualidade aparecem como elementos essenciais na existência da sociedade. Além da possibilidade de uma nova vida com, visto que o ar de Gaia não é totalmente respirável, os recursos do recém descoberto planeta, o imediatismo de encontrar uma saída à eventual extinção da espécie leva a grande corporação Aliança Internacional – AI a ignorar os avisos expressos, tanto da mensagem quanto do próprio responsável pela decodificação, Dr. Elliott Addison, de perigo.
Entendemos, é claro, como a situação deve ser estressante e intimidadora. Diversos civis abandonaram suas famílias e a vida que conheciam na Terra em busca de uma saída, mesmo que ilegal, dentre os dejetos de Gaia. O imediatismo da salvação afeta, mais uma vez, aqueles que necessitam imediatamente de uma solução para seus problemas, distintamente do papel maior – e mais arriscado – dos agentes da AI. A escolha desta em ignorar os avisos de perigo, ou melhor, tratá-los como devaneios do Dr. Addison, já parecem ter custado um enorme preço e desconfiamos que a cobrança permanecerá, pelo menos, ao longo do segundo – e último – volume.
De um lado, a desgraça humana permanece devidamente representada; de outro, a utilização e representação do gênero e da etnia das personagens no livro é claramente melhor, pelo menos em quantidade.
Protagonismo feminino e diversidade limitada
Há uma ampla gama de personagens femininas na trama, distribuindo-se entre mocinhas e (aparentes) vilãs. Não faltam opções de preferência à leitora, bem como as autoras não restringiram as personalidades das personagens a um único clichê literário feminino. Justamente por serem mulheres, as autoras foram capazes de transpor às páginas da obra a resiliência natural que acompanha a mulher desde os primórdios. Amélia, Charlotte e Evie, bem como outras, são obrigadas a enfrentar os males da humanidade com força e de cabeça erguida, mesmo que em um planeta estranho.
As autoras acertaram quanto à representação feminina; entretanto, como recorrente em tantos outros casos, o espectro de diversidade de mulheres brancas se resume, apenas, ao gênero.
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Afinal, em um livro no qual existem, salvo engano, nove personagens de alguma importância ao desenrolar da trama, apenas três serem não brancos – sendo que um deles passa a totalidade da história preso – não pode ser chamado de diversidade. Apesar dos únicos personagens negros (homens) serem retratados como “gênios”, parecendo uma clara supercompensação, é curioso que o outro personagem não branco, um chicano chamado Javier, seja um mercenário.
A questão, ressaltamos, não é propriamente o papel que tais etnias ocupam na trama, mas a simples reprodução dos estereótipos e projeções da sociedade real presente na trama. Quem vive tais preconceitos e discriminações, bem como aqueles que possuem a tão rara empatia, sabem muito bem que aos não brancos – principalmente na sociedade branca ocidental, a qual as escritoras pertencem – é esperado ou o papel de marginalização constante (participando, como é o caso, de grupos fundados na ilegalidade) ou o esforço em super atuar e se adequar ao sistema.
O livro é, no geral, bom. Apresenta uma nova espécie de mundo distópico infanto-juvenil, agora aprimorado pelos mistérios de uma raça aparentemente alienígena, bem como questões críticas à permanente ignorância humana. Os problemas de representação étnica, entretanto, não podem ser ignorados, sendo apenas mais um exemplo da limitada empatia e sororidade constante a algumas mulheres brancas contemporâneas. Talvez a própria limitação da diversidade seja, inclusive, um exemplo do quanto a ignorância da humanidade ainda se faz presente.
Os Eternos. O Legado – Volume 1
Autoras: Amie Kaufman e Meagan Spooner
Tradução: Sofia Soter
352 páginas
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Edição realizada por Gabriela Prado e revisão por Isabelle Simões.