Dordogne: a superação de conflitos familiares através de uma narrativa lúdica e intimista

Dordogne: a superação de conflitos familiares através de uma narrativa lúdica e intimista

Qual é a primeira coisa que você se lembra?” Em sua primeira frase, Dordogne explicita o aspecto nebuloso e impreciso de nossas memórias, que permeia sua narrativa. O jogo acompanha Mimi explorando a casa de sua falecida avó, Nora, em busca de recordações capazes de lembrá-la dos acontecimentos de sua infância.

Além da narrativa intimista e sentimental, as belas paisagens de elaboradas em aquarela são uma das principais qualidade de Dordogne, lançado em junho de 2023 para PC, Playstation 4, Playstation 5, Nintendo Switch, Xbox One e Xbox Series X e S (disponível no Game Pass).

Dordogne e o rompimento de ciclos familiares nocivos.
Mimi em frente ao portão da casa da falecida avó.

Dordogne e o rompimento de ciclos familiares nocivos

A relação de Mimi com sua família mostra-se conflituosa desde o início do jogo. A primeira ação de quem joga é responder mensagens de texto a Fabrice, pai de Mimi, que está insatisfeito com a decisão da filha de visitar a casa. Em uma carta à protagonista, Nora explica que o filho decidiu romper laços com ela há vinte anos.

Celular de Mimi com uma mensagem de seu pai. Cena do jogo Dordogne.
Celular de Mimi com uma mensagem de seu pai.

Além das trocas de mensagens com o pai que permeiam o desenrolar da narrativa, é possível conhecer mais das relações de Mimi explorando as mensagens de seu celular trocadas antes dos eventos do jogo.

Se a relação com seu pai é conflituosa, a com sua mãe é de afastamento. Dom, que pode ser seu amigo ou namorado, demonstra um desinteresse ou desconhecimento da visita à casa da avó. Um colega de seu antigo emprego, do qual foi recém-demitida, comenta sobre o ambiente caótico do escritório.

A maioria dessas relações não é explorada de fato na narrativa, que aborda um verão que Mimi passou na Dordonha e do qual não se lembra. No entanto, trazem toques que dão personalidade e alguma profundidade à protagonista, mostrando que ela tem uma vida para além do jogo.

O principal mistério que move a história é o rompimento de Fabrice com sua mãe. Enquanto Mimi explora a casa, encontra cartas que aos poucos jogam uma luz sobre a questão. A exploração de uma casa abandonada para compreender conflitos familiares não é exclusividade de Dordogne, estando também presente em outros jogos narrativos como Gone Home e What Remains of Edith Finch.

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Verão às margens do Dordonha

Dordogne é estruturado em capítulos, que alternam entre a Mimi adulta e lembranças de um verão que passou com sua avó. Os trechos no presente são relativamente curtos, havendo uma maior ênfase a suas memórias.

Inicialmente, contrariada pela ideia de passar longe de seus amigos em uma cidade desconhecida, na casa de uma avó com quem tivera pouco contato, aos poucos Mimi se deixa conquistar pelo ambiente rústico. Nora, enlutada pelo falecimento de seu marido, também passa por transformações, permitindo-se abrir mais para a neta e contar-lhe sobre seu avô e a relação dos dois.

Mimi adulta revisitando o quarto secreto de seus avós no jogo.
Mimi adulta revisitando o quarto secreto de seus avós.

Um dos principais aspectos de Dordogne é o cenário. As ilustrações em aquarela fazem com que a exploração dos diversos ambientes seja tão prazerosa para quem joga quanto para Mimi – que explora uma interjeição de euforia a cada novo local descoberto.

O rio Dordonha, além de proporcionar algumas das paisagens mais belas do jogo, é importante durante toda a narrativa, com diversos momentos chave acontecendo a suas margens. É no leito do rio que habita o Coulobre, criatura lendária que Mimi e seu amigo Renaud querem encontrar.

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Mimi e Nora deitadas à margem do Dordonha.
Mimi e Nora deitadas à margem do Dordonha.

E se Proust fosse designer de jogos?

Uma das principais obras da modernidade que possuem a temática da memória é conterrânea de Dordogne: Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust. Seu momento provavelmente mais famoso ocorre no início do primeiro dos sete volumes, quando o narrador toma um gole de chá acompanhado de uma madeleine (uma espécie de bolinho) e lembra-se subitamente de eventos de sua infância.

Cena de transição entre presente e passado de Mimi.
Cena de transição entre presente e passado de Mimi.

Eventos de memória involuntária também acontecem nesse jogo. A cada capítulo, Mimi encontra um diferente gatilho que, como a madeleine de Proust, a transporta para um momento de sua infância. O paladar, junto com o olfato, é um dos cinco sentidos mais complicados de abordar em jogos. Dessa maneira, os desenvolvedores escolheram dar uma grande ênfase aos outros três sentidos.

O tato é o que recebe maior destaque. Dordogne se assemelha muito a jogos de aventura point-and-click, como a série Monkey Island. Dessa maneira, podemos controlar o movimento da protagonista e clicar para interagir com itens. No entanto, o clique do game muitas vezes não é simples.

Para destrancar uma porta, é necessário colocar a chave na fechadura, rodá-la, girar a maçaneta e empurrar a porta. Todos esses gestos são feitos utilizando o mouse ou joystick. Atividades rotineiras, como se servir no café-da-manhã ou escovar os dentes, se tornam quase minigames.

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Momento e que o jogador deve controlar as duas mãos de Mimi para que ela escove os dentes.
Momento e que o jogador deve controlar as duas mãos de Mimi para que ela escove os dentes.

A relação desse movimento e o tato com a memória não é explícita, mas é possível pensar neles de uma forma parecida com a ideia de que não se esquece a andar de bicicleta. A repetição dos movimentos, que causam estranheza no começo do jogo, vai se tornando familiar,  da mesma forma com que Mimi vai aos poucos se recordando daquele ambiente. Eu lembro de abrir essa porta! Eu lembro de consertar esse caiaque e pintá-lo!

A visão e a audição, por sua vez, aparecem de forma mais explícita na construção da memória. Uma das coisas que Mimi está procurando na casa da avó é um fichário. Jogando com Mimi criança, podemos criar as páginas desse fichário. O item pertencia ao avô de Mimi e a Nora, que o presenteia à neta. A protagonista ainda recebe a máquina fotográfica e um gravador de fitas do avô.

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Interface da câmera fotográfica no jogo Dordogne
Interface da câmera fotográfica no jogo.

No decorrer de cada capítulo, coletamos palavras e encontramos adesivos no cenário. Em alguns trechos, podemos utilizar os presentes da avó para tirar fotos e gravar sons. E esses quatro tipos de itens podem ser utilizados de forma combinada para criar as páginas do fichário, dando uma liberdade criativa ao jogador.

Para onde foram as memórias que eu construí?

Criar as páginas é uma das mecânicas mais divertidas do jogo. A criação de poesias vinculada às palavras encontradas merece um destaque especial pelas amplas possibilidades que o sistema criado possui: o jogador cria uma poesia de três versos associados a palavras diferentes, sendo que cada palavra possui três opções de versos. Em um capítulo em que o jogador encontrou 10 palavras, são mais de 19 mil possibilidades de combinações.

Palavras aparecem no cenário de Dordogne para serem coletadas ao passar por pontos específicos.
Palavras aparecem no cenário para serem coletadas ao passar por pontos específicos.

As fotos e sons são, infelizmente, mais limitadas, apenas sendo possível utilizar a câmera e o gravador em momentos específicos do capítulo, e com o limite de dez fotos por capítulo.

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Aviso de spoiler nos parágrafos seguintes!

Apesar dessa limitação, a maior frustração em relação ao fichário está na forma e momentos em que ele próprio pode ser acessado. A Mimi adulta não encontra o fichário até o final do jogo, conseguindo apenas abrir o fichário nas cenas de flashback.

No final do jogo, quando a protagonista finalmente encontra o que procurava, temos uma cutscene e rolam os créditos. Depois disso, o jogador não tem mais acesso ao fichário, e todas aquelas memórias que Mimi lutou para encontrar estão perdidas, mais uma vez.

Página do fichário de Mimi.
Página do fichário de Mimi.

Todo o sistema de criação de páginas do fichário é subutilizado ao dificultar o acesso a essas páginas. Seria interessante se os desenvolvedores tivessem optado por um caminho similar a Umurangi Generation, facilitando que as páginas fossem salvas e compartilhadas nas redes sociais, permitindo aos jogadores mostrarem suas próprias criações e até mesmo ajudando na divulgação do jogo.

Fim dos spoilers!

Outro recurso que seria interessante (e não foi implementado) é a seleção de capítulos após a conclusão do jogo, facilitando os jogadores que desejam relembrar de momentos específicos ou aqueles que querem completar as conquistas do jogo, encontrando todos os itens escondidos.

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Conclusão de Dordogne

O jogo é uma experiência cativante e emocional, que aborda os temas de perda e luto com leveza e mantendo uma sensação de conforto. Suas belas aquarelas e a narrativa delicada são seus pontos mais fortes. A duração curta e a estrutura em capítulos permitem que a história seja apreciada em uma única sessão de poucas horas ou dividida em sessões mais curtas.

A necessidade de movimentos complexos para realizar atividades simples não chega a se tornar cansativa, contribuindo para a experiência única que o jogo traz. Já criação de páginas no fichário, apesar de gerar momentos engajantes, traz a maior frustração do jogo ao dificultar o acesso do jogador a suas criações.

No geral, Dordogne é uma experiência que toca o coração e vale a pena ser vivenciada, especialmente por aqueles que apreciam jogos narrativos e visuais impressionantes.

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Designer com um mestrado sobre joguinhos em andamento. Ama narrativas em todas as formas que podem assumir.
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